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sexta-feira, 11 setembro 2020 06:54

Álvaro Carmo Vaz: “A Ordem dos Engenheiros deve garantir que a engenharia é feita com a responsabilidade e a seriedade que se exige”

É membro fundador e primeiro Bastonário de Ordem dos Engenheiros de Moçambique. É o primeiro Professor Catedrático do País. Dirigiu a Faculdade de Engenharia da Universidade Eduardo Mondlane. Aceitou conceder-nos uns dedos de conversa para falar, de forma resumida, sobre a sua vida. Desde a infância em Goa, onde nasceu, e a passagem por Portugal até fixar-se em Moçambique. Um amante das letras, do cinema, do teatro e da música que teve uma vida dedicada à engenharia e à academia. Conheça, nas próximas linhas, o membro nº1 da OrdEM, o Prof. Álvaro José da Fátima de Carmo Vaz. 
 
Sabe-se que o Professor Carmo Vaz nasceu em Goa, depois teve uma passagem por Portugal e veio estabelecer-se em Moçambique. Como é que foi a sua infância até à altura em que chegou a Moçambique? 
 
Eu sou de Goa e a minha família é goesa. Quando a Índia tomou Goa, em Dezembro de 1961, saímos, eu e minha família, e passámos por Portugal, porque o meu pai era funcionário do Banco Nacional Ultramarino e a minha mãe, professora do ensino primário. Estivemos uns dois meses em Portugal até aos meus pais serem colocados, já em 1962, em Lourenço Marques. 
 
Chegaram a Lourenço Marques e o que aconteceu? 
 
Quando chegámos, vínhamos com algumas limitações e dificuldades económicas e fomos morar no Alto-Maé. Eu já tinha feito o 3º ano de liceu em Goa, então fiz o 4.º e o 5.º anos no Liceu António Enes, actualmente Escola Secundária Francisco Manyanga. E tive sorte porque quando entrei, em 1962, o Liceu tinha acabado de ser inaugurado, fui um dos que o estreou. Entretanto, mudámo-nos para o bairro da Polana. E então fiz o 6.º e o 7.º anos no Liceu Salazar, que veio a ser a Escola Secundária Josina Machel. 
 
Sei também que durante essa fase de adolescência esteve sempre envolto num mundo de letras/artes e vivenciou muito o cinema, o teatro e a música.  Como é que desse mundo saiu um engenheiro? 
 
Essa é uma boa pergunta. Até ao 5.º ano de Liceu, eu era bom aluno a quase todas as disciplinas, das duas secções, Letras e Ciências, mas principalmente a Matemática, Física e Português. Quando fiz os exames de 5.º ano, tive umas notas altíssimas a essas três disciplinas em que era muito bom e ficou-me aquela dúvida: para que lado é que vou? Naquele tempo, as opções eram orientadas de uma forma muito pragmática em função da área que dava os melhores empregos. E, na altura, quem ia para Letras não tinha muitas alternativas, fazia a licenciatura e acabava por ser professor de Liceu. Havia também a alternativa de Direito, mas essa era uma área que não me interessava. E, portanto, acabei por ingressar naquilo que na altura se chamava a alínea (f). Era uma alínea que dava para uma variedade muito grande de cursos: engenharia, medicina, agronomia, biologia, química, etc. E já tinha mais ou menos ideia de que queria fazer engenharia. O meu envolvimento com as letras era por via da leitura. Fui um leitor voraz desde criança. E gostava muito de cinema e de teatro. Entre 1966 e 1971, fez a sua licenciatura em Engenharia Civil. 
 
Como era a dinâmica dos estudos com toda aquela envolvência de um Moçambique em busca da independência? 
 
Esses anos de universidade foram para mim muito importantes porque, no modelo em vigor naquele tempo, todas as disciplinas eram anuais. Começávamos o ano lectivo em Outubro e só tínhamos exames em Junho/Julho. Durante esse intervalo todo, éramos deixados mais ou menos à solta. As únicas coisas que eram obrigatórias eram as aulas práticas e os relatórios das aulas do laboratório. E chumbava-se por faltas. Fora isso, cada um via como é que organizava o estudo, por isso, tínhamos imenso tempo livre. Na Universidade, tinha sido criada a Associação Académica de Moçambique, que foi muito importante na minha vida. A Associação tinha áreas muito diversas. Comecei a colaborar com a Associação em dois sectores: na chamada secção de textos e na secção de futebol. A Associação organizava bailes, excursões e convívios, para além de participar em provas federadas e universitárias de várias modalidades e de dar apoio diverso aos estudantes, mas, aos poucos, foi ficando politizada por causa da guerra colonial. Íamos tendo notícias esparsas do que se passava em Portugal e também do que se passava aqui com a luta de libertação. E os estudantes, no geral, e isso aconteceu também comigo, foram ficando cada vez mais politizados, mais envolvidos na contestação ao regime colonial. 
 
Mencionou aqui a questão de futebol, chegou a praticá-lo? 
 
Não para além daquele que todos os miúdos jogam. 
 
E já nessa altura tinha decidido ficar permanentemente em Moçambique? Já que depois de independência escolheu ficar em Moçambique em detrimento de ir para Portugal. 
 
A decisão de ficar em Moçambique foi uma decisão difícil que tomei ainda antes do 25 de Abril em Portugal. Essa foi uma decisão que muitos dos que tinham ascendência portuguesa tiveram de tomar quando da independência. Para mim, era perfeitamente claro qual era a opção que ia escolher. Foi um grande desgosto para os meus pais, mas… 
 
O que pesou para essa decisão?
 
Basicamente, foi o sentimento de que eu era moçambicano. Também andava muito entusiasmado com a Frelimo, com Samora Machel, com o projecto socialista e com a ideia de que ia contribuir para o país novo. Essa possibilidade de ser participante na construção de um país novo era entusiasmante. Nessa época, após a independência, muitos jovens foram chamados a assumir os destinos do país que acabava de nascer. 
 
Que memórias guarda dessa época? 
 
Aquela foi uma época em que não discutíamos decisões tomadas mais acima. Diziam-te “vais ser director disto” ou “vais para Cabo Delgado” e ias com a maior boa vontade. Nós, na Faculdade de Engenharia, ficámos com uma carência muito grande de professores. Os professores eram portugueses e deixaram Moçambique. Eu, que na altura tinha 25 anos de idade, era dos mais veteranos dos que tinham ficado. Houve outros colegas meus que mais tarde, em 1977/78, foram sendo chamados para outras funções. Eu fui assumindo funções à medida que era chamado. Fui chefe do departamento de Engenharia civil, criei o Gabinete de Relações Internacionais da Universidade, fui Director da Faculdade de Engenharia uns anos mais tarde. Quando se deu o 25 de Abril em Portugal, eu e a minha mulher tínhamos tudo preparado seguir para o doutoramento em Setembro de 1974, tínhamos já bolsas de estudo, íamos para a universidade de Manchester, mas cancelamos tudo. Não íamos sair numa altura tão importante. Acabámos, por isso, por ir para a pósgraduação só em 1980, no IHE, em Delft. E depois, no meu caso, o doutoramento, no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. 
 
Fale-nos um pouco da sua carreira
 
Eu fiz toda a minha carreira na Universidade, apesar da colaboração na área das águas com a Direcção Nacional de Águas, foi a área em que eu me especializei. Na Universidade, segui todos aqueles passos habituais. Fiz o mestrado na Holanda, em Delft, depois o doutoramento em Portugal, passei a Professor Auxiliar, mais tarde concorri para Professor Associado. No ano 2000, fiz as provas para Professor Catedrático, fui o primeiro Professor Catedrático da Universidade Eduardo Mondlane e deste país. E continuei com a minha actividade de dar aulas, fazer investigação e algum trabalho administrativo até que me reformei em 2007. Na reforma ainda continuei a dar aulas, mas já como docente em tempo parcial. Fui também bastonário da Ordem dos Engenheiros de Moçambique de 2003 a 2010, não foi fácil porque tivemos de criar a OrdEM mas avançámos com uma série de iniciativas interessantes. E, ainda em termos da minha actividade, trabalhei durante trinta anos como consultor, na CONSULTEC, o que me deu possibilidade de trabalhar intensamente em muitos dos principais projectos que se fizeram em Moçambique na área da Hidrologia e Gestão dos Recursos Hídricos. Em 2015/16 decide aventurar-se no mundo literário já como escritor, o que resultou numa homenagem a uma geração da qual faz parte. Como foi essa experiência? Nestes últimos anos, fui ficando com mais tempo livre e foi aí que surgiu a ideia de um livro fora da área de engenharia, porque também fiz um livro de engenharia, em 2011, com um colega do Instituto Superior Técnico, de Portugal, infelizmente já falecido, o Prof. João Reis Hipólito. O livro chama-se “Hidrologia e Recursos Hídricos” e já vai na terceira edição. É usado como livro de texto não só na Universidade Eduardo Mondlane mas também em algumas universidades de Portugal e, disseram-me, na Universidade Agostinho Neto, em Angola. Este outro livro, um romance, “Um Rapaz Tranquilo – Memórias Imaginadas”, surgiu não só porque comecei a ter mais tempo livre mas também porque comecei a ter uma preocupação, a de que estava a cair no esquecimento o papel desempenhado por esta minha geração, que tinha vinte e pouco anos na altura da Independência, que teve esse sonho de participar na construção de Moçambique, que teve, durante aqueles primeiros anos de Moçambique independente, um papel de algum relevo por causa do abandono massivo de técnicos portugueses e teve de assumir cargos de muita alta responsabilidade, muitas vezes fazendo das tripas coração. Essa história não estava a ser contada, corria o risco de ficar esquecida e eu achei que valia a pena contá-la. Para escrever o livro, tive de ler muito, consultar imensa documentação, não só aqui em Moçambique mas também em Lisboa. Quando chegou a altura da escrita, não sabia que forma dar a toda essa informação recolhida porque não sou historiador, não sou sociólogo. Então resolvi dar-lhe a forma de um romance. 
 
E ficou satisfeito com o resultado final? 
 
Às vezes dá-me vontade de reescrever o livro, mas sim, acho que o livro ficou bom. As pessoas gostaram de o ler, teve até uma tiragem grande para o contexto moçambicano, foram 750 exemplares. Foi lançado em Abril do ano passado e, em Janeiro deste ano, já estava esgotado. Agora estamos a fazer a segunda edição. Já estaria feita, se não fosse o problema da COVID-19 que atrasou as coisas, não tanto aqui em Moçambique mas sobretudo em Portugal. O livro é impresso em Portugal e houve uns meses em que parou tudo. Mas estamos a contar que em Outubro poderá estar disponível nas nossas livrarias. 
 
E podemos esperar por mais livros do género literário? 
 
Não, não podem. Eu quis muito fazer “Um Rapaz Tranquilo”. Qualquer outro livro pode surgir se houver inspiração, mas sem promessas. 
 
Em 2003, criou-se a Ordem dos Engenheiros de Moçambique. E foi eleito Bastonário da organização. Que sonhos/ambições nortearam os fundadores da Ordem?
 
A ideia de criar-se uma Ordem dos Engenheiros já era antiga. Já tinha havido iniciativas nesse sentido, mas que nunca tinham chegado a concretizar-se. A dado momento, conseguiu-se avançar, preparou-se os Estatutos, com muito mérito da Comissão Instaladora, composta, entre outros, pelos engenheiros Manuel da Conceição e Maqueto Langa. Ficou tudo organizado para que houvesse eleições, ganhámos e estabeleceu-se a Ordem. Eu acho que é uma instituição útil e necessária aqui em Moçambique. E que recebeu do Estado a responsabilidade de garantir que o trabalho da área de engenharia é feito com a responsabilidade e a seriedade que se exige. Portanto, há uma responsabilidade muito grande que o Estado moçambicano passou para a Ordem e esta tem de estar à altura de a assumir. 
 
Sente que a Ordem está a corresponder a essa responsabilidade ou precisa fazer mais? Eu agora estou fora, mas se calhar por isso é também mais fácil falar e acho que sim. Acho que a Ordem deve fazer mais, tornar-se mais útil aos engenheiros. Por exemplo, o retomar o Boletim vai ser extremamente útil, ao permitir maior ligação entre os engenheiros e uma maior interacção. As condições, hoje, são mais difíceis do que há cerca de vinte anos, quando a minha direcção tomou posse. Houve uma verdadeira explosão de instituições de ensino superior a leccionarem cursos de engenharia. E o que nós sentimos é que há umas que licenciam de facto pessoas capazes de serem engenheiras mas há outras em relação às quais eu, pelo menos, tenho dúvidas. A Ordem tem procurado estabelecer uma ligação com o Conselho Nacional de Avaliação de Qualidade (CNAQ), que é um órgão do Ministério de Educação e Desenvolvimento Humano, no sentido de verificar a qualidade dos que se licenciam para fazerem a inscrição na Ordem dos Engenheiros, que é uma condição para se poderem chamar engenheiros. Penso que a Ordem pode fazer mais, por exemplo, mais palestras, promover mais debates. Mas a Ordem tem avançado muito noutros aspectos e, com estas duas últimas direcções, houve avanços muito importantes que não foram conseguidos na minha direcção, como os Núcleos provinciais, que se têm mostrado, alguns deles, bastante activos. E isso cria uma maior proximidade com os engenheiros. Agora, a Ordem tem um problema, e todas as direcções têm sentido isso, que é o facto de haver algum entusiasmo no início mas, à medida que o tempo vai passando, o número de colaboradores ir diminuindo. E as instituições acabam sendo feitas muito pelas pessoas. As direcções até podem ter umas boas ideias mas, se não tiverem colaboradores, a capacidade de as pôr em prática fica muito limitada. E a verdade é esta: a disponibilidade para este trabalho, que é um trabalho voluntário, é pequena. Eu percebo que as pessoas têm as suas ocupações mas o meu apelo é que todos os membros colaborem um pouco mais para levar avante as óptimas ideias que surgem. 
 
Sei que hoje está a colaborar com um programa de música na RM. Qual é o espaço que música ocupa na sua vida? 
 
No início desta entrevista, falei de literatura, cinema e teatro e devia ter incluído música porque acho que não sei viver sem música. Sempre ouvi música e acho que a música para mim, e para toda gente, é indispensável. Agora, se me perguntar de que tipo de música é que gosto, respondo-lhe como o maestro português Freitas Branco: há dois tipos de música, a boa e a má. Eu gosto da música boa. Eu ouço muita música clássica e ouço música pop e rock, mas só a dos anos 50, 60 e 70. Ouço aquele jazz que se tocou até aos anos 40, a evolução do jazz a partir dai já não mexe comigo da mesma maneira. Gosto da música moçambicana dos anos sessenta e setenta. Mas gosto também de outros estilos musicais, música da América Latina, do Chile, mexicana, cubana, brasileira, tenho um gosto bastante eclético. O programa da RM que referiu é aquela escassa meia hora que a rádio dedica semanalmente à música clássica e eu tenho vindo a colaborar já há alguns anos com o grande Carlos Silva. Como neste ano se comemora a passagem de 250 anos de nascimento do genial compositor clássico Ludwig van Beethoven, eu fiz uma séria de 17 programas sobre a vida e a obra dele que começaram a ser emitidos no primeiro domingo de Agosto e se prolongam até 22 de Novembro. 
 
Casado? 
 
Sim, com uma engenheira civil. 
 
Filhos? 
 
Dois, um dos quais é engenheiro civil. A minha irmã também é engenheira civil, há uma falta de imaginação notável na família. (in Revista da Ordem de Engenheiros de Moçambique)

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