É norte-americano e o primeiro desta nacionalidade a assumir a liderança da Igreja Católica, mas uma voz claramente dissonante da linha mais conservadora em que se costumam posicionar os católicos dos Estados Unidos. Robert Francis Prevost surgiu neste 267.º conclave e na lista de papabili como o grande desalinhado no grupo dos cardeais-eleitores norte-americanos. E, de resto, na sua primeira saudação aos fiéis reunidos na Praça de São Pedro, em Roma, adoptou o espanhol para agradecer à sua diocese no Peru, onde passou duas décadas como missionário e cuja nacionalidade adquiriu em 2015.
É descrito como seguidor da abertura de Francisco este Papa de duas pátrias (o diário italiano La Repubblica qualificou-o como “o menos americano dos americanos”), mas muito mais reservado. E menos ousado também. É “um digno meio-termo”, segundo a imprensa internacional, que se apressou a recordar os momentos em que citou “o estilo de vida homossexual” e as “famílias alternativas” como estando “em desacordo com o Evangelho”, apesar de ter apoiado a mudança na prática pastoral proposta pelo antecessor. Ainda assim, o site oficial de notícias do Vaticano citava-o, no ano passado, a defender que um “bispo não deve ser um pequeno príncipe sentado no seu reino”, mas antes alguém capaz de humildade e de “estar próximo das pessoas a quem serve”, o que ajuda a dar aquele que poderá ser o tom do seu pontificado.
Seja como for, é inquestionável que Leão XIV concilia um profundo entendimento da América Latina com o domínio da engrenagem do Vaticano, onde se move com à-vontade, mais não fosse porque foi até hoje prefeito do Dicastério para os Bispos, o organismo da Santa Sé responsável pela nomeação de bispos e cardeais de todo o mundo. A sua escolha representa, assim, a opção por “um centro dignamente equilibrado”.
Visto como um reformista, apesar de costumar evitar os holofotes e as entrevistas, foi nomeado cardeal apenas em 2023, o que torna ainda mais insólita a opção por este poliglota, que estava longe de ser dos mais bem colocados na lista de candidatos à sucessão de Francisco (2013-2025), eventualmente por causa do seu perfil recatado.
Dentro do Vaticano, apoiou uma das mais importantes transformações de Francisco, no que à organização da máquina católica diz respeito, ao chamar três mulheres ao processo decisório sobre que nomeações episcopais são propostas ao Sumo Pontífice. À Reuters, um amigo de infância do novo Papa, o padre Mark Francis, garante que Prevost era um firme apoiante de Francisco, sobretudo no tocante às questões da justiça social.
Pode dizer-se que, tal como o antecessor, Prevost se estreia como Papa, derrubando um grande tabu: o que determinava que o novo líder dos católicos não devia ser norte-americano, dado o já enorme poder geopolítico dos Estados Unidos noutras esferas.
Membro da Ordem de Santo Agostinho, que está presente em 42 países e congrega cerca de 2600 religiosos, o novo Papa já se tinha destacado, antes de ser chamado a Roma, quando exigiu um pedido público de desculpas pelos excessos e abusos cometidos durante o governo liderado por Alberto Fujimori. Mas não chegou ao topo da hierarquia católica com um currículo totalmente impoluto: há dois anos, foi acusado de ter encoberto casos de abuso sexual no Peru, apesar de o Vaticano ter garantido que Prevost seguiu fielmente os trâmites exigidos.
A sua nomeação põe fim à “era Francisco” na Igreja Católica. Morto no dia 21 de Abril, aos 88 anos de idade, depois de ter sofrido um acidente vascular cerebral, Jorge Mario Bergoglio ficará na história por ter rasgado várias fronteiras: foi o primeiro Papa jesuíta, o primeiro argentino, o primeiro em cerca de três séculos a pedir para ser enterrado fora da Basílica de São Pedro, optando pela mais modesta Basílica de Santa Maria Maior, junto à estação Termini, em Roma, que fica mais próxima daqueles que, ao longo de 12 anos de profunda mudança na Igreja Católica, quis chamar para o centro da sua acção: as periferias, geográficas e existenciais.
Os “derrotados”
As tensões na cúpula católica que a morte de Francisco fizera recrudescer, e que, ainda que de modo algo simplista, se podem descrever como a tensão existente entre os imobilistas e os adeptos de uma maior sintonização da Igreja Católica com os tempos modernos, tornaram muito arriscado o jogo de adivinhas quanto ao novo líder católico. A escolha agora conhecida deixa para trás nomes como o do secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, de 70 anos, que fora o braço direito de Francisco, e que era igualmente apontado como capaz de assegurar o necessário equilíbrio entre progressistas e conservadores.
Outra figura que se destacava claramente das inúmeras listas de candidatos à liderança da Igreja Católica, e que congregou um entusiasmo assinalável, era a do filipino Luís Tagle. Arcebispo de Manila, entre 2011 e 2019, Tagle estivera já no conclave que elegeu Francisco e, já na altura, era apontado como possível sucessor de Bento XVI (2005-2013). Embora haja quem lhe aponte o pecado de não ser suficientemente assertivo, o facto de ser proveniente das Filipinas poderia ter jogado a seu favor, na medida em que asseguraria a consolidação da Igreja Católica naquele continente. A Ásia, sublinhe-se, concentra muito do potencial de crescimento da instituição, numa altura em que, dos 1,4 mil milhões de católicos do mundo, apenas 20% são residentes na Europa.
Apesar de quando, em 2015, lhe perguntaram se alguma vez tinha considerado ser Papa, Chito (como prefere ser tratado) se ter dito incapaz de gerir a sua vida quanto mais uma comunidade global, Tagle tem vindo a afirmar-se como uma voz capaz de atenção aos pobres, nomeadamente porque, enquanto bispo, andava de jipe, transportes públicos baratos e juntava-se para comer juntamente com os mais carenciados. Era igualmente tido como capaz de levar por diante a revisão da postura da Igreja no tocante a questões como a comunidade LGBTQI e os divorciados e recasados.
Durante a tarde desta quinta-feira, a estação norte-americana Sky News dava conta dos sete nomes mais votados na primeira votação, num exercício que repescava também o nome do francês Jean-Marc Aveline, arcebispo de Marselha, recentemente eleito presidente da Conferência Episcopal Francesa, que poderia ter sido, se escolhido, o primeiro Papa francês desde o século XIV.
O rumo a seguir
O sucessor de Francisco herda um legado vasto e várias pendências. A renovação e a reforma franciscanas da Igreja assentaram em boa parte na dinâmica sinodal lançada em 2021, que chamou milhões de católicos de base do mundo inteiro a discutir qual deverá ser o rumo da Igreja Católica, num processo de aggiornamento da Igreja com o seu tempo que abarcou todos os tabus católicos e que Francisco não deixou concluído, à semelhança do que sucedera com João XIII com o Concílio Ecuménico Vaticano II – espécie de 25 de Abril dentro da Igreja.
Já internado no hospital, Francisco convocou uma Assembleia Eclesial para 2028. Nesta, propôs, uma vez mais, que bispos, padres, leigos e mulheres fossem chamados a discutir em absoluto pé de igualdade o modo de organização da Igreja. Antes disso, no Verão deste ano, os grupos de trabalho sobre os temas mais fracturantes, incluindo o celibato dos padres e a ordenação das mulheres como diáconos, deverão apresentar as suas conclusões. E, se não for antes, perceber-se-á nessa altura com suficiente clareza o perfil e a direcção do novo representante da Igreja e a que ponto ele quererá manter-se fiel ao “todos, todos, todos” de Francisco. (Público.pt)