Um dos temas mais fecundos da filosofia da existência, desde Kierkegaard, é a questão da angústia existencial, entendida como a estrutura do ser humano, independentemente dos seus desvios psicopatológicos. O problema da angústia – através da provocação de Job no pensamento contemporâneo – está intrínseca e dramaticamente ligado à questão da teodiceia. Porém, como escrevi no artigo “A Angústia de um Povo“, a angústia que nos atormenta não se pode resolver numa soteriologia individual, como fez o existencialismo europeu, com pensadores como Heidegger e, antes dele, com o filósofo dinamarquês Kierkegaard.
Contra todas as formas de solipsismo, a única coisa que nos pode salvar não é a luta pela solução de problemas de cada indivíduo, de cada grupo, ainda menos de divisões ligadas a etnias, a tribos que parecem estar actualmente em voga. A única coisa que nos pode salvar é o regresso a utopias colectivas, sociais, as únicas capazes de mobilizar o imaginário dos indivíduos, dos grupos, mas também de toda a comunidade.
O que permitiu a libertação dos africanos da escravatura, passando pelo colonialismo, foi a ousadia filosófica de conjugar a africanidade sempre no plural, no colectivo. Podemos citar os grandes ideais de Cabral (Arma da Teoria), mas, antes dele, Nkrumah (Consciencismo), Dubois (Almas Negras) (…) pensaram o telos africano em termos plurais, colectivos. Esta foi a luta de Machel e, antes dele, foi a luta de Mondlane, foi a luta da primeira FRELIMO, aquela que libertou Moçambique. E, por isso mesmo, essa FRELIMO foi capaz de mobilizar todos e cada um – para além das raças, das religiões, das crenças. Essa Frelimo e o Moçambique que então engendrou, era habitada por uma utopia em que o ” Eu era Nós” (José Luís Cabaço). Foram as distopias solipsistas e pecuniocratas que levaram à perda do sentido colectivo e a angústia de hoje.
Sem um horizonte comum, sem um sonho capaz de os unir, os moçambicanos vivem fragmentados, mergulhados em pequenas lutas que não transcendem o imediato. A história ensina-nos que os grandes avanços da humanidade – e da África em particular – só foram possíveis quando os povos conseguiram projectar um futuro colectivo, um ideal capaz de dar sentido às suas acções.
A luta contra a escravatura não foi apenas uma soma de resistências individuais, mas um movimento que articulou diferentes povos e culturas em torno de um objectivo maior: a liberdade. O mesmo aconteceu com a luta anti-colonial. Os grandes líderes africanos – de Kwame Nkrumah a Amílcar Cabral, de Eduardo Mondlane a Samora Machel – compreendiam que a independência não poderia ser apenas um evento jurídico, mas um projecto político, social e cultural que mobilizasse o povo na sua totalidade.
A grande tragédia de nosso tempo é a “distopização” dos nossos sonhos, a perda das nossas utopias. A luta que outrora uniu dissolveu-se em fragmentações identitárias, em pequenas disputas étnicas, religiosas ou regionais, que minam qualquer possibilidade de um futuro comum. A política moçambicana reflecte essa crise: a ausência de um projecto nacional, de uma visão que transcenda interesses imediatos, faz com que a sociedade se perca em desconfianças e rivalidades internas.
Não há saídas individuais para uma crise colectiva. O existencialismo europeu – com Kierkegaard e Heidegger- ensinou-nos a hermenêutica da angústia como um problema da consciência individual. A nossa angústia é histórica, social, colectiva. Ela só poderá ser superada se ousarmos resgatar o que nos fez vencer as angústias do passado: a capacidade de sonhar juntos.
A única coisa que nos pode salvar, hoje, não é a promessa efémera, das soluções particulares, de favores ou de concessões a pequenos grupos, mas a reconstrução de uma utopia social, de um projecto que nos permita dizer, mais uma vez, com Cabaco: o Eu é Nós.
Como reconstruir uma utopia colectiva numa sociedade fragmentada e desconfiada como a moçambicana de hoje? A reconstrução de uma utopia colectiva no Moçambique de hoje exige três eixos fundamentais: uma memória histórica que recupere e reinterprete – de maneira crítica – o passado colectivo, para servir de inspiração (e alicerce) para novas gerações. A luta pela independência, por exemplo, não foi apenas uma guerra contra o colonialismo português, mas a construção de uma identidade colectiva.
Uma utopia colectiva não se constrói apenas com memórias, mas com uma visão de futuro. Isso exige um projecto nacional claro e mobilizador, capaz de reformular um horizonte comum de desenvolvimento, de solidariedade, de justiça social (…); um projecto inclusivo e democrático, que envolva diferentes sectores da sociedade – intelectuais, trabalhadores, jovens, mulheres, camponeses.
As universidades e as escolas podem desempenhar um papel essencial na formação de uma nova consciência colectiva. A intelectualidade e a juventude sempre foram actores centrais nas grandes mudanças históricas. Desde os movimentos anticoloniais (Noémia de Sousa, Craveirinha, Bertina Lopes, Luís Bernardo Honwana …) até as revoluções democráticas, foram estudantes, professores, escritores, artistas e pensadores que criaram os discursos que impulsionaram as transformações.
Os intelectuais têm a função de formular e disseminar as bases conceituais da nova utopia, na reinvenção de um horizonte comum. Isso significa ir para além da mera crítica ao presente e apresentar alternativas concretas. Ao invés de debates académicos cooptados por interesses políticos e económicos, a intelectualidade deve trabalhar para desmascarar as narrativas de fragmentação, que impedem a unidade. Em vez de reforçar divisões étnicas ou ideológicas, deve demonstrar que o destino de Moçambique é comum e interdependente.
É preciso recuperar a tradição do intelectual comprometido, à maneira de Dubois, Nkrumah, Cabral ou Mondlane; romper com o individualismo e ressuscitar o sentido de luta colectiva, sem cair em narrativas dogmáticas ou ultrapassadas. O grande desafio de qualquer utopia colectiva no século XXI é evitar dois extremos: o dogmatismo de velhas ideologias e o individualismo neoliberal. Para isso, é preciso um discurso novo, baseado em valores compartilhados.
As utopias que mobilizam sociedades não surgem de teorias abstractas, mas de valores profundos que já existem dentro das culturas. Em Moçambique, há tradições de solidariedade – respeito aos anciãos, vida comunitária e busca pelo bem comum. Esses valores precisam ser reinterpretados para o presente. Em vez de apenas criticar o individualismo, podemos recuperar a ideia de Ubuntu (eu sou porque nós somos) e aplicá-la às novas gerações de maneira prática – como princípio de justiça social, distribuição de riqueza e responsabilidade colectiva.
Precisamos de um discurso que inspire e mobilize emoções e energias colectivas. As grandes utopias do passado não foram apenas racionais – elas emocionaram. Para reconstruir uma utopia colectiva, é preciso usar narrativas que despertem sentimentos de esperança, orgulho e o sentido de pertença.
A reconstrução de uma utopia colectiva em Moçambique não é impossível, mas exige um esforço estratégico e contínuo. Precisamos recuperar nossa memória histórica, criar um novo projecto nacional, mobilizar a juventude e os intelectuais, e elaborar um discurso que inspire a acção. Só assim abandonaremos a angústia, a favor da esperança.