O Centro de Integridade Pública (CIP), uma organização da sociedade civil que há mais de 10 anos luta pela transparência, integridade e contra a corrupção na gestão pública, divulgou, na última quinta-feira, o relatório de estudo sobre os custos e consequências das dívidas ocultas, contratadas entre 2013 e 2014, por um grupo de empresários estrangeiros corruptos e altos funcionários do Governo moçambicano, no valor de 2 biliões de USD.
Apresentados pelo Director da organização, Edson Cortez, os dados revelam que os custos da referida fraude aos moçambicanos, só nos anos 2016-2019, foram de 11.3 biliões de USD, uma média de 403 USD por cidadão. Para além deste prejuízo, Cortez avançou que, nos próximos 10 anos, está programado que Moçambique pague cerca de 4 biliões de USD adicionais em custos directos (serviço da dívida), sem contar com o incalculável prejuízo económico que continuará.
A fim de chegar a esses dados, a organização explica, em relatório, que “para o cálculo dos prejuízos financeiros assumidos pelo Governo por parte dos cidadãos moçambicanos associados às despesas (monetárias) actuais e futuras relacionadas com as dívidas ocultas, adoptou-se uma abordagem sócio-económica”, numa “pesquisa quantitativa, analítica e descritiva de diversos documentos orçamentais e a relatórios, incluindo notas/notícias publicadas na internet”.
Durante a apresentação, que contou com dois auditórios, um virtual e outro presencial, o Director do CIP demonstrou que dos 11,3 biliões de USD de custos, 674.2 milhões de USD é valor pago pelo Governo, até 2019, em cumprimento do serviço das dívidas ocultas. Esse valor, diz Cortez, caberia para construir 50 mil salas de aulas, 898 centros de saúde (T2) e serviria ainda para financiar, em cerca de 34%, a Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH), braço empresarial do Estado no negócio de hidrocarbonetos, para participar nos projectos de gás da Bacia de Rovuma. Todavia, por efeito do escândalo, a ENH ainda carece de financiamento.
O pesquisador do CIP lembrou ainda que as dívidas ocultas causaram a redução repentina dos donativos externos após sua revelação em Abril de 2016, facto que desencadeou uma instabilidade fiscal e monetária que obrigou o governo a reduzir severamente os gastos públicos.
Como consequência, a fonte disse que, em 2016, a despesa pública real (em USD) foi reduzida para menos da metade do que era em 2014. “Essa redução da despesa pública atingiu os sectores que visam o bem-estar social. Comparando a média de três anos, de 2016-18, com os três anos anteriores, os gastos com a saúde e educação caíram em 1,7 bilião de USD, inteiramente devido às dívidas ocultas. Posto em termos per capita [por cidadão], o escândalo causou a cada cidadão moçambicano: 10 USD a menos no sector de educação, a cada ano; 7 USD a menos no sector de saúde, a cada ano”, detalha o relatório já disponível na página de Internet do CIP.
O Director do CIP disse ainda que o estudo, feito em parceria com a Christian Michelsen Institute (CMI) da Noruega, constatou igualmente que, por efeito das dívidas ocultas, há muitos indícios de que a pobreza aumentou durante os anos posteriores a 2015.
“O aumento súbito da inflação em 2016 e o aumento dos preços deixaram 2,6 milhões de pessoas abaixo do limiar da pobreza baseada no consumo, conforme mostram estudos que projectam níveis de pobreza, em 2016, usando dados mais recentes dos inquéritos às famílias (IOF 2014/15). Nesta base, estimou-se a proporção do aumento da pobreza a ser explicada pelas dívidas ocultas e constatou-se que, por causa do escândalo, pelo menos 1,9 milhão de pessoas ficaram abaixo da linha de pobreza baseada no consumo até 2019”, detalha o relatório.
Em estudo, o CIP constatou também que as dívidas ocultas trouxeram impactos a nível político, que se resumem “num país menos democrático e mais autoritário; mais contradições e conflitos debilitantes dentro do Estado e do sistema político; pior qualidade de governação e enfraquecimento de instituições estatais e descredibilização do regime e do governo”.
Sobre a contratação das dívidas ocultas
O CIP contextualiza que a história das dívidas ocultas em Moçambique começa quando, depois de 2010, indivíduos numa empresa franco-libanesa de construção naval baseada no Médio Oriente, a Privinvest, fazem contacto com gestores no banco Credit Suisse e algumas pessoas ligadas ao Governo de Moçambique com a proposta de um negócio bilionário.
O pressuposto era que, devido às receitas futuras decorrentes da exploração do gás recém-descoberto na bacia de Rovuma, Moçambique podia aceitar recursos financeiros dos bancos com a promessa crível de que facilmente teria a capacidade de reembolsá-los. Esta proposta de negócio – ou mais precisamente, o esquema – leva ao escândalo das “dívidas ocultas”, contratadas em 2013 e 2014 para três empresas públicas, nomeadamente, a Empresa Moçambicana de Atum SA (EMATUM), a Mozambique Asset Management (MAM) e a ProIndicus SA – todas tuteladas pelo Ministério da Defesa.
A dívida da EMATUM veio ao conhecimento público em 2013, enquanto as dívidas da MAM e ProIndicus permaneceram ocultas até Abril de 2016. As três entidades, criadas nos mesmos anos em que angariaram os mega empréstimos, apresentaram projectos de pesca e de segurança marítima usando o Credit Suisse e o Vnesh Torg Bank (VTB, russo) como parceiros financeiros. Estes bancos concederam empréstimos de cerca de 2 biliões de USD às três empresas.
O escândalo levou à detenção, em finais de 2018, do antigo Ministro da Economia e Finanças, Manuel Chang, na África Sul, a mando dos Estados Unidos da América e a outros 19 (de 20) arguidos encarcerados internamente em 2019, em prisão preventiva, com destaque para o filho do antigo Presidente da República de Moçambique, Ndabi Guezuba. Entretanto, desse universo, 11 foram em Março último libertos sob determinadas condições. (Evaristo Chilingue)