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9 de June, 2025

Os 65 berlindes de Almiro Lobo

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Nas tardes em que o sol de Maputo parece repousar, cansado, sobre os telhados da nossa envelhecida cidade capital, é impossível não revisitar o quadro que ainda te consagra como um dos mais prestigiados ensaístas da praça – nesse teu jeito sereno de observar Mecanhelas, Quelimane, Moçambique, África e o mundo, como quem mastiga as palavras antes de as oferecer aos outros, já doces e deliciosas  de tanta sabedoria e prazeres de edição.

Escrevo-te, em meio a tantos ruídos e nuances dos tempos, como quem se dirige a um velho companheiro de caminhada, mas não numa caminhada qualquer, nem de destinos indefinidos. A nossa travessia é feita de livros, de ideias, de silêncios cúmplices, de ironias partilhadas nos corredores das universidades e das memórias que se demoram mais do que o tempo consente. Não tenho plena certeza se te quero exaltar ou celebrar; talvez apenas olhar para a nossa história, o nosso percurso, as tuas literaturas, nacionais e africanas, para que não sejam tomadas como obra do acaso ou como descontinuidades, mas sim como o mais grandioso projecto edificado no pós-independência. A literatura tem oferecido personalidade e voz a este país, bem mais do que qualquer outro projecto ou programa.

Agora que caminhas para os 65 anos de travessia pela estrada da vida, emprestei minha memória a algumas lembranças. Um convívio esporádico, sim, mas uma atenção sempre presente. Fui seguindo os teus passos e devaneios. Nesta amizade, curioso, nunca te chamei de Jojó. Evitei reduzir a tua personalidade a metades. O convite que me endereçaste para apresentar o teu livro Leituras Ensaiadas foi uma armadilha, ratoeira com drible de Maradona e remate de Eusébio. Na época, o mote oscilava entre o prazer da edição e a incerteza da leitura. Curioso: passaram-se tantos anos e, se a edição de livros parece não ter mãos a medir, a leitura, por sua vez, deixa tudo a desejar. Convenhamos, regredimos muitos furos. O que parece contar, de fato, são as cerimónias de lançamento de livros. Temos para todos os gostos e feitios. Terminou o debate sobre ser ou não ser, essa crise existencial de Shakespeare.

Um bom presente para te honrar e rememorar os teus 65 anos poderia consistir na selecção dos teus 65 livros e autores preferidos; as obras que moldaram a tua personalidade e a tua aptidão para as literaturas africanas, que são a tua especialidade. Aqueles clássicos que te tocaram fundo no âmago e transformaram os teus ideais e as tuas lutas. A selecção seria uma esplêndida lista para muitos ensaístas e leitores. Então, nesse teu jeito meio sério e muito a brincar, abririam-se as frestas da memória para indagar o que ainda nos atormenta na literatura nacional e, sobretudo, os destinos pelos quais a nossa literatura seguirá nos próximos tempos.

Leituras Ensaiadas pareceria a sentença de um risco calculado: na República das Letras, preval___ecia o debate sobre os eleitos e o termómetro da criação literária. Dizias bem que o aparato conceptual erguido precisava incorporar outros espaços universitários que nos surpreendessem com a riqueza dessa miscigenação. Foi precisamente isso que complicou a minha apresentação na época. Abordar esse mosaico cultural, como o definias, com os Bantu, os árabes (ou melhor, os islamizados), e os europeus descendentes de Camões, afigurava-se como diálogo para muitas horas.

A minha apresentação foi atabalhoada e plena de ziguezagues. Ainda bem que, mais tarde, alguém nos recordou que os livros não carecem de apresentações. Carecemos, certamente, de fazer ensaios, sem rodeios, como forma de assegurar a venda do livro. Driblar o mercantilismo livreiro revestido de pele literária.

Nessa época, repetias muitas vezes o dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, citando o provérbio: “Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento; mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” Era uma crítica suave à tendência de culpar as consequências de um sistema opressivo, o rio, em vez de analisar as causas que o impõem, ou seja, as margens. Repeti essa frase vezes sem conta, e muitas delas te atribuí a autoria. A honra de ter um amigo inventor de provérbios.

Curioso que continuamos a criticar tantas águas desse mesmo rio, como se ele não tivesse uma localização geográfica, um país inocente e inominado. Eu acrescentava, sempre, ou quase sempre, que o tempo coloca cada rei no seu trono e cada palhaço no seu circo. Para cada um de nós, esta seria a implacável justiça do tempo. Será, amigo Almiro, que andamos equivocados nos resíduos do tempo por tanto tempo?

No lançamento da obra Os Bichos Têm Dono, pior que têm mesmo, quer seja metáfora ou qualquer outra forma de estilo, comovemo-nos com a forma como iniciaste a tua intervenção: “Não vos posso ver, mas sinto cada um de vós no meu coração.” Aquele longo silêncio na sala fez-nos pensar na condição humana. Sabemos que, contigo, não existe fronteira entre ficção e realidade. Essa é a linha descontínua que te foi típica ao longo dos anos.

As tuas palavras provaram, mais uma vez, como és ostensivamente inteligente e, simultaneamente, poeticamente surpreendente e desconcertante. Não deixas de ser aquele colega e amigo provocador e, tanto na oralidade como na escrita, instigas sempre uma boa provocação e, com ela, a reflexão.

Recordo, com a nitidez que só a amizade sabe devolver, o dia em que me falaste da ideia de O Berlinde com Eusébio Lá Dentro. Eu queria saber da polémica com o Benfica; tu querias falar sobre literatura, como se a polémica não tivesse qualquer impacto nos teus dias e noites. Literatura não gera conflitos. Muito pelo contrário: aproxima povos, pessoas e sonhos.

Seguimos conversando sobre um pedido especial da Isabel Ferrão Tiemroth. Serias a melhor pessoa para regressar ao vale do Zambeze e rever Kalizamimba. Aquele prefácio foi curto e directo. Com mestria e ligeireza exuberante, em estilo romântico, a autora resgata, das marcas do tempo dos prazos da Coroa no século XVIII, os testemunhos de resistência à penetração colonial por parte dos reinos ali estabelecidos, o papel dos Achicunda e sua organização militar. Era uma forma de afirmação da identidade cultural de um povo e de povos que passaram por eloquentes formas de miscigenação e apropriação de identidades culturais significativas.

O berlinde era, então, a segunda parte desse prefácio ao livro da Isabel. Tratava-se das narrativas e dos testemunhos dos últimos anos do tempo colonial e do período pós-independência de Moçambique. Aquilo que havias vivenciado em lugares tão diversos e tão diferentes entre si. Naturalmente, eu tinha todo o interesse em conhecer algumas dessas histórias, pois conheço alguns desses locais, porém, com outras narrativas e memórias. Chinde, Mocubela, Maputo, Mepanhira, Quelimane e Lisboa.

São histórias da nossa geração, que cada um de nós partilha com os mais jovens e com suas famílias. Episódios que evocam o esforço, as angústias e os sonhos dessa reconstrução nacional, tão distante dos ideais do pós-independência. Algumas vicissitudes dos jovens do 8 de Março, essa geração de Samora Machel e Graça Machel, que, com o melhor do seu talento, também ajudou a fazer a revolução, e a abrir caminhos para a educação, a cultura, a economia e, enfim, para um novo país com nova bandeira.

Foi notável, durante a nossa conversa, como tinhas os olhos acesos, como faróis de pesca nocturna, e contavas que, dentro daquele berlinde, “não era de vidro, Jorge, era feito dos tempos que nos abraçam e dos quais também fomos protagonistas”, encerravas pedaços inteiros de uma infância atravessada por soldados, por balas perdidas e por sonhos que cabiam numa caixa de fósforos. Falavas do Eusébio como quem fala de um irmão mais velho, alguém que te inspirou a ser rápido, não com os pés, mas com o pensamento. Vendo bem, nem sequer fomos de tantos futebóis.

Eusébio, esse nome gigante, que foi sementeira em tantos corações africanos, tornou-se, então, em teu livro, não apenas personagem, mas verdadeiro espelho. Convenhamos: um pretexto para contar e recontar Moçambique e suas peripécias; para chorar e rir da infância colonizada; para fazer da escrita uma pá e uma enxada. Enfim, querias muito que eu entendesse que continuas a cultivar memórias como quem lavra o futuro.

A bem da verdade, pelas tuas páginas e livros, sabemos, e somos testemunhas, que continuas exímio e incomparável nessa e noutras descrições. Teus livros têm sido muito do percurso deste país que ainda procura se reencontrar e se afirmar.

Voltemos à história e ao berlinde de Eusébio.

Por isso, quando o Sport Lisboa e Benfica decidiu, com a leveza de uma censura mal disfarçada, proibir a venda do teu livro, perguntei-me: em que berlinde é que o Benfica meteu a cabeça? O autor do livro O Berlinde com Eusébio Lá Dentro foi acusado, pelo grupo de advogados do Benfica, eventualmente por qualquer desinformação, de estar a utilizar indevidamente a imagem de Eusébio na obra. Para a capa do livro, pediste ao fotógrafo que captasse uma imagem do teu filho, de 18 anos, a jogar à bola. Portanto, desde logo, ficou provado que a imagem da capa do livro não era de Eusébio da Silva Ferreira, com quem Almiro jamais privou em vida, mas sim do seu próprio filho.

Os teus berlindes não carregaram apenas Eusébio no seu interior. Foram milhões de sonhos e vidas que se afirmaram e reescreveram as histórias e os limites deste jovem país, com novas narrativas, novas palavras, novos mundos possíveis. Não saberão que o pós-independência não se joga apenas em campos relvados, mas também nas livrarias, nos cafés, nos bairros onde a memória se faz verbo? Como é possível que um clube que foi símbolo de resistência e sonho para tantos dos nossos, agora recuse espaço à literatura que ousa reinterpretar os heróis, os mitos e os silêncios do império?

Neste ano em que comemoramos 50 anos da independência nacional, as tuas crónicas e livros não poderiam ser mais oportunos nem mais necessários. São um libelo contra o esquecimento, contra a desmemória, contra o vexame do alheamento. A tua mais recente colectânea, Memórias Marginais, é uma forma imponente de te posicionares contra a indignidade do desconhecimento e da omissão. Memórias Marginais ou, por outras palavras, o degelo, o estalar do gelo espesso, para quebrar um longuíssimo silêncio de quase cinco décadas. Uma desmemória de uma geração que viveu e testemunhou as aventuras e dilemas, as contradições e obrigatoriedades, o sonho azul vivido por adolescentes que, nalguns casos com apenas 17, 18, 19, 20 anos, assumiram responsabilidades imensas para fazer um país. Um país que, ao destruir o aparelho de Estado colonial, tentava refazer o sonho de Eduardo Mondlane, de Samora Machel e de tantos outros.

Para a história fica o registo: ao partilhar textos escritos de forma simples, sem a pretensão de um critério rigoroso, as experiências dos Oitomarcistas provam, com clareza, que Almiro Lobo não apenas se preocupa em enriquecer a consciência histórica de Moçambique, como rebusca nas consciências dos colegas aquilo que ainda resta de memórias cansadas, e agora aposentadas. Estes são os marcos de um Moçambique feito de rascunhos e reescritas, onde o passado ainda espreita nas esquinas, e o futuro tropeça nos mesmos buracos do ontem.

Almiro Lobo será sempre a casa onde os que vieram antes podem entrar de pés descalços e sentar-se sem cerimónia, porque sabem que ali, na tua escrita, há lugar para todos. Se me pedissem para dizer quem és, eu diria apenas: um jardineiro de memórias. Um homem que soube plantar livros onde antes só havia silêncio. Um amigo que, aos 65 anos, ainda joga berlindes com os miúdos da palavra.

Que este texto não te chegue embrulhado em papel, mas com as metáforas que nos ensinaste a usar e abusar, com o verbo com que os bons escritores embrulham os sentimentos.

Sir Motors

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