A animosidade entre o clã Guebuza e o actual Chefe de Estado, Filipe Nyusi, tendo como pano de fundo a prisão de Ndambi Guebuza, vai marcar o processo das “dívidas ocultas” até ao fim. A prisão de Ndambi foi vista como uma grande afronta à família do antigo Presidente Armando Guebuza.
No mesmo dia em que ele foi detido preventivamente, a 16 de Fevereiro, Ndambi declarou que estava a ser vítima de uma perseguição política. De quem? Nunca foi claro. Mas nas entrelinhas ficava patente que o alvo era Filipe Nyusi, a quem muitos dos implicados sempre quiseram arrastar como parte da orquestra que concebeu o calote.
Agora, essa animosidade foi transportada para o processo. De acordo com o Despacho de Pronúncia do caso, a que “Carta” já teve acesso, a defesa de Ndambi Guebuza, encabeçada pelo advogado Alexandre Chivale, suscitou as seguintes questões prévias: i) a nulidade das declarações de Filipe Nyusi; ii) a ilegalidade e nulidade processual do Relatório de Auditoria da Kroll; e iii) a aplicação da Lei da Amnistia (Ndambi queria ser amnistiado).
Ndambi alegou que as declarações de Filipe Nyusi em sede de instrução preparatória encontravam-se comprometidas porque o Conselho de Estado não autorizara o PR a depor como declarante. O Ministério Público (MP) contra-argumentou dizendo que, de acordo com a Constituição da República, “o Conselho de Estado é um órgão de consulta do Presidente da República e, pela sua composição, nos membros do Conselho de Estado não se contempla a figura do Chefe de Estado”.
A nulidade foi suscitada pelo facto de o Procurador Alberto Paulo, que instruiu os autos, ter endereçado, a dado momento do processo, um pedido de esclarecimentos a Nyusi quanto ao seu alegado papel no calote. Em resposta, Nyusi disse que preferira “prestar declarações” e sugeriu o dia, a hora e o local para o efeito (o seu gabinete de trabalho).
E foi ouvido, por Alberto Paulo, na qualidade de declarante no dia 8 de Agosto de 2018. A razão dessa audição assentava no facto de que, na altura da contratação dos empréstimos, Nyusi era Ministro da Defesa, com papel relevante e cimeiro na criação do Sistema Integrado de Monitoria da Costa moçambicana.
Mas na referida audição, Filipe Nyusi afirmou que não sabia como foi desencadeado o processo da contratação da dívida junto do Crédit Suisse e que não tinha domínio sobre os contratos subscritos pelas empresas (EMATUM, MAM e Pro-Índicus) para aquisição de equipamento junto da Abu Dhabi Mar e Privinvest, franco-libanês Iskandar Safa. Dessas declarações não resultou nada de substancial que implicasse o PR.
Quanto ao relatório de auditoria da Kroll, cujo teor foi usado para alimentar parte de arcaboiço incriminatório do caso, Ndambi Guebuza defendeu que ela (a auditoria) resultava de uma “ingerência e uma afronta ao princípio da soberania nacional”.
O MP rebateu esse argumento, alegando que, dado a sofisticação e transnacionalidade dos factos constantes nos actos, o Procurador Alberto Paulo solicitou ao Ministério das Finanças peritos da área financeira que pudessem prestar o devido apoio por via de uma auditoria. “E no lugar de pessoas físicas, optou-se por uma pessoa jurídica, neste caso uma empresa independente internacional, que pudesse não só auditar as três empresas Pro-Índicus, MAM e EMATUM, mas todo o processo de contratação das dividas, ou seja, o contrato de financiamento e de fornecimento de bens”. Aliás, repisou o MP, “a auditoria realizada pela Kroll resultou de um acordo celebrado entre o Governo e Kroll” e, portanto, não se tratava de nenhuma ingerência externa.
Ndambi Guebuza tentou também uma amnistia (nos termos da Lei 17/2014, de 17 de Agosto, Lei da Amnistia), alegando que algumas das acções (que desencadearam o calote) visavam responder também aos ataques perpretados pelos homens da Renamo a partir de 2013, o que pressuponha não apenas uma resposta momentânea, mas também “questões relacionadas com a recolha de informação (...) avaliação de situações próprias de uma estrutura organizada de um serviço de segurança nacional”.
O MP derrubou esta pretensão. Referiu que a Lei da Amnistia cobria apenas os crimes contra a Segurança do Estado (previstos na Lei 19/91, de 16 de Agosto). E repisou que os crimes de que Ndambi era acusado, nomeadamente “chantagem, associação para delinquir, falsificação de documentos, abuso de confiança e branqueamento de capitais”, encontravam-se fora do âmbito de uma amnistia nos termos solicitados.
Aliás, tal como apontou o Assistente do caso (a Ordem dos Advogados), a amnistia cobria aspectos ligados às hostilidades militares em Sofala, mas Ndambi praticou seus crimes nas viagens que fez a Kiel, na Alemanha, a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, entre Dezembro de 2011 e Janeiro de 2012.(Marcelo Mosse)