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quinta-feira, 26 março 2020 05:22

Obituário - Carlos Serra (1941/2020): Morreu o sociólogo que “produziu” a sociedade moçambicana

O académico Carlos Serra, que morreu ontem em Braga, Portugal, vítima de um cancro diagnosticado muito recentemente, era uma das mentes mais brilhantes do pensamento sociológico moçambicano, um combatente pela mentalidade sociológica – ou seja, alguém que lutou aguerridamente para fazer conjugar a teoria com a realidade prática, tal como Aquino de Bragança (e Ruth First) inculcou nas fornadas iniciais de investigadores do Centro de Estudos Africanos (CEA), nos anos 80.

 

Era um dos mais engajados intelectuais moçambicanos, em contraposição com o intelectual funcional, espécime que pulula com tanta visibilidade na academia moçambicana dos nossos dias.

 

No inicio dos anos 70, Carlos Serra foi articulista do Notícias da Beira. Jornalista! Um contemporâneo dele na época no Chiveve lembra-se de “alguém cheio de excentricidades, um obstinado”. Quem tem memórias exuberantes dessa altura na Beira é o poeta e sociólogo Filimone Meigos. Não do jornalista, mas do professor de História. Quando soube da morte de Serra, Meigos fez uma arqueologia serrana na sua memória.

 

E lembrou-se disto: “No Liceu, depois das doses sobre o Império carolíngio, dos celtas e visigodos (...) tu foste o pioneiro a falar-nos da História de Moçambique. Pela primeira vez ouvi falar dos hotentotes, mwenemutapas, madzimbabwes e tais. Foste tu, mestre. E foste mais longe: levaste-nos ao Monte Chinhamapere para, in loco, vermos as pinturas rupestres...”.

 

O testemunho de Filimone Meigos recupera outra faceta de Carlos Serra, sua primeira encarnação académica, anterior ao sociólogo engajado: a de historiador. Em 1973, Carlos Serra vem a Maputo para estudar História na UEM. Com a Independência em 1975, ele e colegas, já com bacharelato concluído e com o “êxodo” de professores portugueses, se vêem envolvidos na organização do Departamento de História da UEM. Felizmente, o novo regime da Frelimo não mandou encerrar os cursos de ciências sociais. 

 

A historiadora Tereza Cruz e Silva, antiga directora do CEA, recorda-se do papel de Serra na elaboração do primeiro Manual de História de Moçambique do pós-independência: “História de Moçambique: primeiras sedentárias e o impacto dos mercadores 200/300/1886”. O manual foi justamente editado pelo nóvel departamento, em colaboração com a Tempográfica, então editora da famosa revista Tempo (na altura).

 

O manual foi dado à estampa em 1982. Cruz e Silva recorda-se da obra como um “marco fundamental” porque foi o primeiro livro de História de Moçambique, um país que ainda não conhecia da sua própria história. Nessa vaga de engajamento académico nos primórdios da nova Nação, os bacharéis assumiram as rédeas do ensino e trataram de organizar o novo curso de História no quadro de um Moçambique independente. Carlos Serra esteve profundamente envolvido nessa empreitada

 

Depois de alguns anos dedicando-se à Historia no CEA, Carlos Serra faz uma viragem em seus objectos de Estudo. Abraça a sociologia e é doutorado pela École Des Hautes Études En Sciences Sociales, de Paris, onde se apaixonaria por figuras incontornáveis da sociologia como Alain Touraine e Emile Durkheim.

 

Sobretudo Alain Touraine, em cuja obra ele busca seu principal referencial teórico para compreender os vários “objectos” e fenómenos que ao longo de quase três décadas viria a estudar, publicando livros e organizando seminários a partir do seu minúsculo gabinete no CEA, onde nunca chegou a ser Director pois, de acordo com a socióloga Conceição Osório, ele sempre evitou os “jogos do poder”.

 

Uma etnografia do quotidiano

 

Sua produção sociológica é vastíssima, não seria ele o sociólogo mais fecundo de Moçambique, de acordo com Patrício Langa, Presidente da Associação Moçambicana de Sociologia. Como director de pesquisa e co-autor, Serra estudou profundamente temas sobre identidades sociais, estigmatização, conflito e mestiçagem, etc. Teve também uma incursão pela sociologia eleitoral, problematizando o comportamento do voto centrado nas primeiras eleições autárquicas de 1998, com seu livro “O Eleitorado Incapturável”.

 

Depois vieram obras sobre racismo e etnicidade e poder, e o tráfico de menores em Moçambique (Tatá Mamã, Tatá Papá). Nos finais dos anos 90 e princípios de 2000, quando os linchamentos como justiça popular viraram moda em Moçambique, Serra se deu ao trabalho de dissecar suas motivações, chamando-lhe “uma ordem que apelava à desordem”.

 

O sociólogo Elísio Macamo escrevia recentemente à-propósito da profusão temática do trabalho de Serra o seguinte: “O pressuposto teórico desta etnografia do quotidiano não foi apenas o prazer de descrever as coisas, mas sim de encontrar um ponto de articulação daquilo que faz de nós moçambicanos e, portanto, diferentes de quem não é”.

 

Nesse artigo, publicado em Fevereiro, uma espécie de tributo à Serra na véspera da sua partida, Macamo, um dos mais representativos sociólogos das novas gerações (se calhar o sucessor de Serra na profusão da sua produção), arrisca-se a dizer que o agora finado académico foi o homem que “produziu” a sociedade moçambicana. “Ele produziu a sociedade na sua ‘oficina de sociologia’ no Centro de Estudos Africanos, como parte duma agenda intelectual alicerçada na descrição minuciosa e aturada daquilo que ele chamou de ‘crenças anómicas de massas’”.

 

O sociólogo barbudo

 

Mais recentemente, nos primórdios das redes sociais, Carlos Serra apaixonou-se pelo bloguismo, através do seu “Diário de um Sociólogo”, criado em 2006, com entradas diárias até seu último texto, publicado a 17 de Janeiro de 2020. A 19 de Janeiro, o blog anunciava que ele estava hospitalizado. O blog, enquanto não surgiram os facebooks e quejandos, foi uma referência incontornável de leitura diária em Moçambique. “Ele gostava de polemizar sobre tudo e chegou uma altura em que o blog era popularíssimo. Todos queriam aparecer lá”, lembra o jornalista Fernando Lima.

 

Quando se reformou, Serra estava preocupado com uma coisa: o facto de o CEA não ter uma revista científica regular. Ele estava empenhado em dinamizar qualquer nesse sentido, usando agora as oportunidades digitais.  “Morreu o homem, mas ficou a obra do Sociólogo! A mentalidade Sociológica, tão cara à Serra, perdeu um combatente, mas não o combate. Serra se foi, mas deixou-nos o testemunho”, diz Patricio Langa.  Os sociólogos moçambicanos queriam homenagear Carlos Serra ainda em vida, mas agora vai ser um “Festchrift Póstumo”, de acordo com Langa.

 

“Até já sociólogo barbudo”, despede-se de Serra outro de seus antigos alunos na UFICS, o também sociólogo Hélder Jauana, que se recorda sobretudo dos “novos combates pela mentalidade sociológica”, que o Professor inculcava na aulas e seminários de pesquisa. O corpo de Carlos Serra será cremado em Portugal, oportunamente, e suas cinzas trazidas a Moçambique, onde haverá uma homenagem pública. (Marcelo Mosse)

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