Vimos o quanto custou, ao longo da Historia, a ousadia de pensar diferente relativamente aos cânones e padrões oficiais. E então qual será o sentido de pensar diferente no Moçambique contemporâneo? Parece que qualquer resposta a esta pergunta implica uma compreensão do que seja “Moçambique contemporâneo”, isto é, o Moçambique do presente.
Como é que se caracteriza o Moçambique de hoje?
O período particular em que realizamos este evento, assinalando o dia mundial da Filosofia, parece caracterizar, de forma muito eloquente, o perfil social e politico do Moçambique contemporâneo. Este conflito eleitoral, em que estamos mergulhados, resume bem o perfil de um país em grave crise geral; de uma sociedade cujo corpo é atacado por um cancro violento; uma sociedade com as suas bases de sustentação abaladas, correndo, mesmo, o risco de, a qualquer momento, desabar!
E que causas estarão por detrás desta crise, cujo desfecho é ainda imprevisivel? Parece que podemos identificar as raizes, as causas desta crise, num sistema de governação absolutamente bloqueado; um sistma de governo inadequado para garantir, minimamente, o cumprimento das três principais funções clássicas do Estado: a segurança do povo; a aplicação da justiça de forma igual para todos, e a promoção do bem-estar económico, social e cultural de todos os cidadãos.
A seguranca do povo e do seu território está gravemente ameaçada, por um lado. Por outro, o povo sente a justiça formal, a justiça dos tribunais, cada dia mais distante de si, e mais gravemente, a justiça social, a justica distributiva, de acesso e beneficio da riqueza nacional, cada dia mais distante, e reduzido a mera quimera.
A marca das desigualdades sociais aprofunda-se a cada dia, com o contínuo aumento do fosso entre um grupo que acumula riqueza de forma ostensiva e por vezes, até escandalosa, e a vasta maioria, que se afunda na mais abjecta miséria. Num texto que publica na sua conta do Facebook, no dia 17 de Novembro corrente, o sociólogo Elisio Macamo faz uma caracterização deste grupo privilegiado, dando-lhe a designação, muito sugestiva, de ““elite do atraso “... uma classe política que vive do acesso aos recursos do estado para a sua própria reprodução – governo e oposição”.
Dias antes, falando no programa “Grande Entrevista” da STV, outro respeitado académico moçambicano, o pedagogo Brazão Mazula, tinha caracterizado este grupo como “alta burguesia que se serve do partido para se enriquecer. (Este grupo) não produz nada e não cria empresas nem empregos; é um grupo que vive longe do povo; está lá (no Partido) por status; para ganhar imunidade...”
É este o Moçambique contemporâneo em que assenta a presente crise eleitoral. E este contexto é sustentado por um discurso oficial que explora até à exaustão a legitimidade histórica, resultante da luta pela libertação da terra do jugo colonial, feito heróico de todo o povo moçambicano, entretanto privatizado por essa minoria predadora, e transformado em sua “muralha da China” com um fim claro: a manutenção do status quo do monopolio geral do poder, em todas as suas acepções.
E em que pode consistir um pensar diferente daquele instrumental à manutenção deste status quo?
Esse pensar diferente vai consistir em abordar, de forma tão honesta e franca quanto possível, as razões da crise profunda em que a sociedade moçambicana mergulhou. Vai consistir em inquirir sobre a qualidade das políticas públicas aprovadas e a consistência da sua implementação. Pensar diferente vai consistir em negar a existencia de Homens, Mulheres, leis ou regulamentos que sejam sagrados, portanto revestidos de intocabilidade bíblica, mesmo que comprovadamente hostis ao bem-estar geral e à vida harmoniosa na sociedade.
Pensar diferente no contexto contemporâneo de Moçambique pode consistir em advogar por um sistema de governo mais representativo dos cidadãos e dos seus legítimos interesses; por um sistema de governo mais adequado a uma distribuição mais equitativa do poder e dos recursos da Nação. Um sistema de governo com instituições menos vulneráveis à captura pelo crime organizado; instituições públicas protegidas de manipulações a favor de agendas e interesses privados, fora da lei e prejudiciais ao Bem Comum. Um pensar diferente apontando para um Estado de direito democrático, que promova a cidadania e politicas ousadamente concebidas para mitigar as desigualdades de género e as assimetrias regionais.
Mas, no presente contexto, este pensar diferente não pode ser expresso livremente, sem consequências. Para todo o pensar diferente; para todo o pensar susceptivel de provocar tremor aos paradigmas oficiais, de questionar de forma fundada o status quo, para esse tipo de pensamento, há-de sempre haver a correspondente.... “santa inquisição”, com o seu séquito de arautos, a que o povo chama de “lambe-botas”. E esta Santa Inquisição” não precisa de ser legal, ou institucionalizada.
Esta “santa inquisição” cobra o custo da “ousadia” de pensar diferente. E o preço pode tomar mútiplas formas, como: a marginalização; a pura ostracização no local de trabalho; o bloqueio ao acesso a oportunidades públicas, como ascensão a cargos públicos;a promoções na carreira; ao acesso a concursos de obras públicas ou de prestação de serviços, entre outras. Tudo como forma de pressão para a desistência ou “rendição” daquele que ousar pensar diferente. E o lema é claro e simples: “doa a quem doer”!
No limite, o pensar diferente no Moçambique contemporâneo pode incluir a quebra das próprias pernas, fracturadas à paulada na berma de uma estrada. Ou mesmo o risco de ser crivado de balas, no escuro da noite, senão mesmo em plena luz do dia.
Concluindo: pensar diferente no Moçambique contemporâneo, não sendo proibido por lei, ele não é, contudo, totalmente gratuito. Sobretudo considerando uma sociedade em permanentes crises e todas mal resolvidas ou, simplesmente, escondidas como poeira debaixo do tapete: aquele que tiver a ousadia de levantar este tapete... deve contar com o risco de lá estar à sua espera um escorpião, pronto para o atacar com o seu venenoso ferrão. Pela sua ousadia!
(Excerto de uma comunicação feita no ambito do dia mundial da Filosofia, assinalado no dia 21 de Novembro de 2024).
O ambiente político em Moçambique continua a deteriorar-se. Consequentemente, vai continuar a deteriorar-se o ambiente social e económico.
Com efeito, o país está virtualmente paralisado há já duas semanas, isto é desde o dia 21 de Outubro, vivendo uma das maiores crises pós-eleitorais da sua curtissima experiência democrática.
As primeiras e principais vítimas deste contexto é a população pobre, que vive do que consegue angariar na rua, em cada dia, e o sector que cria riqueza e oferece algum emprego, o sector empresarial.
A aparição do candidato presidencial, Venâncio Mondlane, esta Terça-feira, através das redes sociais, apelando para uma nova onda de manifestações, de uma semana, a partir do dia 31 de Outubro, transmite uma mensagem de profunda desesperança para o país e grave preocupação geral: a de que o ambiente pode rapidamente vir a sair do controlo. Porque nessa mesma ocasião, Venancio Mondlane desqualificou a abertura ao diálogo, publicamente manifestada pela FRELIMO, na semana passada, dizendo que as acções violentas da Polícia, nomedamente em Mecanhelas, contra adeptos do partito Podemos, não confirmam vontade de diálogo.
Pelo contrário, o apelo de Venâncio Mondlane para manifestações visando escritórios de órgãos eleitorais (STAE e CNE) pelo país fora, num contexto inflamado, em que já foram dados sinais muito claros de grave animosidade popular contra a Polícia....cria fundados receios de níveis inimiginaveis de violência.
A estratégia da Podemos e do seu candidato presidencial até parece estranha ou incongruente: ainda esta semana o partido Podemos submeteu recurso ao Conselho Constitucional, no qual rejeita os resultos eleitorais comunicados pela Comissão Nacional de Eleições, que dão vitória àFRELIMO e ao seu candidato, Daniel Chapo.
Pelo contrário, no seu recurso, baseado na sua própria contagem, o Podemos reivindica vitória para si , com 138 lugares na Assembleia Republica, e para o seu candidato, com 53.30% dos votos dos eleitores. O pensamento lógico levava à conclusão de que, ao assim proceder, o Podemos e o candidato presidencial por si apoiado estavam declarando publicamente que, descordando dos resultados apresentados pela CNE, vão apostar nos meios, mecanismos e instituições legalmente estabelecidos para dirimir conflitos eleitorais.
Ora, as declarações, no dia seguinte, de Venâncio Mondlane, apelando para um levantamento geral à escala nacional, a culminar em Maputo no dia 7 de Novembro, relativizam profundamente a relevância do recurso interposto junto do Conselho Constitucional. A menos que Podemos e Venâncio Mondlane estejam, de alguma forma, desalinhados estrategicamente.
De todo o cenário mas próximo possível, além das consequências políticas, cada vez mais difíceis de prever, são evidentes e graves as seguintes: por um lado, o povo - que há muito esgotou a capacidade de consentir mais sofrimento – vai ainda viver dias de insuportavel martírio: além do alto risco de mais mortes violentas, milhares de familias vão passar fome, porque privadas de acesso à rua, da qual sobrevivem no seu dia-a-dia.
Por outro lado, os impactos sobre o sector produtivo empresarial vão ser incalculáveis. Uma economia tão frágil quanto a de Moçambique, fortemente dependente de crédito bancário, por sua vez muito caro, sofre abalos “sismicos” com a mínima” ventania” , e o presente contexto tende a atingir niveis de tempestade! Os riscos, portanto, desta nova onda de manifestações são altissimos.
Contra os riscos de mais violência e mais sangue; de mais sofrimento das populações, sobretudo nas zonas urbanas; contra abalos sobre a fragilíssima economia nacional, com consequências de longo termo graves – contra todos estes riscos, só pode haver um e único apelo, a todos os actores políticos em “cena”, incluindo o candidato presidencial Venâncio Mondlane: que haja alta sabedoria nos vossos actos; procurarando insensantemente as soluções menos dolorosas para o povo e para o país. Que prevaleça a boa ponderação de interesses; o bom senso e o equilibrio. Que haja a coragem de recusar o fatalismo: a coragem que nos falta!
O candidato da FRELIMO à presidência da República, Daniel Francisco Chapo, afirma que, se for eleito, vai reactivar o Fundo de Desenvolvimento Distrital, mais popularmente conhecido por programa dos 7 milhões, iniciativa emblemática da presidência de Armando Guebuza.
A ideia, muito aplaudida pelas populações, e com grande potencial para catalizar iniciativas empresariais juvenis locais, pode vir a ser um dos marcos definidores da governação de Daniel Chapo, na sua reiterada determinação de luta tenaz contra a corrupção, se impedir que ela seja, de novo, transformada em mecanismo estatal de fomentar clientelismo partidário – o que passaria por delegar a sua gestão a uma instituição vocacionada e protegida de pressões políticas.
Ao falar recentemente num comício em Chiure, o Secretário-Geral da FRELIMO colocou nos mesmos termos da iniciativa original, os fins a que o fundo deverá de ser destinado: estimular o desenvolvimento socio-económico local, financiando iniciativas de geração de renda, com os joven na linha da frente, porem sem excluir outros empreendores elegíveis, designadamente mulheres.
Chapo evocou esta iniciativa com visivel convicção, e articulou com segurança o potencial que o Fundo representaria na monetarização da economia rural e na promoção de fontes de renda para os jovens e mulheres, através da criação, consolidação ou expansão de mini empresas. E foi entusiasticamente ovacionado, indicação de recepção positiva da ideia, ainda muito fresca na memória das populações.
Menos não seria de esperar. Com efeito, o projecto “7 milhões” , teoricamente enquadrado na estratégia de fazer do distrito polo do desenvolvimento, foi das empreitadas da governação de Armando Guebuza que mais simpatia terá granjeado junto das populações, primeiro limitada ao meio rural, e mais tarde, alargada ao combate à pobreza urbana. Porque foi, a todos os titulos, uma iniciativa inovadora. Com um grande potencial para ajudar a mudar o paradigma dominante, de “pedir apoio”, inimigo da “auto-estima” ,outra das bandeiras do discurso Guebuziano.
Mas, se é inegavel o impacto “galvanizador” da iniciativa, ao promover a cirulação de dinheiro no campo e estimular a ideia de empreender e, consequentemente, de assumir e gerir riscos próprios – se isso tudo foi verdade – é também indiscutivel que, em grande medida, o fundo viu os seus objectivos oficiais disvirtuados e, em alguns casos, pervertidos.
Com efeito, numa primeira fase, o fundo foi posto nos Gabinetes dos administradores distritais sem agenda nem critérios de aplicação claros , resultando na cobertura de gastos superfluos, como a construção de vistosos alpendres ...para “receber condignamente as presidências abertas” - como ouvimos no Distrito de Moma - ou no seu uso como meio para “massagear” duvidosas fidelidades partidárias. Nas fases seguintes a iniciativa perdeu as suas caracteristicas de fundo rotativo, pois os níveis de reembolso ficaram bem abaixo dos 20 por cento, como foi na época relatado.
Ainda que estes “desvios” não tenham, de forma alguma, retirado todo o mérito à iniciativa, parece porém relevante compreender-lhes as motivações, para evitar a sua repetição, no caso de sua retoma no próximo ciclo de governação.
Obviamente que uma definição inequivocamente (mais) clara dos objectivos do Fundo e dos critérios de elegibilidade é uma condição since qua non, para a sua gestão transparente e aberta à monitoria e prestação pública de contas. Esta condição será certamente crucial, se o novo Presidente da República estiver efectivamente determinado a atingir um outro objectivo critico da sua governação: o combate efectivo à corrupção. Pois a transformação de iniciativas como esta em mecanismos estatais de premiação à militância partidária foi sempre, sobretudo ao longo dos lútimos 20 anos, um dos maiores incentivos à corrupção, cujo combate sempre embelezou a retórica oficial.
Daniel Chapo, em diferentes ocasiões, quer de entrevistas com orgãos de comunicação social, quer em campanha eleitoral, tem sido muito vocal no discurso de combate à corrupção, “não só com leis e discursos, mas de forma efectiva” (sic) .
De outro modo, reeditar-se-ão os episódios de Dondo e de Mukukuni, nas provincias de Sofala e de Inhambane, respectivamente, que na verdade replicados através do país inteiro No primeiro caso, em pleno dialogo com as populações, mobilizando-as para a necessidade de devolução do fundo recebido, um ancião disse ao administrador do Distrito: “Mas esse dinheiro afinal não é para nos agradecer pelo nosso voto a favor da FRELIMO? Agora...devolver...como?”.
Por seu lado, em Mukukuni, uma localidade remota da baia de Inhambane, sempre destemida como sede de terríveis feiticeiros – conhecidos localmente como “dzindroyi”, quando o Secretario do Bairro informou que estava a caminho uma delegação do Governo Provincial, com a missão de ir cobrar os emprestimos do Fundo junto dos mutuários, a população local disse, em reunião pública: “Mas eles querem vir buscar o quê? Esse dinheiro não são os restos das festas deles lá em Maputo?”. E no auge da sua “indignação”, a população lançou ameaças para quem as quissesse aouvir: “Aqui é Mukukuni! Quem ousar vir para aqui... cobrar dinheiro...vai ver sozinho as consequências...”. Assim, diz-se que em Mukukuni ninguém, do governo ousou ir cobrar um centavo do fundo dos sete milhões! Anos a fio!
Parece-nos, pois que, aprendidas todas as lições, fica a convicção da relevância da iniciativa e, logo, da acertada ideia do seu relançamento, mas com um grande “porém”: a gestão do fundo deverá, agora, ser confiada a uma instituição vocacionada e seguramente protegida de qualquer forma de ingerência ou influência político-partidária: uma das formas de prevenção da mataquenha!
O Ministro dos Transportes e Comunicações, Mateus Magala, desempenhou, entre 2015 e 2018, as funções de Presidente do Conselho de Administração da empresa Electricidade de Moçambique (EDM).
A missão de Magala na EDM era hercúlea, pesadissima: ele devia estancar uma prolongada hemorragia financeira de que padecia a empresa pública, pois tinha as suas veias rebentadas por incríveis teias de corrupção e de gestão empresarial ruinosa.
A existencia de “empresas” de consultoria dentro da empresa, que “ganhavam” concursos internos, era uma calamidade pública antiga e bem investigada e denunciada pelo Centro de Integridade Pública (CIP). E as contas da empresa, junto da Hidroelectrica de Cahora Bassa (HCB) e de outros fornecedores de serviços eram insustentáveis. E Magala devia arrumar a casa!
Chegou com ideias. Fez contactos e alianças estratégicas. Formulou seus planos de acção e os pôs em marcha. Mas rapidamente sentiu-se cercado por todos os lados: um cepticismo geral elevava-se à sua volta. “Você não vai conseguir nada aqui! Isto está de tal modo viciado... que não há por onde pegar!”, diziam-lhe muitas vozes. Incluindo vozes de quem ele esperava encorajamento.
Em parelelo, surgiu alguma imprensa tambem discrente. Noticias foram aparecendo aqui e ali, incluindo com tom calunioso, alegando decisoes “desumanas” do novo gestor, que estaria a “humilhar” “velhos quadros experimentados” da empresa, que a mantiveram em pé, desafiando actos violentos de sabotagem da Renamo, durante a guerra dos 16 anos. “Onde ele estava durante esses anos todos em que sofremos?”- diziam, questinando a sua legitimidade para introduzir reformas estruturais na empresa.
Nessa mesma senda, um dia um jornal divulga uma noticia em que afirma que Magala ter-se-á atribuido a si próprio um salário na ordem de um milhão de meticais! A noticia é baseada em fontes oficiais, porém com números mal interpretados pelo jornalista (o que é aliás muito frequente na nossa media).
Para dissipar este e outros equivocos, Magala convida a imprensa para um “briefing”, durante o qual ele não só esclarece a folha salarial dos gestores seniores da empresa, onde ele está incluso, como tambem partilha informação em primeira mão, sobre os primeiros resultados das reformas na EDM. Esperou, o gestor, que no dia seguinte a imprensa se referisse a informação partilhada na véspera: em vão!
Passaram-se dias e praticamente nenhum orgão de informação divulgou as informações de progresso nas reformas profundas em curso na EDM, nem mesmo aquele jornal corrigiu a informação errada sobre o salario “milionario” de Mateus Magala: ele começou a questionar-se profundamente sobre o sentido destes eventos. Custava-lhe entender a sociedade moçambicana, que se recusava a segui-lo nos progressos que ia alcancando na reforma da EDM – incluindo a própria imprensa.
Aí um dia ele convida-me para um café no seu escritorio, em que me pergunta: “Afinal por que as pessooas, incluindo a imprensa, são tão ..negativas, pessimistas e até cínicas?”. Eu respondi imediatamente assim:
“As pessoas já não acreditam em nada! Porque já receberam demasiada mentira oficial e por tempo demasiado longo. As pessoas sentem-se defraudadas, enganadas! A sociedade não acredita nas instituições públicas. Ninguém vai acreditar que o Dr. Magala está mudar a EDM...ninguém! Tudo o que disser que tenha feito vai ser considerado como mera propaganda do regime...”.
Aí ele perguntou: “então o que achas que deve ser feito, para a sociedade voltar a acreditar nas instituições públicas?” Aí eu respirei fundo, e disse-lhe:
“Será necessario refundar este Estado! Recomeçar...E isso implica visão, determinação e muita coragem. Porque o Estado foi , desde há demasiado tempo, tomado por uma praga de matequenha, aquela pulga que penetra por debaixo da unha do pé e cresce e se reproduz lá dentro. A sua extracção implica uma pequena cirurgia...que faz sangrar!”
Eu diria exactamente o mesmo ao candidato da FRELIMO, Daniel Chapo: a larga maioria dos moçambicanos está profundamente decepcionada com a FRELIMO: já o disseram, e de forma eloquente, nas urnas! E os motivos para isso são, há várias décadas, bem conhecidos: políticas de desenvolvimento falhadas.
Essa larga maioria já não “ouve” a FRELIMO! Mesmo os que vão aos seus comícios. Essa larga maioria apenas vai acreditar no seu discurso numa única condição: na de assumir, de forma inequivoca, um compromisso histórico: o de, ganhando as eleições, reformar profundamente o Estado; para devolver-lhe a dignidade perdida. O que passa por dele extrair a matequenha que o tomou de assalto, sobretudo ao longo destes ultimos 20 anos! Mas consciente de que isso vai-lhe criar muitos inimigos e detractores, saindo de todos os lados: não se tira matequenha sem rasgar a pele!
A violência militar que tem causado a morte de camponeses inocentes, por vezes através de decapitações, acompanhada de incêndios a aldeias inteiras, é uma manifestação extrema de conflitualidade humana na Província de Cabo Delgado. Contudo, ela não é a única, havendo outras, múltiplas e mais antigas. E são múltiplas as causas da violência nesta província, que, sendo riquíssima em recursos naturais, é das mais pobres do país!
Desde o dia 4 de Outubro de 2017 (ironicamente, o Dia da Paz, evocando a data em que, em 1992, foi assinado, em Roma, o Acordo Geral de Paz, pondo termo a 16 anos de uma guerra atroz, opondo o governo à Renamo!) que Cabo Delgado tem sido palco de ataques perpetrados por “desconhecidos”, tem havido debates aqui e acolá, incluindo em sede de estudos ou instituições académicas, dentro e fora do país.
Contudo, persiste uma percepção geral de que, do lado do governo, tem sido dada preferência a uma estratégia de silêncio, em contraste com a natureza particularmente cruel dos perpetradores destas operações, nunca vista nem ao longo dos 16 anos da guerra (temporariamente) terminada em 1992.
Se pode ser atendível um argumento oficial fundado na necessidade de evitar criar pânico aos grandes investidores que demandam a província – do gás ao rubi, passando pelo grafite até ao mármore - não será menos atendível o clamor dos cidadãos por um maior esclarecimento sobre o que se passa, suas causas e, quiçá, alguma luz sobre que soluções as autoridades estão a considerar – para além da via militar!
Mas a conflitualidade em Cabo Delgado, podendo ser mais mediática na vertente das incursões dos chamados “malfeitores” – pela sua não comprovada associação ao extremismo islâmico e pelo seu potencial de perturbar grandes investimentos estrangeiros – ela alarga-se a outros focos, como em torno da extracção de outros recursos naturais, minerais, florestais ou de outra natureza.
Imbuído desta preocupação, um grupo de organizações da sociedade civil moçambicanas, incluindo algumas baseadas na fé, estiveram reunidas nos dias 23 e 24 de Agosto na cidade de Pemba. O seminário teve como título: “Conflitualidade Humana na Exploração de Recursos Naturais na Província de Cabo Delgado: Reflexões e Perspectivas. A Comissão Episcopal de Paz e Justiça, entidade da Igreja Católica, coordenou e acolheu evento, nas instalações da Universidade Católica de Pemba.
O principal foco do seminário era: afinal o que tem estado a atrair tanto conflito em Cabo Delgado? A resposta, demasiado tentadora, de que é a abundância de recursos naturais, pode ser muito simplista e, por isso, inidónea para justificar a prolongada instabilidade. Importa, por isso, conferir aos ângulos de análise aberta ainda maior, fora de janelas políticas amarradas a interesses de controlo político. E, na medida das circunstâncias, foi essa a perspectiva analítica adoptada para este seminário.
Quem chama as balas?
Em 1983, o autor britânico Joseph Hanlon, um dos mais reconhecidos estudiosos de processos políticos em Moçambique, publicou um livro com o título: “Mozambique – Who calls the shots?” Numa tradução livre, este título significaria: “Moçambique – quem comanda os tiros?”. Mas o sentido de “de onde vem a guerra?”. Poder-se-á resumir nesta breve pergunta o foco do seminário de Pemba.
E então quais foram as respostas sugeridas? As propostas de resposta vieram de diferentes perspectivas de análise e pontos de partida: perspectiva histórico-política; antropossociológica; socioeconómica e – aceite-se! – ecléctica!
Entre as figuras e instituições que se colocaram à frente, com suas reflexões e perspectivas, poderia, a título exemplificativo, mencionar: Yussuf Adam (Universidade Eduardo Mondlane); Dom Luiz Fernando Lisboa, Bispo da Diocese de Cabo Delgado; Paolo Israel (Universidade de Western Cape); João Mosca (Observatório do Meio Rural); Zenaida Machado (Human Rights Watch; Inocência Maposse (CIP).
Estes e outros actores estimularam debates livres e descomplexados, a partir de temas como: bases históricas da emergência do extremismo violento no Norte de Moçambique; soberania espiritual, etnicidade e violência política: as raízes históricas da presente crise em Cabo Delgado; pobreza, desigualdade e conflitos no Norte de Cabo Delgado; e Direitos Humanos nas operações de contra-terrorismo em Cabo Delgado, e Indústria Extractiva – como ela afecta a cultura e os camponeses, entre outros temas de igual ou superior relevância.
As fontes da conflitualidade
Quase todos os primeiros oradores – que determinaram o mote dos debates subsequentes - foram unânimes num ponto de início: não há um único factor que possa explicar o clima de conflitualidade em Cabo Delgado: existe uma combinação de múltiplos factores que se foram formando, durante longos períodos históricos, como: florescimento de cadeias de crime organizado milionário, nos corredores de droga; de corte e tráfico de madeira; de extracção e contrabando de recursos minerais de grande procura internacional, tudo ocorrendo aos “olhos” de comunidades extremamente pobres e violentadas!
Ou seja: no terreno de Cabo Delgado foi acumulado capim seco, disponibilizado petróleo e inúmeras caixas de fósforo, e tudo deixado ao ar livre, à disponibilidade de diferentes interesses ciosos de poder!
Yussuf Adam, historiador moçambicano que tem Cabo Delgado como seu campo de estudo há mais de 35 anos, fala de um povo cansado de ser movimentado de um lado para o outro, desde o tempo do colonialismo português até aos dias de hoje.
“No regime colonial, as comunidades de Cabo Delgado foram retiradas das suas terras e aglomeradas em aldeamentos, para ficarem longe do alcance da guerrilha da FRELIMO. Entretanto, quando esta tomou o poder e estabeleceu o sistema de socialização do campo, as mesmas comunidades foram levadas para Aldeias Comunais. Agora, no regime capitalista, estão a ser, de novo, retiradas das suas terras e aglomeradas em Aldeias de Reassentamento. Num período de 30 anos, as populações de Cabo Delgado foram à força colocadas em aldeamentos, destas para aldeias comunais e, agora, para aldeias de reassentamento! E sem consideração à sua dignidade – é muita violência!
Mas as reflexões académicas mais conhecidas não têm descurado outras prováveis fontes de conflitualidade, também históricas, em que se incluem velhas hostilidades entre Macondes e Muanes; entre o interior e o litoral; ou entre muçulmanos e cristãos.
Por seu lado, Paolo Israel, professor de antropologia na Universidade de Pretória, referiu-se a episódios mais ou menos recentes, indiciadores de um relacionamento de conflito e hostilidade entre cidadãos e o Estado, em diferentes distritos da província. Lembrou estórias como a dos leões mágicos de Muidumbe, que terão devorado 46 pessoas e ferido outras três.
A comunidade local, que considerou tratar-se de feiticeiros que se transformavam em animais, ficou furiosa e linchou 18 compatriotas. O fundamental a reter aqui é que os principais acusados de comandar os leões à distância eram figuras do Estado ou a ele associadas ou com “bem-estar” acima da média local (o comerciante). Ou seja, em situação de crise sem saída à vista, os pobres lançaram aos ricos e ao Estado a culpa do seu mal-estar e das suas privações.
E os distúrbios que, em Novembro de 2000, culminaram com a morte de mais de uma centena de indivíduos, asfixiados no interior das celas da cadeia distrital de Montepuez, considerados como membros ou simpatizantes da Renamo? Como tais episódios se insinuam no imaginário de quem os viveu de perto, quando pensa no Estado?
Mais recentemente ainda, o desmantelamento de fortes redes internacionais associadas à exploração e tráfico internacional das célebres pedras rubis de Namanhumbir, no distrito de Montepuez, e de corte e tráfico de madeira, “perturbado” por acções soberanas, como a chamada operação tronco…
Caos no extractivismo
Em paralelo, os constantes anúncios de investimentos de larga escala em projectos extractivos, quantas vezes feitos de forma exuberante e descontextualizada, têm levantado expectativas sociais exacerbadas, em contextos de pobreza extrema. A não materialização destas expectativas, ao ritmo imposto pela pobreza, torna as comunidades vulneráveis a discursos anti Estado, nomeadamente entre jovens desnorteados e sem expectativa de futuro.
Com efeito, é em torno dos empreendimentos da indústria extractiva que, na percepção dos participantes do seminário, devem ser encontradas as principais causas da conflitualidade humana em Cabo Delgado:
“Os processos de reassentamento têm sido caóticos, onde o Estado aparece em aliança com o grande capital, agravando situações de pobreza das populações”, afirma a dado passo, o documento final do evento, denominado “Declaração de Pemba”.
Na abordagem da complexa relação entre a opção de resposta militar à insurgência, versus respeito pelos compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado moçambicano, a jornalista moçambicana Zenaida Machado, falando na qualidade de pesquisadora da Human Rights Watch, uma organização de defesa de direitos humanos, diria:
“Ao procurar responder à insurgência por via militar, as Forças de Defesa e Segurança têm levado à cadeia centenas de jovens inocentes que, uma vez enclausurados, acabam expostos a verdadeiros extremistas. E uma vez mandados em liberdade, porque absolvidos pelo tribunal, muitos deles desaparecem sem deixar rasto: para onde vão? “
Na sua declaração final, as OSC participantes apelam ao governo no sentido de:
Eliminar os obstáculos de acesso à informação a jornalistas, investigadores e cidadãos em geral aos locais de conflitos;
Fazer uma revisão da estratégia de actuação militar, capacitando os militares em matérias de direitos humanos, apostando em amnistias e em incentivos de reclusão social”.
Este terá sido o primeiro evento em que organizações da sociedade civil moçambicana, incluindo de áreas de pesquisa, abordam de uma forma colectiva e aberta o clima de violência em Cabo Delgado e produzem recomendações ao governo, apelando para maior acesso do público sobre a crise de segurança que assola a região desde Outubro de 2017.
No presente texto defendo a ideia de que faltam na nossa sociedade espaços de debates públicos abertos e descomplexados, sobre inúmeras questões-chave que deveriam fertilizar as visões e estratégias dos partidos políticos e do conjunto da sociedade, na perspectiva de enformar as grandes opções políticas do novo ciclo de governação2020-2025. Considero que têm faltado platormas abertas e inclusivas de debate apartidário de ideias, incluindo através dos meios de comunicação social de um modo geral, e do sector público, em particular. No melhor dos casos, há pessoas sentadas em salas de hotéis falando sobre si mesmas ou promovem-se conversas amenas de glamor... nas televisões!
As eleições como oportunidade de debates de fundo
Moçambique está nas vésperas das suas sextas eleições gerais multipartidárias: de escolha dos deputados da Assembleia da República, do Presidente da República e dos membros das Assembleias Provinciais, de cujas listas vencedoras se vão eleger, e pela primeira vez, os governadores de provincia. Trata-se, pois, de um processo inédito, na senda do alargamento do espaço democrático, por via de uma progressiva descentralização administrativa. Isto é, de devolução gradual de poder aos cidadãos.
Diz-se que cerca de 40 partidos políticos deverão inscrever-se para concorrer!
Uma breve retrospectiva deste processo, cujo ponto cimeiro foi a revisão constitucional de 2018, traz-nos à memória, como ponto de partida, a crise política pós-eleitoral de 2015/2016, marcada, entre outras, pelos seguinte exigências sucessivas da Renamo: constituição de um governo de gestão; decapitação do Estado Unitário, com a desanexação de seis provincias ,a serem governadas pela Renamo; de permeio com emboscadas contra conversações em curso, seguindo a digressão nacional paralisante de Afonso Dhlakama, para tudo culminanar com a “presidencialização” do diálogo Governo-Renamo, o qual vai ser simbolizado, enfim, pela histórica subida à serra da Gorongoza, pelo Chefe de Estado, Filipe Jacinto Nyusi!
Entretanto, o principal resultado da presidencialização do dialogo – que deixou em terra exautos mediadores – vai ser o acordo sobre a descentralização administrativa do país, consagrado através de uma revisão constitucional pontual, mas cuja formulação haveria de ser entregue a grupos tecnicos, e mais tarde imposta ao Parlamento, por acordo entre as cúpulas partidárias com maioria de assentos na chamada Casa do Povo! Tudo isto ocorrendo sob a ameaça de armas de guerra de um dos partidos com assentos no Parlamento e para cuja conformidade constitucional e legal “definitiva” vai ser acordado um célebre programa DDR : desmobilização, desmilitarzação e reintegração das forças militares desse partido, que têm continuado a sobrar, desde o Acordo de Roma de 1992!
Em paralelo, a nação moçambicana vive uma das mais traumáticas crises de governação alguma vez por si experimentadas: a crise originada pela revelação internacional de dívidas externas milionárias, contraidas pelo governo anterior, em arrogante e clamorosa violação da Constituição da República e da lei orçamental! Pior ainda: para encobrir um odioso esquema de corrupção de alto nivel, com tentaculares ramificações junto de gestores de topo da alta finança internacional! A crise, com impactos de longo termo, sobre a vida dos mocambicanos e a reputação do Estado junto da comunidade internacional, vai conhecer um momento juridico-constitucional dramático, com declaração da nulidade dos respectivos instrumentos e correspondentes negócios, pelo Conselho Constitucional! Consumava-se uma enorme vitória do constitucionalismo nacional, impulsionado pela Sociedade Civil! E a nação vai tapar os olhos, envergonhada com a nudez das suas mais nobres instituições!Seguir-se-ia, haja ou não relação de causa e efeito, a renúncia do cargo de Presidente deste orgão, por parte do seu titular, o Dr. Hermenegildo Gamito!
E as catanas de recursos minerais decapitando camponeses inocentes em Cabo Delgado e provocando insónias às mulheres da Ilha Olinda e de Cassoca?
E como se de caixa de pandora se tratasse, ainda viriam os mais graves desastres naturais de que o país – que ja sobreviveu a muitos! – tem memória: os devastadores ciclones Idai e Kenneth, com o seu largo rasto de mortes e de destruição de infra-estruturas económicas e sociais, no centro e norte país!
Ora, quer directa, quer indirectamente, é por debaixo deste longo e sufocante manto de desafios de governação da Nação que estas sextas eleições se vão realizar!
Qualquer destes assuntos transporta consigo impressionantes debates, quer eles correspondam a resultados imputáveis a conduta humana, quer derivem de fenómenos naturais apenas remotamente susceptiveis ao controlo soberano dos moçambicanos, mas tão complexos como raramente seriam encontrados em qualquer outro país do mundo!
Como aborda-los, numa perspectiva de debate público que torne as eleições uma oportunidade de mobilização nacional para a construção de consensos, o mais amplos possíveis, sobre o que possam ser considerados designios comuns e unificadores da nação?
O que todos esses partidos políticos pensam destas questões, que marcam o devir colectivo dos moçambicanos? Que sistemas ou modelos de sufragação dos seus projectos de governação os partidos políticos estão a usar ou pretendem usar, no quadro destas eleições?
Como podem, os partidos politicos, na senda do periodo eleitoral, e ao lado de outras forças vivas da sociedade, contribuir para os estimular a identificar os novos factores de Unidade Nacional?
O que movimentos sociais, representados por grupos organizados de cidadãos (vulgo organizações da sociedade civil) pensam de tais questões de fundo, que se referem a instituições, sistemas e modelos e cultura de governação?
Que modelos ou formatos programáticos podem os orgãos de comunicação social adoptar, para que sejam, efectivamente, plataformas privilegiadas de circulação e de confronto aberto de diferentes correntes de opinião na sociedade?
A nação precisa de se ouvir! A nação precisa de sentar à mesa e...falar!
Termino com uma proposta de tema geral de debate público nacional, que pode ser iniciado por qualquer sector da sociedade, incluindo órgãos de comunicação : Afinal o que mais divide os moçambicanos?
A Nação precisa de conversar!
Tomás Vieira Mário
O dicionário Universal da Língua Portuguesa, da Moçambique Editora, define fé como “crença religiosa; crença, convicção em alguém ou alguma coisa; convicção…
Com efeito, na maioria das vezes, a ideia de fé convoca-nos para a crença religiosa. Não sendo estudioso de teologia, o meu sonho de infância, de um dia me tornar bispo (sim, bispo!) motivou-me, nalgum período da minha vida, a obter alguns conhecimentos básicos sobre a religião. Pelo menos para algumas divagações em torno de determinadas significações que dão corpo a fé, enquanto crença religiosa.
Aprendi, por exemplo, que a base de todas as religiões é a crença na existência de uma outra vida, para além desta, que vivemos na terra. E, a partir da crença nessa vida no “além”, emerge a ideia de um ser superior, que ai impera; é o Deus. Assim, fé é uma virtude daqueles que aceitam como verdade absoluta os princípios difundidos por sua religião. Ter fé em Deus – um só! - e acreditar na sua existência e na sua onisciência.
Para as religiões judaico-cristãs e islâmica, tratar-se-á do Deus que se anunciou ao Abrão, o patriarca, aquele a quem tanto o Judaísmo como o Cristianismo e o Islão referem como seu Pai. Assim, o fiel deve crer, em pelo menos, duas proposições: existe a vida eterna e Deus.
Fora do mundo religioso, “fé" surge também em algumas expressões populares e no mundo jurídico. Por exemplo, “fazer fé” significa acreditar em alguém ou em algum acto; ter esperança; “fazer fé em juízo” significa um dado ou prova aceites como verdadeiros ou legítimos em sede de foro judicial.
Ao longo de milénios, as diferentes religiões foram cimentando ideias, princípios em proposições em cuja crença deve sustentar-se a vida dos fiéis. As épicas batalhas dos Hebreus em busca da Terra Prometida, sob a liderança de Moises, só podem ser imaginadas, consentidas e sustentadas pela fé em Deus, que lhes prometera tal terra, desde os tempos do patriarca fundador, Abrão.
Com base na fé, homens e mulheres de extraordinária qualidade emergiram ao longo da Historia da Humanidade, quer como líderes espirituais ou destemidos guerreiros, lideres de movimentos de massas, reis ou ambos. Moisés, Salomão, Jesus Cristo, o Profeta Maomé…Martin Luther King, Madre Teresa de Calcutá… Como é que estas extraordinárias criaturas humanas lograram arrastar atrás de si, e muito para além do seu tempo, multidões e nações, pelo mundo fora? Não foi incutindo fé nas pessoas? Convencê-las e persuadi-las a seguir uma certa missão ou objectivo?
Ora vejamos: com o seu bastão, não dividira Moises o mar vermelho em dois pedaços, permitindo passagem ao seu povo, ante a estupefação do Rei dos Egípcios? E Jesus Cristo: não vencera ele a morte, ressuscitando ao terceiro dia da sua morte? E o Profeta Maomé? Não recebera ele a mensagem de Deus, nos montes Sinai, através do Anjo São Gabriel? E a Maria, mãe de Jesus: não concebera ela sem pecado?
O verdadeiro crente deve tomar conhecimento destes “factos”, proposições ou princípios, e acreditar profundamente neles, sem os questionar; sem pretender prova da sua ocorrência; sem os debater. E deve estar disponível para os divulgar e defender, incluindo com o próprio sangue, se necessário for. Assim estas crenças são designadas por dogmas. O dicionário acima citado descreve dogma como “ponto fundamental e indiscutível de uma crença religiosa; proposição apresentada e aceite como incontestável e indiscutível”.
Porém, todas estas complexíssimas construções metafisicas, enunciadas em lendas, parábolas e crónicas literalizadas, aliás escritas com muita beleza, não são senão criação da mente humana, ao longo de seculos revisitada, reformulada e aprimorada, quantas vezes com derramamento de muito sangue! Não tivemos aí a Santa Inquisição? Não tivemos aí as Cruzadas? Não temos aí diferentes cruzadas violentíssimas, associadas ao Islamismo: a Jihad, o Al Qaeda, o Estado Islâmico…? Não temos aí as tempestuosas igrejas evangélicas, hoje em dia com tendência para controlar o poder político de muitas nações? Tudo na base ou a pretexto da fé!
Na vida real, de acordo com o nosso próprio contexto, temos, todos, desenvolvido nossa fé em determinados “factos”, “ideias” ou proposições, cristalizadas em pessoas que, de uma forma ou outra, tenham marcado as nossas vidas. Podemos criar tais crenças com as nossas mentes fertilizadas por circunstâncias ou experiências diversas, de natureza particularmente extraordinária. Podem ser nossos pais. Ou um professor (geralmente do ensino primário). Um carismático líder religioso. Ou um líder político.
Em consequência de um volume de certezas que fomos criando, dentro de nós, sobre as virtudes que apreendemos (ou que nos foram vigorosa e intensamente apregoadas ao longo de um tempo significativo) das ideias e da conduta desta pessoa, criamos fé nela. Portanto dogmas em torno dele ou dela. E com estes dogmas nos protegemos de dúvidas, de perguntas, de incertezas. As nossas crenças são a única verdade!
Assim, não tenho qualquer dúvida – nem me vou surpreender - se um dia, for provado, em juízo, que um alto dirigente do nosso Estado, em funções ou não, participou e beneficiou pessoalmente, das odiosas dívidas ilegais. Muitos moçambicanos, gente de boa-fé, não vão acreditar! Vão, até ao fim dos seus dias, dizer que tal decisão judicial terá sido fabricada, na base de calúnias e conluios de gente sem autoestima, mancomunada com mão externa!
Temo que eu próprio venha a ser um deles.
Pois só assim poderei encontrar algum alívio à insuportável dor de ter sido traído, tão vilmente, na minha fé!
A mineradora britânica de rubi, Gemfields, acordou em pagar 8.3 milhões de dólares americanos para fechar um caso de 273 queixas de assassinatos, espancamentos e incêndio de habitações, em torno das minas de rubi de Montepuez, na Província de Cabo Delgado.
A empresa acordou ainda na constituição de um painel independente sobre disputas que poderá decidir sobre quaisquer reclamações no futuro. A empresa anunciou estes acordos em Londres, através de uma declaração de imprensa, com a data de 29 de Janeiro corrente.
O caso de violações grosseiras de direitos humanos na região da extração de rubi, na localidade de Namanhumbir, foi levado a um tribunal superior de Londres em Abril de 2018 por uma sociedade britânica de advogados denominada Leigh Day, a qual alegou “sérios abusos de direitos humanos na ou em redor da empresa Montepuez Ruby Mining”, (MRN), subsidiaria da Gemfields.
As 273 queixas incluem 18 pessoas supostamente mortas por forças de segurança privada da MRM e por agentes da polícia moçambicana, através de disparos, espancamento até a morte e soterramento de pessoas vivas. Há perto de 200 acusações de espancamento, tortura e abuso sexual - muitas delas provocando ferimentos tão graves que causaram diminuição da capacidade de trabalho das vítimas As queixas incluem ainda 95 reclamações de propriedade perdida na sequência de repetidos incêndios criminosos na aldeia de Namucho-Ntoro.
Todos os incidentes objeto da queixa terão ocorrido entre 2011 e 2018. O caso foi resolvido através de mediação, o que significa que um acordo na base do principio de “não-admissão- de – responsabilidade” pelos crimes alegados. Contudo, e sintomaticamente, a Gemfields concordou em atender a todas as reivindicações – o que, na pratica, se traduz em “confissão” implícita de culpa!
Como parte do esforço para melhorar as suas relações e imagem junto das comunidades locais, a Gemfields anuncia também o estabelecimento de um fundo de, “pelo menos”, USD655,000 para projectos sustentáveis de longo termo, nas áreas da agricultura e criação de habilidades para promover actividades económicas e oportunidades de trabalho.
As indeminizações ora acordadas, no valor de USD8,3 milhões podem, aos olhos de incautos, parecer um acordo extremamente oneroso para a Gelmfields e a sua subsidiária moçambicana, a Montepuez Rubi Mining. Contudo, tal quantia é efectivamente irrisória: segundo a própria empresa, dos primeiros 11 leilões de rubi até agora realizados, ela já rendeu USD463 milhões em receita total, significando que o valor das indeminizações e compensações à comunidade prejudicada corresponde a menos de 2% do valor daquelas vendas.
Este acordo tem duas características muito interessantes: Primeiro, resulta de uma acção judicial de uma entidade estrangeira, contra uma empresa estrangeira, que viola direitos humanos de moçambicanos, em território moçambicano, aonde explora valiosos recursos naturais, sob concessão do Estado Moçambicano.
Segundo: É a própria empresa que, mesmo negando “responsabilidade” pelas práticas criminosas constantes na acusação, determina, no seu livre arbítrio, o valor com o qual decide indemnizar ou compensar as vitimas, em Moçambique. O Estado moçambicano não é, aqui, nem tido nem achado!
Há, neste “arranjo”, duas leituras imediatas: em primeiro lugar, são entidades estrangeiras que, entre si, discutem e acordam sobre formas de “fechar” as suas diferenças em relação a crimes praticados em Moçambique e contra cidadãos moçambicanos! Em segundo lugar, no quadro deste acordo, ficam de fora, senão mesmo ilibados, os autores destas práticas criminais, o que eles podem interpretar como anuência ou aprovação implícita à sua conduta.
Ora, o que sobressai, como sendo a principal causa do estranho quadro, é a inércia cúmplice das autoridades estatais moçambicanas, administrativas e judiciais, perante comprovados casos de grosseiras violações de direitos humanos por parte de empresas extractivas, resultando em que a defesa dos direitos humanos de cidadãos nacionais seja, sistematicamente, feita por organizações internacionais.
Em Julho de 2017 foram divulgados vídeos, mostrando ações de extrema violência, com actos degradantes e brutais de agentes uniformizados e armadas da PRM, e falando em Português, enquanto espancavam homens com roupas rotas e muito sujos.
Na altura, a Comissão Nacional dos Direitos Humanos, uma instituição do Estado, emitiu um comunicado, informando que havia sido constituída uma comissão conjunta de investigação, em que ela mesma era parte, e envolvendo a Procuradoria-Geral da Republica e a Policia da Republica de Moçambique. O objetivo da comissão era investigar estas denúncias e identificar os responsáveis, para os responsabilizar criminalmente.
Contudo, realizada a investigação, jamais o respectivo relatório foi tornado público – nem mesmo pela própria CNDH – muito menos sobre a identificação dos autores de tais actos, e
seu encaminhamento às instâncias da justiça.
Porquê?
TV Mario