Estamos a menos de 48 horas de 2020. Ou seja, o ano de 2019 praticamente chegou ao fim. Tal como o ano passado, 2018, o ano que finda esta quarta-feira foi atípico e, certamente, a esmagadora maioria do povo moçambicano não quererá guardar qualquer memória.
E por ter mesmo chegado ao fim, “Carta de Moçambique” traz, na edição de hoje, os vários momentos que corporizaram o presente ano. O caso das “dívidas ocultas”, os ciclones Idai e Kenneth, as convulsões no maior partido da oposição, a Renamo, o recrudescimento dos ataques armados em Cabo Delgado, a assinatura do Acordo de Paz e Reconciliação de Maputo, a visita de sua santidade papa Francisco e a realização das VI Eleições Gerais foram, sem dúvidas, alguns acontecimentos que ficaram cravados, pelas melhores ou piores razões, na memória dos cerca de 28 milhões de moçambicanos.
Janeiro
O ano de 2019 começa de forma peculiar. Inicia, praticamente, na ressaca da detenção do antigo ministro das Finanças dos dois mandatos de Armando Guebuza, Manuel Chang, acto ocorrido a 29 de Dezembro de 2018, sob ordens da Justiça dos Estados Unidos da América. Em causa estavam os empréstimos de 2.2 mil milhões de USD, contratados a favor da EMATUM, PROINDICUS e MAM, à revelia dos órgãos de soberania.
Ainda em 2018, precisamente a 31 de Dezembro, Manuel Chang é, pela primeira vez, apresentado em Tribunal de Kempton Park, em Joanesburgo, para a formalização da sua detenção a 9 de Janeiro.
O país voltou a ser “tema de conversa” a 5 de Janeiro devido à detenção do Jornalista Amade Abubacar, em Macomia, devidamente credenciado e em pleno exercício da sua profissão.
Logo a seguir, a 7 de Janeiro de 2019, muito em reacção aos vigorosos passos dados pela Justiça dos EUA, a Procuradoria-Geral da República de Moçambique, liderada por Beatriz Buchili, anunciava ter constituído 18 arguidos no âmbito do processo no 1/PGR/2015, relacionado com as “dívidas ocultas”.
A 17 de Janeiro, em Congresso realizado na Serra da Gorongosa, tida como o “santuário” do maior partido da oposição, Ossufo Momade é escolhido Presidente da Renano. No cargo, Momade sucedia o “carismático” e líder histórico daquela formação política, Afonso Dhlakama, falecido em Maio de 2018, vítima de doença.
Para ascender ao mais alto posto do partido, Ossufo Momade (410 votos) teve de derrotar o irmão mais novo do falecido líder histórico, Elias Dhlakama (238 votos), o antigo Secretário-Geral do partido, Manuel Bissopo (sete votos) e o deputado Juliano Picardo (cinco votos).
Fevereiro
A ordem para prender os implicados no caso das “dívidas ocultas”, emanada pela PGR, praticamente marcou o mês Fevereiro. Muito a reboque do que acontecia na vizinha África do Sul e devido à pressão popular, a PGR ordenou a detenção de nove arguidos. São eles: Ndambi Guebuza (filho de Armando Guebuza), Gregório Leão (antigo director dos Serviços de Informação e Segurança dos Estado – SISE), António do Rosário (Presidente do Conselho de Administração da EMATUM, PROINDICUS e da MAM e director da Inteligência Económica no SISE), Inês Moiane (Secretária particular de Armando Guebuza), Ângela Leão (esposa de Gregório Leão), Teófilo Nhangumele, Bruno Tandane, Elias Moiane e Sérgio Namburete.
Março
As feições que o caso das “dívidas ocultas” estava a ganhar internamente bem como “fora de portas” voltaram a marcar as primeiras semanas do mês de Março. A detenção do “testa-de-ferro” do “casal Leão”, Fabião Mabunda, a “recusa” de três ex-banqueiros do Crédit Suisse, nomeadamente Andrew Pearse, Detelina Subeva e Sugran Singh, de serem extraditados para os EUA, onde já se encontrava detido Jean Boustani e o facto de Washington ter-se oposto à extradição de Manuel Chang para Maputo foram alguns exemplos.
O marco, e pelas piores razões, foi mesmo a passagem do ciclone Idai que fustigou a região centro país, cujo epicentro foi a cidade da Beira, província de Sofala. Concretamente, visou as províncias de Sofala, Manica e Zambézia, onde para além de destruir várias infra-estruturas públicas e privadas tirou a vida a 603 pessoas, provocou 1.5 milhão de deslocados e destruiu 800 mil hectares de cultura diversa.
À data, o Presidente da República, Filipe Nyusi, chegou a afirmar que se estava perante um “verdadeiro desastre humanitário”, tendo, na sequência, depois de uma sessão do Conselho de Ministros, realizada na Beira, se decretado “luto de três dias e situação de emergência nacional”.
Ainda no mês de Março, precisamente, no dia 22, a PGR anunciava novos passos no processo das “dívidas ocultas”. O Ministério Público (MP) comunica a remessa ao Tribunal Judicial da cidade de Maputo da acusação contra os 20 arguidos do processo dos empréstimos não declarados.
De acordo com o despacho do MP, os arguidos estão indiciados pela prática de corrupção por acto ilícito, peculato, branqueamento de capitais, associação para delinquir, abuso de confiança e chantagem, abuso de cargo ou função, falsificação de documentos e uso de documentos falsos.
Aliás, na ocasião, anuncia a apreensão de 15 imóveis, seis viaturas, uma máquina pesada de construção civil e o congelamento de 31 contas bancárias, por haver indícios de serem bens adquiridos ilicitamente pelos arguidos.
É de notar que foi também em Março que a antiga embaixadora de Moçambique nos Estados Unidos de América, Amélia Sumbana, foi condenada a 10 de prisão efectiva pelo cometimento dos crimes abuso de cargo e de função, peculato, branqueamento de capitais e violação do direito de legalidade e respeito do património público. A par da reclusão, a antiga diplomata foi condenada a indemnizar o Estado no valor de 17.393.076,00 Mts.
Abril
Se o mês de Março terminou em meio a uma “tragédia”, Abril não começou, igualmente, de forma diferente. Novamente “trágico”! Embora não nas mesmas proporções, o país volta a ser assolado por mais um ciclone, desta feita, o Kenneth. A província visada foi a de Cabo Delgado, que há muito sofre com os ataques protagonizados por homens armados. Nesta circunscrição territorial, o Kenneth ceifou a vida de 45 pessoas e afectou outras 250 mil.
A detenção da antiga Embaixadora de Moçambique em Angola, Helena Taipo, no dia 16 de Abril é outro aspecto digno de realce. A ex-ministra do Trabalho do reinado de Armando Guebuza foi detida acusada de estar envolvida no desfalque de 100 milhões de meticais do Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), o chamado “banco dos pobres”.
Em meio à contestação por parte dos partidos da oposição, os órgãos de gestão eleitoral no país (Secretariado Técnico de Administração Eleitoral e a Comissão Nacional de Eleições) arrancaram com o recenseamento eleitoral. E porque a contestação marcou o início do processo, o fim não poderia ter sido diferente. A oposição voltou a apontar o dedo acusador aos órgãos eleitorais, afirmando que sabotaram o processo em zonas de influência da oposição e de terem empolado o número de eleitores na província de Gaza, isto com o intuito de favorecer o partido Frelimo.
No dia 29 de Abril, Ossufo Momade escolheu a dedo a nova figura para dirigir a parte executiva do partido. A escolha recaiu em André Magibire. No cargo, Magibire, que exerceu as funções de secretário particular de Afonso Dhlakama e de mandatário nacional do partido, substituiu Manuel Bissopo.
Maio
O mês de Maio começa, praticamente, com o debate no parlamento, levantado pelos partidos da oposição, sobre a forma como foi gerida a ajuda canalizada ao país por singulares e instituições nacionais bem como internacionais, para fazer face aos efeitos dos ciclones Idai e Kenneth. O Primeiro-Ministro, Carlos Agostinho do Rosário, o chefe do Governo nas sessões de Informações e Perguntas ao Governo, não conseguiu dizer quanto o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades Naturais (INGC) recebeu em termos monetários, como os referidos montantes foram aplicados e ainda o que restara nos cofres.
A 21 do mesmo mês, ainda no âmbito do caso das dívidas ocultas, o antigo ministro da Justiça e Serviços Correcionais da África do Sul, Michael Masutha, decidiu, no último dia do seu mandato, que o antigo ministro das Finanças devia ser extraditado para Moçambique. Em cima da mesa, Masutha tinha a deliberação do juiz William Schutte, do Tribunal de Kempton Park, que apontava que Manuel Chang era extraditável para Moçambique bem como para os EUA. A decisão, no entanto, foi contestada pela sociedade civil moçambicana que através do Fórum de Monitoria e Orçamento (FMO) recorreu da mesma.
Junho
O sexto mês do ano começa com o entendimento alcançado entre Filipe Nyusi e Ossufo Momade, tendo em vista o enterrar do machado da guerra. À saída do encontro entre ambos, havido em Chimoio, no dia 02, o PR emitiu o comunicado conjunto onde, essencialmente, estabelecem Agosto como sendo o mês para assinatura do “Acordo de Paz e Reconciliação”.
Os dois líderes acordaram que o Desarmamento Desmobilização e Reintegração iniciava exactamente naquele mês de Junho e, seguir-se-ia, em Julho, o regresso e reintegração dos guerrilheiros da Renamo e, por fim, a Assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades Militares.
Na ressaca dos entendimentos entre os dois líderes, surge a auto-proclamada Junta Militar, liderada por Mariano Nyongo, a contestar a liderança de Ossufo Momade. Essencialmente, o grupo exigia que o actual presidente da “perdiz” abandonasse o partido, precisamente por estar a desvirtuar por completo aqueles que eram os ideais defendidos por Afonso Dhlakama e o ADN do partido.
No domínio económico, a Anadarko e seus parceiros anunciaram no dia 18 de Junho a Decisão Final de Investimento para exploração de Gás Natural Liquefeito na Bacia do Rovuma (GNL) num investimento orçando em 23 biliões de dólares norte-americanos.
Ainda em Junho, o Conselho Constitucional (CC) considerou inconstitucional o empréstimo contruído pelo Governo a favor da EMATUM em 2013. Um dia depois de declarar inconstitucional o empréstimo daquela empresa atuneira, Hermenegildo Gamito, “sem drama nem trauma”, renunciava ao cargo de Presidente do CC.
Julho
Já o mês de Julho começa com a Renamo a avançar para o CC por causa dos controversos números do recenseamento eleitoral em Gaza. Por outro lado, um outro grupo, também da Renamo, mas já em Inhambane, encabeçado por João Machava, reiterava a demissão de Ossufo Momade da liderança do partido.
No decurso do mês em referência, o Instituto Nacional de Estatística veio a público desmascarar os órgãos eleitorais no que à polémica sobre os números de Gaza diz respeito. Por via do seu director de Censos e Inquéritos, Arão Balate, que mais tarde veio ser despromovido, disse que os números apresentados pelo consórcio CNE/STAE “extravasam as teorias demográficas e só poderão ser alcançados em 2040”.
Os ataques armados começam a ganhar novas feições e o Presidente da República vem a público afirmar que estão a ser financiados por falsos empresários.
E porque na África do Sul o campo de manobra ficava cada vez mais reduzido, Manuel Chang decidiu, no passado dia 19 de Julho, renunciar ao seu mandato de deputado da Assembleia da República, com fito de ampliar o ângulo de acção no processo de extradição para o país.
Na sequência das eleições na África do Sul é constituído um novo Governo e o novo Ministro da Justiça e Serviços Correcionais, Ronald Lamola, anula a decisão do seu antecessor. Lomola revogou a decisão de Michael Masutha por entender que violava o protocolo da SADC e a Constituição da África do Sul.
O informe sobre a situação geral da Nação praticamente marca o fim do mês de Julho. Tal como disse o chefe do Estado, “o Estado da Nação é de esperança e de um futuro promissor”.
Agosto
A assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades Militares e o Acordo de Paz e Reconciliação de Maputo marcam o arranque do mês de Agosto. A 1 de Agosto, Sofala assistiu à Assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades Militares e a cidade de Maputo, isto a 5 de Agosto, o de Paz e Reconciliação de Maputo.
Os acordos tinham por objectivo pôr um ponto final aos confrontos armados entre o Governo e a Renamo. Debalde! Enquanto os dois líderes rubricavam os acordos, a região centro era palco de ataques a viaturas de carga, de passageiros bem como os postos policiais.
No dia 08 de Agosto, a PGR deduz a acusação definitiva contra os 20 arguidos do processo 18/2019-C, relativo às “dívidas ocultas”. Na essência, o MP manteve a acusação contra os 20 arguidos, tendo acrescentado apenas dois crimes se comparado com a acusação provisória. Trata-se dos crimes de violação de regras de gestão e de posse de armas proibidas.
A 16 de Agosto recolhe aos calabouços o Presidente do Conselho de Administração do INSS, Francisco Mazoio, na sequência da investigação sobre o negócio com CR-Aviation.
No dia 19 de Agosto, em conclave na Serra da Gorongosa, província de Sofala, a auto-proclamada Junta Militar elege Mariano Nhongo como seu novo líder.
A 31 de Agosto arrancou a campanha eleitoral tendo em vista as VI Eleições Gerais, cuja votação estava agendada para 15 de Outubro.
Setembro
O mês de Setembro começa com a visita de sua Santidade Papa Francisco. Papa Francisco aterrou em Maputo quando eram 18h e 25min, do dia 04 de Setembro. Esta foi a segunda visita da mais alta estrutura da Igreja católica Apostólica Romana. Primeiro foi o Papa João Paulo II em 1988. O Papa Francisco deixou o território nacional a 6 de Agosto.
No dia 12 de Agosto Bernardo Chirinda, antigo embaixador de Moçambique na Federação Rússia, é condenado à pena de 10 anos e oito meses de prisão efectiva e uma indemnização ao Estado no valor de 8.661. 568, 00 Mts.
Na esteira das celebrações dos 55 anos das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, o Presidente da República reconheceu que o país está a ser alvo de ataques camuflados protagonizados por pessoas desconhecidas e com interesses também pouco claros.
Outubro
Nas celebrações do 04 de Outubro, os ataques na região centro do país bem como Cabo Delgado não deixaram de merecer um pronunciamento do chefe do Estado. Na ocasião, Filipe Nyusi disse estar atento aos fenómenos e que não iria permitir que mais moçambicanos fossem assassinados.
Entretanto, apesar do discurso vigoroso do chefe do Estado os ataques na região centro e na província de Cabo Delgado não cessaram.
A 15 de Outubro o país foi a votos para escolher o Presidente da República, os deputados da Assembleia da República e os membros das Assembleias Provinciais, donde saíram os Governadores de Província. Apesar das insanáveis irregularidades, Filipe Nyusi e Frelimo foram, primeiro, confirmados vencedores pelos Órgãos Eleitorais e no passado dia 23 de Dezembro proclamados vencedores pelo Conselho Constitucional.
Filipe Nyusi venceu o escrutínio presidencial com os folgados 73 por cento. A Frelimo “venceu” as legislativas (tem maioria qualificada) e também triunfou nas provinciais, devendo, por isso, eleger os 10 Governadores de Província. (Ilódio Bata)