Director: Marcelo Mosse

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Actualizado de Segunda a Sexta

quarta-feira, 05 agosto 2020 03:52

Declaração de Estado de Sítio em Cabo Delgado e Estado de Calamidade Pública noutras províncias do país? *

Se já não há, como entende uma franja significativa de juristas, atentos à ratio da limitação temporal do estado de excepção constitucional e a princípios como unidade da constituição, democracia e legalidade constitucional, espaço para decretação de um novo Estado de Emergência (EE) pelas mesmas razões, uma eventual adopção de Estado de Sítio, a forma mais gravosa de estado de excepção constitucional, na província de Cabo Delgado – que, segundo uma declaração pública de 23 de Abril último do Conselho Nacional de Defesa e Segurança (CNDS) está em agressão externa – talvez não fosse uma medida excessiva, sendo que a pandemia da COVID-19 veio apenas agudizar o drama humanitário que grande parte da população daquela província experimenta desde Outubro de 2017. Para o resto do país, a decretação do Estado de Calamidade Pública talvez seja recomendável. Aliás, a lei fundamental (número 1 do artigo 290) não impõe mesma abordagem para todo o território nacional. Experiências de países como Quénia, França e África do Sul sugerem que a abordagem do tipo ‘one size fits all’, ou seja, uma única medida para todo o país, nem sempre é a mais correcta.  

 

No dia 22 de Março de 2020, as autoridades deram a conhecer, através do ministro da Saúde, Armindo Tiago, o primeiro caso do novo coronavírus, causador da COVID-19, no nosso país, o que figurou como mais uma questão de fundo à atenção do Governo, que já estava, desde Outubro de 2017, a lidar não só com os ataques dos insurgentes em alguns distritos da província de Cabo Delgado, além de, desde meados de 2019, ter-se-lhe ajuntado, à lista de grandes preocupações, as acções da auto-proclamada Junta Militar da Renamo na região centro do país, sob a liderança de Mariano Nhongo. Mas as ameaças causadas pela COVID-19 têm as suas próprias particularidades, com o potencial de levarem ao colapso até dos sistemas de saúde dos países mais ricos do mundo.

 

Na verdade, foi a ameaça da COVID-19 que levou a que o Presidente da República (PR), Filipe Nyusi, prestasse, a 20 de Março, uma comunicação à nação – antes mesmo do primeiro caso oficial no país e sem que um órgão constitucional como o Conselho de Estado estivesse devidamente constituído – na qual abordou a seriedade da ameaça, ao mesmo tempo que se adiantava na tomada de certas decisões, como a interrupção das aulas em todo o país. Dez dias depois (30 de Março), o PR voltou a terreiro, desta vez para anunciar que acabava de declarar o Estado de Emergência (EE) por calamidade pública, com efeito de 01 a 30 de Abril, tendo informado que já procedera ao envio do relevante Decreto Presidencial à Assembleia da República (AR), para efeitos de ratificação.

 

Convém recordar que a narrativa central das autoridades públicas, sobretudo dos quadros do Ministério da Saúde (MISAU), era de “atrasar o pico da pandemia” vis-à-vis as capacidades do sistema de saúde. Aliás, foi essencialmente com base nessa narrativa que o PR prorrogou, por três vezes, o Estado de Emergência, tendo a última prorrogação cessado no dia 29 de Julho de 2020, sendo, para todos os efeitos, certo que o fim formal do EE enquanto estado de excepção não acabou com a emergência de saúde pública que nos é colocada pela COVID-19.

 

Na história do nosso jovem Estado de Direito Democrático (ou mesmo no Moçambique pós-colonial), o país nunca viveu uma situação que justificasse a aplicação do regime jurídico do Estado de Sítio ou de Emergência que, actualmente, consta dos artigos 290 a 298 da Constituição da República de Moçambique (CRM). Esta foi a primeira vez que tal regime foi decretado, o que propiciou que viessem à tona algumas fragilidades do regime em alusão, bem assim da própria ‘situação condicionante’ de actuação do Governo durante a vigência do Estado de Emergência.

 

Com efeito, nos parece evidente que o quadro legal moçambicano sofre de três principais problemas que limitam, em alguns casos, a possibilidade de se contextualizar e responder pontualmente a alguns problemas: (i) a questão da descontextualização, termos em que ainda há legislação que é herança colonial; (ii) o mimetismo[1], que consiste na importação taxativa de modelos jurídicos de outros contextos que não encontram fundamento nas dinâmicas sociais e locais; e (iii) institucionalização da urgência do processo de produção legislativa, que se circunscreve na elaboração de diplomas legais para a resolução de problemas breves ou para sair de crises. Estes aspectos podem justificar, parcialmente, algumas limitações do regime jurídico moçambicano para cobrir casos excepcionais, tais como os associados ao Estado de Emergência.

 

Tendo como base a CRM actualmente em vigor (a de 2004), efectuamos, nas linhas que se seguem, uma avaliação do regime jurídico que acomodou o EE, extraindo, numa primeira fase, as limitações da sua implementação durante os últimos quatro meses. No segundo momento, propomos algumas saídas a partir de uma análise comparada de outros contextos, igualmente afligidos pela pandemia. 

  1. Um regime constitucional de Estado de Emergência com fragilidades

A pandemia de coronavírus expôs ao mundo, de forma geral, as deficiências em termos de gestão pública não só de saúde, mas, igualmente, das incertezas e, sobretudo, do papel do Estado na protecção das populações. Muitos Estados, incluindo aqueles conceituados como avançados, confrontaram-se com uma multiplicidade de limitações. Os [2], mesmo afectados relativamente tarde se comparados com os do Ocidente, ficaram mais expostos a diversas vicissitudes, não só económicas, mas sobretudo a fragilidades institucionais no seu funcionamento.

 

Partindo de um mimetismo de medidas tomadas ao nível ocidental, a base do regime legal dos Estados do Sul não estava preparada para as excepções que ditaram os mecanismos exclusivos das agendas públicas. Moçambique, no período pós-colonial, mexeu diversas vezes a sua Constituição; no entanto, estas mexidas eram mais focadas nas dinâmicas políticas de construção do novo Estado. Uma situação eminente de saúde pública, como a do coronavírus, nunca tinha sido cogitada. Entre precipitações, incongruências e receios, o cenário da pandemia revelou muitas limitações do nosso regime jurídico de “gestão de incerteza”. Apontamos aqui algumas limitações que o EE revelou e poderão, a nosso ver, orientar uma possível reforma do quadro jurídico atinente à gestão de incertezas.

 

(i)            Duração da declaração do Estado de Emergência

 

Uma questão que tem estado a suscitar debate, sobretudo entre os juristas, académicos, jornalistas e políticos moçambicanos, relativamente à duração do EE, tem que ver com o facto de não estar claro, pelo menos no texto constitucional, se há abertura ou não de espaço para que o PR declare novamente o Estado de Emergência, tendo esgotado todas as possibilidades de prorrogação. Parece que a resposta a esta questão não reúne consenso entre a opinião pública[3]. Por um lado, temos uma corrente que entende que, havendo agravamento das razões que determinaram a declaração do EE, há espaço para que seja, novamente, declarado o EE ou para que se agrave para o Estado de Sítio[4]. Por outro lado, uma outra corrente defende não haver espaço para uma declaração do EE ou de Sítio, sob o risco de se desvirtuar os limites de duração impostos pelo legislador. Aliás, para esta posição não se pode nesta opinião viver-se eternamente num EE, embora prevaleça a razão na origem do EE.

 

Antes de qualquer avanço na avaliação destas posições, há aspectos que carecem de um rigor conceptual para esclarecimento, nomeadamente no que concerne ao EE em distinção com a calamidade pública[5]. O EE, no que concerne à sua finalidade[6], visa evitar que haja um dano maior, no caso à saúde pública, por meio de adopção de medidas de excepção constitucional (limitação de direitos fundamentais). Partindo deste posicionamento, percebe-se que a declaração do EE, pelo PR, na situação em que Moçambique tinha apenas oito casos positivos de COVID-19, tinha por objectivo, na altura, evitar a ocorrência de um dano maior à saúde pública. Ainda mais porque nos comunicados de balanço dos primeiros 15 dias e de prorrogação do EE, o PR fez questão de salientar que as medidas adoptadas no âmbito do EE visavam atrasar o pico da pandemia, o que justificava, portanto, a declaração e as prorrogações do EE[7].

 

Quanto à calamidade pública, o objectivo já não é o de evitar a ocorrência de um dano maior, uma vez que este já ocorreu. Ou seja, a saúde pública já está em risco, já há perdas humanas, pessoas contaminadas e com uma evolução considerável. Aqui trata-se, entretanto, de lidar com esse dano (situação calamitosa) sem excepção constitucional com vista a repor a normalidade. Dito de outra forma, o contexto excepcional da anormalidade “estabilizou-se”, digamos. O PR, nos seus últimos comunicados, sublinhou a necessidade de voltarmos à normalidade, numa clara alusão de que a situação não se podia mais evitar, mas podiam-se elaborar mecanismos flexíveis de gestão. Nesta linha, parece razoável a assunção de se aprender e se socializar novas práticas de vida, imaginada sobre a presença do vírus que não mais se associa a uma excepcionalidade que necessite de um EE.

 

Nesta lógica, seria coerente passarmos do EE para à calamidade pública, onde não haverá mais excepção constitucional, podendo apenas ser adoptadas medidas excepcionais de condicionamento (ao rigor do termo, não limitação) do exercício de direitos fundamentais. Obviamente, o pressuposto não é tampouco de descartar o recurso ao EE, caso o trato da calamidade se agrave (por exemplo, se 20% da população estiver infectada) ou ocorram situações diversas ou adicionais àquelas que determinaram a declaração do EE.

 

Na verdade, porque a CRM não impõe, em termos literais, nenhuma limitação quanto ao número de vezes em que se pode declarar o EE, o que constitui uma fragilidade, sobretudo se se considerar que a declaração deste implica a suspensão temporária de alguns direitos e liberdades fundamentais. Como defendem alguns estudiosos da matéria:

 

“Deve-se entender que este pode ser accionado sempre que as situações o justificarem, mas nunca deve perdurar por tempo indeterminado, pois nesta situação, não havia suspensão de direitos fundamentais e sim, supressão. Como ensina o Professor Manoel Ferreira Filho, “a normalidade constitucional pressupõe a normalidade social”[8].

 

Com efeito, não havendo normalidade social, não haverá como manter a normalidade constitucional. Seria este o caso, por exemplo, da província de Cabo Delgado, que está numa situação diferente da das restantes províncias. A cidade de Pemba está, de facto, na fase de transmissão comunitária e algumas regiões da província estão a ser atacadas pelas acções dos insurgentes, activos, conforme referimos acima, desde Outubro de 2017. Parece-nos ser esta uma região que, pela situação que enfrenta, justifica-se a declaração, nela, do EE ou mesmo o seu agravamento, declarando-se Estado de Sítio (figura mais apropriada para as situações de invasão ou grave ameaça de invasão territorial ou perturbação constitucional). De referir que, a 23 de Abril último, o CNDS, órgão constitucional dirigido pelo PR, na sua qualidade de comandante-chefe das Forças de Defesa e Segurança (FDS), admitiu, pela primeira vez, que a província de Cabo Delgado está sob agressão externa[9].

 

No nosso entender, um mapeamento da cartografia da pandemia, associado a outros factores, pode justificar medidas diferenciadas. Importa, no entanto, salientar que, em qualquer uma das hipóteses, declaração ou não do EE ou de Sítio, a CRM impõe, no art. 298, ao PR o dever de, após a declaração do termo do Estado de Emergência, fazer uma comunicação à Assembleia da República (AR) com uma informação detalhada sobre as medidas tomadas ao seu abrigo (uma espécie de relatório). Ademais, apregoamos uma defesa sensível de todos os escalões das populações como pressuposto de procura de bem-estar comum, que não se resume apenas na saúde.

 

(ii)           A restrição de direitos fundamentais e o princípio da igualdade: o caso do ensino on-line

 

A igualdade é, desde a antiguidade, indissoluvelmente associada à democracia. Embora num Estado de excepção constitucional (de Emergência ou Sítio) se possa admitir a restrição de alguns direitos, liberdades e garantias fundamentais, o mesmo não se diz em relação ao princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 35 da CRM. Significa isto dizer que nos casos de estado de excepção constitucional, em que haja lugar à limitação ou restrição do exercício de direitos, liberdades e garantias fundamentais, deverá respeitar-se sempre o princípio da igualdade e não discriminação.

 

Acontece, porém, que no nosso caso, após determinação da suspensão de aulas presenciais do ensino pré-escolar até o universitário, decretada pelo PR, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 3 do Decreto Presidencial nº 11/2020 de 30 de Março (o que foi, na verdade, a confirmação do que se decidira, 10 dias antes, embora sem a necessária consubstanciação legal),  o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) recomendou a continuidade das aulas com recurso a meios virtuais/digitais (WhatsApp, Facebook, Zoom, Google Classroom, etc.)[10]. Entretanto, tendo em conta a realidade do nosso país, em que uma boa parte dos estudantes não possui um computador e/ou acesso pessoal à Internet, a aplicação desta medida criou desigualdades no que tange ao exercício do direito à educação. Deste modo, permitiu-se que os estudantes com melhores condições materiais (que são a minoria), e que possuem acesso à Internet pessoal e computadores, estivessem num nível diferente comparativamente aos que não dispõem das mesmas condições por simples infortúnio da vida.

 

Nestes termos, pode-se afirmar que, ao menos nos termos de acesso ao ensino, o EE contribuiu para reforço de desigualdades, uma vez que a disponibilidade de meios, como computador, Internet ou ainda televisão significa acesso a recursos. O acesso a um serviço básico, como a educação, participou na classificação económico-social das famílias para além das dificuldades diversas entre o meio urbano e rural. A existir uma planificação para retorno às actividades educativas, esta deve-se aprofundar através de um mecanismo de mapeamento das situações adversas impostas pelas restrições do EE.

 

(iii)         Ausência de um regime aplicável à modificação do Estado de Sítio ou de Emergência

 

A modificação do Estado de Sítio ou de Emergência verifica-se nos casos em que há alteração das circunstâncias que determinaram a sua declaração, podendo as providências e medidas constantes da declaração ser objecto de restrição ou redução. Deste modo, configuraria uma situação de modificação do EE se, por exemplo, se constatasse uma redução do nível de infecção pelo coronavírus e o consequente relaxamento/redução de algumas medidas adoptadas no âmbito do EE. É certo que, aquando da última prorrogação do EE, anunciou-se o relaxamento de algumas medidas restritivas (com particular destaque para o retorno gradual às aulas) mesmo sem alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação de restrições ao exercício do direito a educação no caso[11], eventualmente por conta da lógica do “novo normal” ou, nas palavras do PR, por conta da “importância do equilíbrio entre a saúde e a economia”[12].

 

No entanto, a experiência mostra que, de facto, uma vez declarado o EE ou de Sítio pode haver lugar à alteração das circunstâncias que determinaram a sua declaração, quer para o melhor, ou para o pior. E infelizmente, esta situação parece ter passado despercebida para o nosso legislador constituinte, que não cuidou de prever um regime aplicável às situações de modificações circunstanciais. Uma possível revisão constitucional – ordinariamente, só depois de Junho de 2023, tendo a última sido empreendida em Junho de 2018, e, extraordinariamente, através da assunção de poderes extraordinários pela AR, no quadro do que é exigível uma maioria de ¾ (três quartos) – seria uma oportunidade para a consolidação do regime atinente ao estado de excepção. Se a reforma for profunda, sendo esta uma “questão de limite” entre a democracia e a ditadura, talvez seja pacífico considerar a realização de um referendo.

 

(iv)          Outras fragilidades

 

Além dos aspectos elencados acima, a aplicação do regime de EE expôs outras fragilidades que vale a pena destacar. São os casos da ausência de um regime específico, fora do regime geral (do Direito Privado, conforme o Código Civil, que pode ser convocado como Direito subsidiário) aplicável aos casos de violação de direitos, liberdades e garantias que tiverem sido violados por declaração do estado de sítio ou do EE, ou por providência adoptada no âmbito da sua vigência, ferida de inconstitucionalidade ou ilegalidade, designadamente por privação ilegal ou injustificada da liberdade. Seria esta uma situação que corresponderia ao direito à indemnização nos termos do artigo 58 da CRM.

 

É assim, que por reconhecer que a aplicação do regime de EE não pode dar azo a arbitrariedades, o legislador português, por exemplo, previu a possibilidade de haver lugar à indemnização nas situações supracitadas (veja-se o n.º 3 do art. 2.º da Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro - Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência[13]). Outra situação que entendemos configurar uma fragilidade do regime em análise, e que nos parece ser pertinente fazer menção, corresponde à ausência de um prazo aplicável ao PR para a submissão da comunicação que este deve fazer à AR no termo do estado de sítio ou de emergência (art. 298 CRM). Tendo presente o princípio constitucional de separação e interdependência de poderes, constante do art. 134 da CRM, parece-nos que seria apropriado aplicar um prazo ao art. 298 CRM. Desta vez, o PR fê-lo de imediato (24 horas após o fim da última prorrogação do EE), mas questões essenciais como esta não podem ser deixadas ao arbítrio dos titulares de cargos públicos.

  1. Algumas experiências comparadas de levantamento de restrições face à COVID-19

Moçambique não agiu de forma cega ao declarar EE. Com efeito, muitas das medidas tomadas neste âmbito correspondem a uma transferência de  de soluções para fazer face à nova realidade. A classificação, por exemplo, das medidas por níveis foi uma solução importada. Se é verdade que muitos dos Estados, sobretudo africanos, usaram a Organização Mundial de Saúde (OMS) como fonte principal para produção de medidas, não é menos verdade que houve também uma , consciente ou não, de medidas entre Estados. Aliás, o desconhecimento da pandemia fez como que as medidas adoptadas fossem se questionando à medida do seu alastramento. Cada país que era atingido ia seguindo algumas propostas para o aperfeiçoamento das medidas contra a propagação do vírus – foi o caso, por exemplo, do uso da máscara em espaços públicos.

 

Neste contexto, vale a pena, mesmo que de forma rápida, ler outros contextos que evoluíram para a fase de desconfinamento e/ou relaxamento de certas medidas contra a propagação do novo coronavírus. Podemos aqui recorrer a três exemplos que, de forma pragmática, podem ajudar-nos a imaginar o período pós-EE. De um modo geral, os países que agendaram mecanismos de relaxamento o fizeram sem certeza de que a situação teria sido ultrapassada; aliás, existem experiências de retorno às medidas de restrição por causa de novos surtos de infecções.

 

(i)            França – depois da explosão dos índices de infecção na China, na Itália e na Espanha, a França configurava como um dos países com altos índices de contaminação. Alguns dos primeiros casos importados para Moçambique parece terem vindo mesmo da França. Entre Abril e Maio, a França atingiu números recordes de crescimento de infecções, passando de 191 para cerca de 3325 casos, com uma média de 200 casos de contaminação por dia. Por estes dias, estima-se em cerca de 30000 vítimas da pandemia[14]. Não há dúvida de que as condições sanitárias da França são incomparáveis as de Moçambique, mas vale a pena entender como este país passou para a fase de levantamento das medidas de restrições, embora com níveis bem altos de contaminação. O processo de restabelecimento da vida social e económica foi progressivo, com um mapeamento de zonas vermelhas, laranjas e verdes, que correspondiam a diferenciação de medidas a tomar ou a levantar para o “novo normal”. O facto é que a França continua com os números de novas contaminações a oscilarem entre crescimento e retrocesso, às vezes exponencial. O importante das medidas é que há uma compreensão da situação, o que participa não só no desenho de medidas de protecção, mas também no calendário de restituição das actividades, que se vai observando de forma gradual. Nos parece sugestivo o plano de relance da França, no sentido de ser feito não só de forma progressiva, mas também com o reforço da socialização das medidas preventivas, como o simples hábito de porte da máscara, assim como a diferenciação geográfica dos espaços de levantamento de medidas restritivas.

 

(ii)           África do Sul – é dos países africanos mais afectados, mas ao mesmo tempo o centro no qual gravita grande parte da economia do continente[15]. Sendo um país vizinho de Moçambique e com o qual o nosso país mais se relaciona economicamente, a situação na África do Sul parece nos dever interessar, em particular. Até ao fim do dia de ontem, a África do Sul tinha identificado 511.485 casos positivos, com 8.366 mortes[16]. Foi um dos países que tomou algumas medidas mais radicais para fazer face à pandemia, com um total fechamento da vida activa. O país implementa um plano de relançamento da economia, apesar de a sua estratégia denotar estar um pouco desorganizada, sobretudo depois que o sector da educação se viu a recuar, provavelmente porque as projecções, mas sobretudo as medidas de fazer face aos altos níveis de propagação, não foram necessariamente socializadas com o cidadão ordinário[17]. A experiência sul-africana é elucidativa da necessidade de um plano de gestão dos efeitos da COVID-19 muito alicerçado no cidadão. A imaginação governamental para fazer face à pandemia não deve parecer uma concepção da elite, deslocada da realidade social que lhe rodeia. Por isso mesmo que um processo de lock-down ou aquele de ensino por plataformas electrónicas categorizou os cidadãos, entre os que dispõem de capacidade e os outros. De pouco vale uma visão que se cega aos pressupostos jurídico-constitucionais se esta não se informar da real necessidade da sobrevivência quotidiana. Qualquer orientação apegada apenas aos aspectos de legalidade corre o risco de se empobrecer, quando a sua legitimidade vis-à-vis as necessidades de sobrevivência enfraquecem aquilo que parece ser o maior ganho do momento, o alinhamento com as autoridades públicas, contra um inimigo comum da saúde pública.

 

(iii)         Quénia – outra economia promissora da África Subsaariana, conta com cerca de 7900 casos positivos de COVID-19 dos quais 160 resultaram em fatalidade[18]. Diferentemente da África do Sul, no Quénia as medidas de restrição foram adoptadas de forma diferenciada. Há lugares como Nairobi, Mombasa e Mandera que conheceram fortes restrições de circulação. O plano de levantamento das restrições no Quénia é também feito de forma gradual, desde a reposição da circulação à abertura dos aeroportos. Um aspecto que nos perece interessante é a classificação da população propensa no desenho da estratégia de restabelecimento das actividades. Por exemplo, para as igrejas, o país definiu que as pessoas com menos de 13 anos e as com mais de 58 deverão continuar interditas de participar nos cultos. Esta modalidade de planificação pode permitir que populações mais vulneráveis sejam menos expostas. Os estudos sero-epidemiológicos que estão a ser desenvolvidos deverão sobretudo servir para este tipo de conselho para uma melhor abordagem dos procedimentos de recomposição da nova normalidade.

 

De qualquer das formas, as digressões por diferentes contextos sugerem que as posições de relaxamento das medidas de restrição não são necessariamente proporcionais ao total controlo da pandemia, muito menos indicativos de redução de casos de infecção. Estas são orientadas a partir do conhecimento da nova realidade, de reforço de medidas preventivas, assim como do investimento feito pelas autoridades para responder aos possíveis casos de nova eclosão, etc. A partir destes casos, nos parece sensato ponderar o processo de tomada de decisão de acordo com as demandas sociais, procurando construir equilíbrios entre os pressupostos sanitários e a sustentabilidade económico-social das populações, razão fundamental do Estado.

 

ü  Neste contexto, julgamos ser oportuno as autoridades moçambicanas considerarem, no que será empreendido, sobretudo a breve trecho, aspectos como os que a seguir sugerimos: Assumindo que a COVID-19 pode significar a convivência com a chamada “nova normalidade” por tempo considerável, talvez valha a pena considerar, respeitando-se, de entre outros princípios republicanos, o prazo mínimo de três meses entre a data de depósito de uma proposta de revisão constitucional e a data de início do processo atinente a essa finalidade (número 2 do artigo 299 da CRM), a possibilidade de revisão do regime aplicável ao Estado de Sítio e de Emergência, de modo a aprofundar o regime actualmente estabelecido, ainda que tal implique a deliberação de assunção de poderes extraordinários de revisão, nos termos do artigo 301 da CRM;

 

ü  Na eventualidade de se avançar com a opção atrás referida, deve-se considerar fortemente, até por uma questão de economia, a inclusão de outros aspectos visando a consolidação do ainda incipiente constitucionalismo moçambicano, como, por exemplo, a flexibilização/facilitação do acesso ao Conselho Constitucional (CC) – exemplos: petição subscrita por um mínimo de 10 organizações da sociedade civil ou por um mínimo de três partidos políticos) –, ou mesmo a reestruturação/reorganização do CC em secções, de modo a permitir que as decisões em primeira instância possam ser recorridas ao plenário do órgão. Seja como for, o processo deverá ser informado pelo princípio da ampla participação popular, consideradas todas as condições de segurança, sendo de desaconselhar fortemente um processo similar ao verificado quando foi da revisão de 2018, quase sem nenhuma participação popular;

 

ü  Sendo, para todos os efeitos, sobretudo se as normas constitucionais sobre o EE forem interpretadas em linha com os princípios da unidade da constituição, da democracia e da legalidade constitucional, possível gerir-se a situação a partir de leis administrativas, é tempo de se considerarem, ao nível da AR e do Governo, acções urgentes como as seguintes:

  1. Aprovação, pela AR, da Lei de Saúde Pública, cujo processo de elaboração foi iniciado há 3-4 anos, comportando questões importantes no que à execução das normas constitucionais sobre deveres dos cidadãos quanto à saúde pública diz respeito;
  2. Revisão, pela AR, da Lei de Gestão de Calamidades (Lei n.º 15/2014, de 20 de Junho), de forma a que as suas disposições atinentes ao regime de estado de calamidade pública por epidemia ou pandemia sejam aprofundadas, para melhor aplicação e sem recurso à interpretação, com o que se garantirão a certeza e segurança jurídicas;

iii. Aprovação, pelo Governo, de protocolos específicos, em forma de decretos, para a “nova normalidade”, priorizando-se, nisso, questões como continuidade do processo de ensino e aprendizagem, mas com garantia da salvaguarda da igualdade entre os cidadãos enquanto princípio fundamental do Estado Moçambicano.

 

ü  Há que ponderar fortemente na adopção de medidas específicas para certas geografias, como, por exemplo, um eventual Estado de Sítio em Cabo Delgado, ora sob uma insurgência (guerra civil para alguns) activa desde Outubro de 2017, que está, nos últimos meses, a causar um drama humanitário. Nos demais pontos do país, talvez seja recomendável um estado de calamidade pública (instituto diferente do EE por calamidade pública), ou seja, de gestão administrativa da pandemia da COVID-19, atentos à recomendação presidencial cujo cerne é a premência do equilíbrio entre a saúde e a economia, dadas as dinâmicas desta “nova normalidade”. 

 

ü  Qualquer decisão das autoridades públicas deve não só se basear em uma plena localização legal, bem assim numa imersão no entendimento das dinâmicas de sobrevivência quotidiana do cidadão ordinário. Senão corre-se o risco de acção legalmente correcta, no entanto com efeitos questionáveis em termos de legitimidade e assim enfraquecer o poder público estatal;

 

ü  O relaxamento das medidas de restrição de direitos fundamentais não deve ser entendido como alcance de solução contra a pandemia ou níveis baixos de infecção. Entra em jogo, aqui, a relevância de uma estratégia de comunicação arrojada e devidamente desdobrada em planos de comunicação visando objectivos específicos, pois o fim do EE não significa fim da emergência, como bem considerou António Costa[19]. A digressão comparada de outros contextos que implementam medidas de relaxamento mostra que a nova ordem é tomada tendo em conta o conhecimento do dano e na base dos esforços de gestão da situação que levou a declaração de EE.

 

ü  Na nova realidade, é urgente um posicionamento sobre o que se pode fazer mais do que o que não se pode fazer vis-à-vis o conhecimento do dano. Nestes termos as autoridades governamentais devem especificar as linhas de orientações das actuações colectivas construídas na base de princípio de fácil apropriação pelas populações.

 

Ana Sénia Sambo (Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.Egídio Guambe (Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar. In: Policy Brief número 10, de 03 de Agosto de 2020, do EISA-Moçambique

                                                                                                            

[1] Jean du Bois de Gaudusson, « Le mimétisme postcolonial, et après ? », Pouvoirs, n° 129, Le Seuil, mars 2009, p. 45‑55; Dominique Darbon, A qui profite le mime? le mimétisme institutionnel confronté à ses représentations en Afrique, L’Harmattan, 1993, p. 113‑138.

 

[2] Países do Sul é uma expressão utilizada em estudos pós-coloniais e transnacionais que pode referir-se tanto ao terceiro mundo como ao conjunto de países em desenvolvimento. Vide Jacqueline Anne Braveboy-Wagner, The foreign policies of the global south: rethinking conceptual frameworks, Boulder, Colo, L. Rienner, 2003.

 

[3] http://opais.sapo.mz/constituicao-da-republica-abre-espaco-para-decretar-novo-estado-de-emergencia, consultado no dia 29 de Julho, às 13:23h.

 

[4] Tal como o EE, o estado de sítio configura um estado de excepção ao regime constitucional quanto à protecção de direitos fundamentais. O que distingue o EE do estado de sítio é o facto deste último ser aplicável em situações mais graves associadas a agressão efectivas ou iminente por forças estrangeiras, grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática.

 

[5] De acordo com o glossário da Lei de Gestão de Calamidades (Lei n.º 15/2014 de 20 de Junho), calamidade corresponde ao sinistro causado por um fenómeno natural, biológico, geológico ou derivado da acção humana, em proporções susceptíveis de criar risco de vida, danos humanos e materiais, bem como a ruptura de infra-estruturas económicas e sociais de uma comunidade. Assim, calamidade pública refere-se à situação em que um desastre, seja natural ou não, afecta uma determinada região comprometendo consideravelmente o grau de resposta das autoridades públicas.

 

[6] Vide o Policy Brief n.º 7, publicado à 23 de Julho de 2020.

 

[7] Veja-se a título de exemplo o Comunicado à Nação de Sua Excelência Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República, sobre a Prorrogação do Estado de Emergência, pela 3.ª vez no âmbito da Pandemia do Coronavírus.

 

[8] FILHO, Manoel (2012), Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 38.ª edição, revista e actualizada, São Paulo, pp. 249.

 

[9] http://opais.sapo.mz/cabo-delgado-estamos-em-presenca-de-uma-agressao-externa-perpetrada-por-terroristas-cnds-.

 

[10] https://www.jornaltxopela.com/2020/05/educacao-em-mocambique-nos-tempos-de-covid-19-uma-reflexao-centrada-nas-escolas-rurais/, consultado em 29 de Julho de 2020.

 

[11] Por esta razão, 15 dias depois do anúncio do relaxamento de medidas, o PR anunciou o recuo nalgumas delas, em especial no retorno às aulas presenciais e celebração presencial de cultos religiosos.

 

[12] Comunicação à nação a 17 de Julho de 2020, qual balanço de meio termo.

 

[13] Disponível em: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1712&tabela=leis

 

[14] https://www.gouvernement.fr/info-coronavirus/carte-et-donnees consultado em 29 de Julho de 2020.

 

[15] A África do Sul controla, segundo o Banco Mundial, 80% do comércio que o continente africano faz com o resto do mundo.

 

[16] Para detalhes, visite o site sacoronavirus.co.za.

 

[17] https://sacoronavirus.co.za/ consultado em 29 de Julho de 2020.

 

[18] https://www.worldometers.info/coronavirus/country/kenya/ consultado em 29 de Julho de 2020.

 

[19] Primeiro-Ministro português. Ele assim se pronunciou quando Portugal terminou o Estado de Emergência por Calamidade Pública. 

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