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15 de Dezembro, 2024

Noel Langa: um “indígena” que coloriu Moçambique

História comum, homem incomum: da mãe aprendeu a apreciar a cerâmica, ainda em tenra idade. Aos 16 anos, veio à então Lourenço Marques, onde se afirmou como um símbolo do bairro Indígena, agora bairro da Munhuana, no subúrbio de Maputo, e coloriu, em tela, o novo Moçambique.

 

Contava 86 anos e até há meses era possível vê-lo, mesmo que de mansinho, no seu atelier, no bairro Indígena, hoje Munhuana, onde se fixou na juventude. Aqui, desde a década de 1960, abriu as portas a inúmeros diálogos entre a sua obra e o quotidiano dos moçambicanos.  Noel Langa morreu na quinta-feira (13), vítima de doença, no Hospital Central de Maputo.

 

“O grande artista Noel, dedicou a sua vida às artes e cultura, tendo retratado as suas vivências, experiências e a história de Moçambique na sua tela, por via do seu pincel, com inconfundíveis cores ricas e vibrantes. O Mestre ontem do “Bairro Indígena”, elevou o bom nome de Moçambique além-fronteiras, sendo sem dúvida uma das referências das artes Plásticas no nosso País, um verdadeiro Património Nacional. A morte de Noel Langa abre um vazio irreparável na nossa Cultura e desafia à nova geração de artistas para o seu preenchimento”, escreveu o Presidente da República Filipe Nyusi na sua página do Facebook.

 

Para Rui Silva, ambientalista e amigo do artista, “este desaparecimento físico do Mestre Noel Langa, deixa o país muito mais pobre. Tenho a certeza que o Mestre gostaria de ter partido num momento de mais tranquilidade. Ele era um homem que me transmitia muita esperança, era um homem com um sentido de humor peculiar e gostava das pessoas independentemente das suas crenças, da sua orientação política, da sua cor enfim… era um homem fascinante”. 

 

Noel Langa nasceu no distrito de Manjacaze, Gaza, em Outubro de 1938. A sua sensibilidade artística revelou-se muito cedo, provavelmente por influência da sua mãe que era ceramista. Começou a gravar enigmáticos arabescos nas gamelas e potes que a sua mãe fazia. Aos 16 anos, na procura de melhores condições e na tentativa de cultivar as suas aptidões artísticas, viaja para a então Lourenço Marques. Em 1960, matricula-se no curso nocturno de Pintura Decorativa na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, onde começa a sua carreira.

 

Nessa altura, graças às referências que ia ganhando, ao cunho muito pessoal que põe nas suas figuras e à pertinência dos temas, Noel Langa foi emergindo no panorama das artes plásticas de Moçambique. Os contactos com Malangatana, Inácio Matsinhe, Samate Mulungo, Mankew e outros, foram de grande importância para o seu caminho nas artes. Conta com dezenas de exposições individuais e colectivas, feitas dentro do país e além-fronteiras.

 

Um artista inconformado

 

Se é verdade que chamou à si a tarefa de recriar o Moçambique na pintura, transpondo para as artes visuais um movimento que era essencialmente de causa-efeito, também é verdade que essa ligação, que também não pode dissociar-se da crítica social, foi a sua razão de viver. Com mais de 60 anos de carreira, Noel Langa viveu a arte e cruzou Moçambique – seu país – através do pincel.  E foi, durante mais de meio século, contra a marginalização, o desprezo, o desrespeito, a rejeição e ao que chamava de sabotagem artística, ou artesanato – obras feitas de forma despachada e exclusivamente para o negócio – pois, para ele, a arte não se vende, nem mesmo em tempos de crise.

 

“Não pinto as coisas, pinto o porquê desses acontecimentos, porque não se pode criticar os factos, mas sim o porquê dessa realidade”.

 

Na verdade, até hoje, não se sabe bem dizer que tipo de pintor Noel Langa foi – uma impossibilidade de classificação que não equivale a uma declaração do valor da sua obra, mas à fundamentação do que pensa sobre o belo, a crítica e o dinheiro, como objectos de criação, exposição e oferta, respectivamente. Esse ecletismo era motivado pelo facto de o seu único interesse ser explorar os limites da pintura enquanto linguagem e disciplina criativa. E não era para menos! As suas obras, ainda hoje, se caracterizam por nenhum tema, forma, cor ou estilo, mas têm na contínua procura e experimentação a sua melhor apresentação.

 

Ou seja, podem ser pequenas, grandes, estar numa parede ou assentes no chão, ser construídas a partir da fixação da tinta da superfície da tela, podem ser retratos, paisagens ou totalmente abstractas, mas, segundo contou – em 2018, numa visita à sua residência – , “não pinto as coisas, pinto o porquê desses acontecimentos, porque não se pode criticar os factos, mas sim o porquê dessa realidade”.

 

Dito de outra forma, o processo conceptual do trabalho de Noel Langa passa por questionar tudo aquilo que a pintura é para a sociedade, educada e bem alimentada, e isto passa pela forma — um objecto — até chegar à interrogação última: “para que serve a arte?” O artista deixou a pergunta no ar, e multiplicou os objectos facilmente identificáveis, que perderam, entretanto, qualquer utilidade prática.

 

Quer dizer, “ao pintar um homem com fisga esticada e apontada para um pássaro, estaria eu, como artista, a repudiar a caça e morte dessas aves? Só se for pelo total absurdo da ideia retratista, que não pensa no tempo. Em vez de pintar a chacina em Moçambique, pinto o belo, a alegria, porque acredito que as guerras vêm e vão, mas o sorriso é eterno”.

 

Um ambientalista de tele e pincel

 

Noel Langa dedicou mais de 60 anos a pintar o quotidiano disfarçado do povo moçambicano, na ambiguidade de utopias.  São obras cujo mérito reside na particularidade de revelarem a outra faceta do artista – a de desenhista nato – bem como a capacidade de explorar o espaço rural.

 

Basta reparar que os pássaros, na sua relação com a vegetação, as mulheres a carregarem potes, os homens com os seus batuques, o romance puro e verdadeiro, pouco escondem a relação umbilical do artista com o campo.

 

Na pintura como no desenho, Noel expõe, além da fome, das guerras partidárias, do inconformismo mundano por extensão, os fragmentos da cultura moçambicana. Neste caso, a relação com o quotidiano é ainda mais evidente: ela faz-se através da convocação longínqua do prazer, do amor, essa disciplina que a arte traz — feita seriamente, sem fins lucrativos preestabelecidos.

 

Disse, há seis anos, que apesar “de viver na cidade consigo ver todos os elementos da vida rural, sinto o cheiro do campo, no seu itinerário diário ao mercado Xipamanine: o embalo das mamanas, o convívio com os pássaros, a relação entre o rapaz e a fisga, o pássaro e o caju”.

 

Arte como terapia

 

Os 86 anos de idade, dois quais mais de 60 dedicados à pintura, Noel Langa entendeu o mundo da sua maneira, porque, para ele, “a arte é terapia; não há razões de pintarmos o sofrimento, o sangue, a fome. Aliás, se quisermos endireitar o mundo, a arte deixa de ser terapia para algo comparado à terror. O inconformismo não relaxa, pelo contrário cria sensações de revolta e falácias”.  (Reinaldo Luís)

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