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Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

    • O Vinho e o Sangue de 4 de Março

      Por: Jorge Ferrão[1]

       

      O planalto de Mueda, Cristóvão Colombo e o Destacamento Feminino não se relacionam, nem têm nenhuma interconexão. Todavia, são locais e figuras místicas, quase incontornáveis, plenas de indagações, espaços e leitos por onde se estendem outros e tantos segredos.

       

      Cristóvão Colombo, esse explorador cuja pátria tantas terras cobiçam, retornou à Lisboa abraçado pela caravela Niña a 4 de Março. Entre a bravura e heroicidade que o caracterizam, Colombo baptizava as suas embarcações com nomes femininos. Tal gesto não era mera fantasia, mas simbolizava o enigma de outros segredos, intenções ocultas, e tesouros insondáveis que, como efémeros raios de Março, almejavam ressurgir à humanidade. Afinal, ele acabara de desvendar os horizontes da América. A 4 de Março também se celebra o Dia do Destacamento Feminino.

       

      Pelo planalto de Mueda, e na história do célebre “Primeiro Tiro”, encaixam-se vozes, simultaneamente, tão silenciosas e tão estridentes. Por aqueles montes e vales sobressai o belo e o aprazador, o medo e o aterrorizante. Os silêncios. Uma ressignificação do que deve ser visto e escutado entre as abruptas depressões e o cume de cada montanha por onde se observam as restantes aldeias e povoações.

       

      Numa dessas aldeias nasceu Marina Mangedye que, como qualquer criança da sua idade, viveu a epopeia de uma libertação que faria mais tarde um país. Uma nação. Resgatar os relatos de Marina é abrir os alçapões de episódios não arquivados, mas que se entrelaçam a cada jornada, e a cada 4 de Março, quando o seu Destacamento foi, oficialmente, estabelecido.

       

      Muito antes de 1967, Marina Mangedye e algumas amigas foram emboscadas por um grupo de soldados portugueses. Sem que tivesse ainda entendido o sentido de uma guerra, ela foi testemunha da primeira vítima da brutalidade de um exército que atacava, também, para se defender. A sua amiga, Nina, foi mortalmente alvejada. Um tiro para o centro da cabeça e o sangue que jorrou, eternamente, por detrás de um crime que nenhuma história consegue explicar.

       

      Marina foi levada pelos soldados para o quartel mais próximo, sendo, depois, interrogada e submetida à tortura psicológica. O seu estado de choque a impedia de pensar e de balbuciar fosse o que fosse. Como forma de sacar uma confissão, os soldados portugueses colocaram vinho numa caneca de um azeite de oliveira, já muito usada, e forçaram-na a beber. Marina não só não bebeu como se manteve silenciosa. O vinho irrompia nos seus pensamentos. Era a lembrança do sangue da sua amiga. Ela não revelou qualquer segredo que conhecia.  Nem sequer os tinha, mas já pensava na liberdade e independência.

       

      Anos mais tarde, ela juntou-se ao Destacamento Feminino e fez parte do grupo das primeiras 20 mulheres de Cabo Delgado que tiveram treino militar ainda no interior de Moçambique e, mais tarde, em Nachingwea. Este episódio faz-nos recordar da história “vinho e sangue”, que remonta de outros tempos onde a apreciação do vinho era, intimamente, ligada a rituais religiosos e culturais. A humanidade sempre recorreu ao vinho, e outras bebidas alcoólicas, para as celebrações e, por conseguinte, o vinho ganhou um estatuto especial e simbólico.

       

      A associação entre o vinho e o sangue pode parecer um tanto enigmática, porque o catolicismo faz a representação do vinho com o sangue de Cristo, como o símbolo da vida, da comunhão e da renovação. Marina aprendeu a lição do vinho e sangue no mesmo momento e, jamais, como celebração de uma festividade, mas como o final de um percurso.

       

      Assim, ela carregava consigo essa herança que, sem ser festiva, engendraria a semente da revolta e que serviria de catalisador de memórias negativas para o resto da sua vida. Essa vida ensinou-lhe que o brinde tanto pode ser da magia de degustar um bom vinho, como da nostalgia de perder alguém tão próximo que não provou o vinho, mas fertilizou a terra que o mundo descobriu como Moçambique e não Portugal Ultramarino.

       

      Não existem dúvidas de que, em Moçambique, muitas das iniciativas anticoloniais foram, também, conduzidas por mulheres, particularmente, nas zonas rurais e nas cidades, através de actividades clandestinas que configuraram o próprio processo da independência, a partir do despertar da compreensão política da luta de libertação até à adesão ao movimento, sem nos esquecermos da mobilização da população e no auxílio alimentar aos combatentes.

       

      Os 4 de Março que celebramos, algumas vezes de forma tímida e outras mais exuberantes, são uma homenagem a todo o movimento que antecedeu ao início da luta armada e que juntou estudantes do Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM), que mais tarde foram os quadros que estiveram na base do processo de unificação dos movimentos de libertação.

       

      Mas este 4 de Março é, igualmente, a retoma da Liga Feminina de Moçambique (LIFEMO), cujo pressuposto assentava em apoiar as famílias dos combatentes e divulgar os princípios da Frente de Libertação. O Destacamento Feminino, já composto por guerrilheiras, tem que ser assumido como uma iniciativa das próprias mulheres diante da necessidade de defesa e mobilização das zonas libertadas no interior da província de Cabo Delgado. 

       

      57 anos depois, muitas destas mulheres permanecem no nosso seio e Marina, do vinho e do sangue, continuava tão activa como era em 1965, quando ela própria e as suas amigas solicitaram treinamento militar. Elas ocuparam, por seu próprio mérito, um espaço reservado aos homens e provocaram a maior revolução que a história da luta precisa de retomar, pois, a coragem destas jovens delimitou o poder e o controlo que os combatentes exerciam sobre a função reprodutiva das mulheres e da produção alimentar.

       

      Neste 57º aniversário, as combatentes se reencontraram e recordaram a frase que mais caracterizou a descrença e o descrédito dos combatentes homens: “aproximar o fogo ao capim”. Este foi o pensamento dominante também dos chefes de família, na altura, que sempre recearam que o envio das suas filhas para a luta de libertação equivaleria a ameaça à tutela paternal e que levantaria divergências internas insanáveis no seio revolucionário.

       

      Tanto Eduardo Mondlane e Samora Machel, quanto Paulo Samuel Kankhomba e Filipe Samuel Magaia, foram uma referência importante na noção e no discurso sobre a emancipação feminina – esta mesma emancipação que esteve presente nos discursos socialistas, no envolvente momento multipartidário e até em épocas do liberalismo e do neoliberalismo.

       

      Marina casou mais tarde com Raimundo Pachinuapa. Virou Marina Pachinuapa. Até hoje, ela não bebe vinho e continua ciente de que a emancipação consistirá em igualar homens e mulheres, e que nem os propósitos da libertação colocaram em risco o decorrer da própria luta.

       

      Estas foram as concepções que atingiram o coração de cada moçambicano e que valorizam, hoje, a equidade e essa essência que criou a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), da qual o tempo e o futuro farão, um dia, essa supra-organização que se sobrepõe aos interesses partidários e que terão como substracto a edificação de uma filosofia que cuidará das crianças, da erradicação dos casamentos prematuros, de uma modernização dos rituais de iniciação e, sobretudo, de uma modernização das estruturas patriarcais que perpetuam a violência doméstica e todos os males associados.

       

      [1] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo.

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