Num relatório divulgado em Maputo, o Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD) destaca que a situação confirma a tendência que se verifica nos últimos anos. Neste prisma, diz o CDD, o Estado aparece como o principal violador dos direitos humanos, tanto por omissão como por acção dos seus agentes, sobretudo dos membros da Polícia da República de Moçambique.
O CDD avança com o rol das graves violações dos direitos humanos durante o primeiro trimestre do ano 2023, com destaque para a repressão violenta das marchas de homenagem ao ‘rapper’ Azagaia, na manhã do passado dia 18 de Março, em que a Polícia da República de Moçambique (PRM) descarregou gás lacrimogéneo e balas de borracha sobre centenas de jovens na Cidade de Maputo e em várias capitais provinciais.
Além de vários feridos, como o jovem Inocêncio Manhique que perdeu um olho depois de ter sido atingido por uma bala de borracha, reportou-se a perda de vida de uma senhora identificada por Belarmina na sequência de inalação de gás lacrimogéneo.
Antes das marchas do dia 18 de Março, a Polícia já havia usado gás lacrimogéneo contra o cortejo fúnebre do ‘rapper’ Azagaia, no dia 14 de Março de 2023. A Polícia também usou blindados para bloquear um ponto do percurso em frente à residência oficial do Presidente da República.
O Centro para a Democracia e Desenvolvimento recorda que as marchas reprimidas pela Polícia tinham sido comunicadas às autoridades relevantes. Com efeito, através de uma carta, com Ref: 2/PJ/2023, datada de 10 de Março de 2013, o Parlamento Juvenil, uma associação da sociedade civil e um dos co-organizadores da marcha, comunicou, dentro do prazo estipulado pelo artigo 10 da Lei nº 9/91, de 18 de Julho, o Conselho Municipal da Cidade de Maputo, com cópias para o SISE, PRM-Cidade, SENSAP, entre outros, sobre a realização da marcha no dia 18 de Março, das 9:00 às 12:00 horas com indicação do objectivo da marcha e as respectivas rotas.
Das comunicações feitas, o Parlamento Juvenil apenas recebeu uma resposta do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, datada de 17 de Março de 2023, sob Refª nº 175/SG178/GP/2023, através da qual o Município não se opunha à realização da marcha e apelava aos participantes a observância de todas as normas reguladoras do exercício de direito à manifestação. As outras entidades, com destaque para a PRM-Cidade, SISE e SENSAP não reagiram à comunicação da manifestação do Parlamento Juvenil.
Todavia, no dia da manifestação, 18 de Março de 2023, várias unidades da Polícia anteciparam-se aos organizadores das marchas e posicionaram-se nos locais de concentração para impedir a realização do direito à liberdade de reunião e manifestação, previsto no artigo 51 da Constituição da República de Moçambique (CRM).
Sem fundamento legal ou argumento juridicamente defensável, a Polícia violentou, feriu e prendeu cidadãos inocentes que saíram à rua simplesmente para homenagear o ‘rapper’ mais representativo do povo.
Com estes actos, a Polícia da República de Moçambique violou a Constituição da República, artigo 51; a Lei nº 9/91, de 18 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 7/2001, de 7 de Julho, e os padrões internacionais dos direitos humanos (artigo 11 da CADHP32 e artigo 21 do PIDCP).
A CRM estabelece que a Polícia é apartidária (n.º 2 do artigo 253) e, no exercício das suas funções, obedece à lei e serve com isenção e imparcialidade os cidadãos e as instituições públicas e privadas.
Na tentativa de justificar a actuação criminosa, o Comando-Geral da PRM disse que as autoridades constataram a existência de fortes indícios de transição de uma manifestação pacífica para violenta, tendo decidido, por isso, tomar medidas, como o destacamento de agentes para os locais de concentração para aconselhar e exortar “os manifestantes” a não realizarem a marcha.
Lembre-se que, cinco dias depois, o Presidente da República reagiu aos acontecimentos do dia 18 de Março, através de um discurso que, ao mesmo tempo que condenava a violência policial, apelava à caça das pessoas a quem chamou de “infiltrados” e “gente mal-intencionada” que deve ser isolada e responsabilizada de forma exemplar.
Nesse discurso, Filipe Nyusi orientou o Ministério do Interior a apurar as razões da actuação violenta da Polícia contra jovens que pretendiam marchar de forma pacífica e ordeira. “Face aos acontecimentos na capital do país, Maputo, orientamos o Ministério do Interior para que proceda com uma averiguação das razões que levaram a Polícia a adoptar uma postura de confronto físico com os jovens. Igualmente, identificar aqueles que procuram se aproveitar da virtude individual do jovem rapper Azagaia para atingir os seus intentos. Queremos dizer que lamentamos o sucedido e tomaremos as devidas medidas para esclarecer o sucedido e para prevenir que estas situações voltem a acontecer”, prometeu Nyusi, durante a sua intervenção na cerimónia de graduação na Academia de Ciências Policiais (ACIPOL), no dia 23 de Março.
No entanto, já passa mais de um mês depois dos incidentes e as autoridades policiais ainda não esclareceram as razões da violência brutal da Polícia contra cidadãos que estavam a efectivar um direito constitucional.
A Procuradora-Geral da República foi obrigada a pronunciar-se sobre o caso durante a apresentação do seu informe à Assembleia da República, no passado dia 20 de Abril. Respondendo a perguntas da Renamo, maior partido da oposição, Beatriz Buchili admitiu que as ocorrências do dia 18 de Março apontam para situações de violação da lei, situação que levou o Ministério Público a abrir processos-crime para o esclarecimento dos factos e responsabilização dos implicados.
No total, foram abertos quatro processos-crime, sendo quatro contra membros da PRM e 10 contra cidadãos que participavam das manifestações. Buchili não precisou o número de agentes da Polícia implicados nos quatro processos, muito menos os crimes que pesam sobre eles. “Qualquer acção tendente a coartar este exercício (manifestação) é contrário à CRM e à lei, acarretando a responsabilização disciplinar, criminal e civil, conforme os casos”, disse a Procuradora-Geral da República, quebrando assim um silêncio perturbador que durou 30 dias.
Impedimento pela PRM da marcha dos funcionários da Autarquia de Namaacha
No dia 24 de Janeiro de 2023, os funcionários da Autarquia de Namaacha comunicaram às autoridades competentes do Município da sua intenção de organizar uma marcha de protesto contra o atraso de pagamento de salários. No dia 26 de Janeiro, data prevista para a marcha, a PRM destacou um contingente da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) e da Brigada Canina para impedir a manifestação pacífica dos funcionários da vila fronteiriça de Namaacha. Oficialmente, foi transmitido aos funcionários que a inviabilização da marcha visava evitar actos de vandalismo e possíveis confrontos com a Polícia, como ocorreu em Novembro de 2022, quando a população tentou linchar um agente da PRM que baleou mortalmente um colega natural de Namaacha.
Trata-se de mais uma violação do direito à liberdade de reunião e de manifestação pelo Estado moçambicano. Até ao fecho do relatório trimestral do CDD ainda não havia informações se houve abertura do competente processo de investigação com vista à responsabilização disciplinar, criminal e civil, conforme o caso, dos presumíveis autores da violação.
Estado continua a ser o grande violador dos direitos humanos no país
O Centro para a Democracia e Desenvolvimento entende que para o Estado moçambicano, apesar de haver um quadro legal e institucional favorável aos Direitos Humanos, a sua implementação continua fraca, desafiante e muito aquém das expectativas criadas. Com efeito, durante o primeiro trimestre de 2023, foram vários casos de violação de direitos humanos registados pelo CDD nas suas acções de promoção e protecção dos direitos humanos.
Das várias e diferentes violações constatadas no primeiro trimestre do ano de 2023, o Estado, através dos seus agentes, continua a ser o grande violador dos direitos humanos no país e não conseguiu garantir um efectivo acesso à justiça às vítimas de violações e abusos de direitos humanos. As investigações são intermináveis e morosas e os tribunais não respondem às solicitações de forma pronta, adequada e efectiva.
O CDD reitera no seu relatório que o direito à liberdade de reunião e manifestação foi gravemente violado de Janeiro a Março de 2023. Várias manifestações e reuniões foram interditas e violentamente reprimidas em violação da legislação em vigor. Não houve resposta adequada por parte do sector da administração da justiça.
No período em referência houve atropelo ao direito à vida e integridade física e moral. Com efeito, vários cidadãos perderam a vida sem o devido esclarecimento e encaminhamento legal. As investigações foram inconclusivas, por isso não houve responsabilização dos presumíveis infractores, muito menos a reparação dos danos causados.
No mesmo período verificou-se pouca actuação do Governo na prevenção, mitigação e reparação de efeitos decorrentes das calamidades naturais. Várias pessoas vítimas das cheias e ciclones não foram devidamente prevenidas da situação, não tiveram adequado acesso à informação, não receberam apoio psicossocial e material adequado e não tiveram apoio para a reparação dos danos sofridos.
O relatório trimestral do CDD realça que um dos direitos mais sacrificados no primeiro trimestre do ano 2023 é o direito à liberdade de expressão e imprensa e o acesso à informação. Vários jornalistas foram interditos, violentados e impedidos de procurar, receber e difundir informação relevante para a sociedade.
Os raptos, refere a organização, continuaram a preencher a agenda dos direitos humanos no primeiro trimestre do ano de 2023, o que afecta negativamente o gozo dos direitos à liberdade e segurança. Várias pessoas foram raptadas sem resposta adequada e pronta do sector de administração da justiça.
O extremismo violento em Cabo Delgado continua a impactar negativamente no gozo dos direitos humanos naquela parcela do país. Morte de pessoas indefesas, insegurança, desaparecidos forçados, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes e privações em termos de condições básicas de vida são grandes violações que se constatam naquelas zonas de Cabo Delgado.
Concluindo, o CDD diz que Moçambique, em termos do estágio de implementação dos direitos humanos, no primeiro trimestre de 2023, continua a caminhar a duas velocidades. Por um lado, um quadro legal e institucional em franco aperfeiçoamento e desenvolvimento e favorável aos direitos humanos; e, por outro, uma implementação fraca e muito aquém das expectativas criadas pelo quadro legal e institucional.
O Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD) é uma organização da sociedade civil que defende uma governação democrática e responsável, que serve os cidadãos, incluindo as comunidades menos favorecidas ou marginalizadas. (Carta)