Está iminente o cerco definitivo à imprensa em relação à cobertura dos ataques terroristas, sobretudo na província de Cabo Delgado, que é vítima da insurgência desde Outubro de 2017. O facto é que a Assembleia da República está prestes a aprovar uma proposta do Governo de punir todo o indivíduo que publicar informações que alertam a possibilidade de ocorrência de qualquer ataque terrorista.
A referida pretensão consta do nº 2 do artigo 19, da proposta de Lei que estabelece o regime jurídico de prevenção, repressão e combate ao terrorismo e proliferação de armas de destruição em massa, que se encontra em debate na Assembleia da República desde ontem. O supracitado diploma legal irá substituir a Lei nº 5/2018, de 2 de Agosto, que estabelece o regime jurídico específico aplicável à prevenção, repressão e combate ao terrorismo e acções conexas aos actos e organizações terroristas.
De acordo com o número 2 do artigo 19, “aquele que intencionalmente difundir informação segundo a qual um acto terrorista foi ou é susceptível de ser cometido, sabendo que a informação é falsa é punido com a pena de prisão de 8 a 12 anos”.
O desejo do Governo está a ser questionado pelo facto de colocar em causa as liberdades de imprensa e de expressão, previstos no artigo 48 da Constituição da República. O primeiro a colocar em causa esta pretensão foi o MISA-Moçambique que emitiu, na passada terça-feira, um comunicado, anunciando ter submetido, na Assembleia da República, a sua posição face ao risco de limitação das liberdades de expressão e de imprensa.
Segundo o MISA-Moçambique, o número 2 do artigo 19 apresenta-se “bastante subjectivo e passível de diversas interpretações” quanto à noção de “falsidade” da informação veiculada sobre uma presumível acção terrorista.
“De facto e objectivamente, a veracidade de informações de um presumível acto terrorista é verificável. Todavia, o mesmo não se pode dizer da “susceptibilidade” de ocorrência, porque tal resulta de inferências, de percepções em função do contexto, do ambiente e dos dados à disposição do enunciador da informação”, defende a organização, frisando que “mantendo-se tal como se propõe, estar-se-ia a assumir a proibição expressa do debate em torno do terrorismo e de qualquer fenómeno a ele associado”.
Já nesta quarta-feira, o documento esteve em debate na Assembleia da República, tendo sido aprovado na generalidade com votos da Frelimo e abstenção das duas bancadas parlamentares da oposição. A abstenção da Renamo e do MDM (Movimento Democrático de Moçambique) deveu-se exactamente ao conteúdo vertido no número 2 do artigo 19. A bancada da Frelimo aceitou apenas reduzir a moldura penal de 8 a 12 anos para 2 a 8 anos de prisão.
Segundo Arnaldo Chalaua, deputado da Renamo, a “perdiz” absteve-se por entender que “estamos perante uma violação grosseira” da Constituição da República, porque o número 2 do artigo 19 “restringe os direitos fundamentais que emanam da Constituição da República”.
“Reprimir a liberdade de expressão é forma do terrorismo”, defende.
Já o MDM defende haver uma absoluta necessidade de se proteger os direitos fundamentais, na medida em que a proposta “facilita as escutas, a suspensão de direitos, o desrespeito da privacidade, a violação da correspondência (…) e promove a prisão dos profissionais de comunicação social e activistas sociais”, segundo Silvério Ronguane.
Por seu turno, a bancada da Frelimo, partido no poder, defende que um Estado de Direito, como Moçambique, “não se funde com mentiras, calúnia, “inventices”, que causam danos e pânico nas famílias e na sociedade, em geral”.
“Nós, a Frelimo, somos a favor da Liberdade de Expressão, conforme o plasmado no artigo 48, da Constituição da República, mas somos contra a divulgação pública de informações falsas ou grosseiramente deformadas, relativas ao terrorismo, pois, isto causa uma insegurança e desordem pública. Por isso, estes indivíduos que perpetuam este tipo de atitude devem ser severamente punidos, conforme a Lei”, defendeu Jovial Setina.
Punição para quem divulgar “informação classificada”
Para além de punir quem publicar informações sobre possíveis ataques terroristas, o Governo pretende também punir quem publica informações classificadas sobre o terrorismo. Por essa razão, o número 1 do artigo 19 estabelece que “aquele que, por qualquer meio, divulgar informação classificada no âmbito da presente Lei, é punido com a pena de prisão de 12 a 16 anos”.
Mais uma vez, o MISA-Moçambique se opõe contra esta iniciativa do Governo. “Esta disposição reveste-se, em si, de injustiça, ao penalizar o jornalismo assim como os cidadãos em geral, e não a quem tem o dever de salvaguardar o «Segredo de Estado», no caso, o servidor ou funcionário público detentor de tal informação classificada”, defende a organização.
Refira-se que, por várias vezes, o Governo tentou desacreditar e até diabolizar as notícias que eram reportadas pela imprensa privada sobre a ocupação de aldeias e vilas pelos terroristas, na província de Cabo Delgado, alegando serem notícias falsas. No entanto, com o avanço dos insurgentes no terreno e a chegada das tropas estrangeiras, foi paulatinamente assumindo que alguns territórios do país estavam nas mãos dos terroristas.
Refira-se ainda que os órgãos de informação, incluindo “Carta”, divulgaram, algumas vezes, alertas de possíveis ataques terroristas que eram difundidos nas aldeias e que, mais tarde, viriam a ser concretizados. Neste caso, o Governo e seus grupos de choque (o famoso G15) sempre apelidaram alguns jornais, incluindo “Carta”, de serem mensageiros dos terroristas.
Por essa razão, o MISA-Moçambique entende que o artigo 19 constitui um enorme retrocesso aos ganhos alcançados com a aprovação da Lei nº 34/2014, de 31 de Dezembro (Lei do Direito à Informação) e do respectivo Regulamento (Decreto nº 35/2015, de 31 de Dezembro).(Carta)