Era ostensivamente inteligente, tinha o brilho dos cometas e, simultaneamente, era poeticamente desconcertante. A esta distância, creio que, no fundo, ele foi um grande provocador. Um instigador. Esteve, enquanto viveu, a sua breve e intensa vida, na condição de um grande zombador. Lá onde está, nos páramos para onde os deuses cedo o levaram, para o gáudio dos mesmos e tristeza nossa, deve estar, agora, a troçar de nós. Inventou para si duas personas: a do homem público, funcionário aprumado, economista com uma carreira brilhante e, nos antípodas: a do poeta, sobretudo lírico, desconcertante. Encenou estas personagens ao longo da vida. No fundo era um encenador. A vida era o seu palco primordial. Era, simultaneamente, um tremendo actor, que sabia representar aquelas duas personas e sabia interpretar o seu tempo, o nosso tempo. Morreu com 52 anos e legou-nos, entre o muito que foi, obras literárias, nos domínios da poesia e da prosa, entre ficção, crónica e memória.
António Pinto de Abreu nasceu no Chimoio, em 1965, quando os seus pais, ambos enfermeiros, viviam em Gondola. A sua infância ocorreu na Beira. A vetusta Aruângua passaria a ser a sua pátria literária e o seu referencial cultural. Aliás, seria naquela cidade que o seu pai e uma das suas irmãs iriam publicar poesia, o primeiro nos anos 50 e 60, e a segunda nos anos 70. Ele haveria de seguir o exemplo. Aliás, eles (a família) também serão referentes poéticos.
A sua poesia é atravessada pelo assombro desse menino que cresceu na cidade da Beira, que cedo se deslocou à Ilha da Juventude, onde estudou entre 1977 e 1982, facto que lhe marcou o percurso, a vida e a forma como exerceu as suas personas. Em Cuba praticou os ritos iniciais (ou iniciáticos) da escrita e do teatro, cruzou-se com um outro poeta, precocemente desaparecido, José Pastor, igualmente desconcertante.
Regressado à pátria, divide-se entre o curso de economia e uma entusiasmada actividade cultural. Formou-se na Universidade Eduardo Mondlane (1985-1989) e foi funcionário do Banco Central desde 1982 onde fez uma carreira brilhante até chegar ao cargo de Vice-Governador. Completou os seus estudos, com um distinto mestrado em economia financeira, na Universidade de Londres (SOAS) em 1998.
Pertenceu à geração da “Charrua”, um grupo de jovens poetas, contistas e ensaístas digressivos, que se reviam numa desassombrada postura contestatária e não se reconheciam nos chamados excessos da Primeira República, nem nos gestos ou discursos. Rui Nogar, honra lhe seja feita, praticou, em relação a esta geração, uma inexcedível bonomia, abrigando-a. Mesma quando não se filiasse na iconoclastia dos jovens. Foi um verdadeiro democrata e um homem de uma grande abertura de espírito.
António Pinto de Abreu publicou, para além da “Charrua”, na revista “Tempo”, no “Diário de Moçambique” e no jornal “Domingo” poemas, crónicas e contos. Os seus poemas integram a “Antologia da Nova Poesia Moçambicana”, organizada por Fátima Mendonça e pelo autor destas linhas, e a antologia “Nunca Mais é Sábado”.
A infância, a cidade e o amor eram os seus temas electivos. Estreou-se em livro com “Murmúrio de Acácia” (2000) e encerrou as suas efemérides literárias com um pungente testemunho (ia dizer testamento e não estaria longe da verdade) designado “Algumas das memórias que eu ainda retenho”, dado à estampa meses antes do seu eclipse a 2 de Agosto de 2017. De permeio, publicaria “Cascata de Sinos” (2007), “Brisa de Luz” (2015) e, no mesmo ano “50 Poemas – Antologia poética”, a súmula do seu percurso poético, porfiado entre 1979 e 2014, abruptamente interrompido pela doença e pela morte. Naquele volume estavam reunidos poemas coligidos de três volumes de poesia que publicara e alguns textos inéditos e estes (no seu harmonioso conjunto) subscreviam a matriz poética do seu autor: a infância, o amor e a cidade, os eixos temáticos da sua escrita poética.
O poeta António Pinto de Abreu, no fundo, escreveria, até ao fim, sobre um mesmo tema: o amor. Ele inscrevia-se, por assim dizer, no território dos afectos. Era a sua praxis: uma poesia que se recortava nos afectos, sem, no entanto, abandonar os temas que perseguiam o homem que se preocupava (politicamente, digo-o sem ser afoito) com o tempo presente e o destino da sua pátria. Aliás, o Abreu era, também, visceralmente patriota. Não havia conversa em que a pátria não atalhasse pelo meio e não determinasse o curso do pensamento ou não prenunciasse uma acção futura. A pátria estava entre essas duas personas que ele inventara e que ele investira ao longo da vida. Era o seu propósito, o seu cometimento, o seu ideário. Fazia disso o seu tirocínio.
Disse-o e aqui sublinho: a sua palavra, a sua invenção, a sua dicção, a sua gramática sempre foi, na sua quinta-essência, o discurso amoroso. O seu alto canto estava ancorado naqueles versos nos quais celebrava a sua musa Silvina com desvelo e candura. Ou o seu amor pelos filhos, Edwina e Luan. Poesia carregada de futuro que ele não iria viver. Os deuses, no seu arbítrio, livre e, por vezes, dolorosamente malicioso, são capazes de deduzir, entre nós, os melhores.
Não tenho dúvida de que ele estava nessa condição. Era um homem de um raro brilho, tinha uma fulgurante inteligência, uma memória prodigiosa, um raciocínio assassino e cortante por vezes, desassombrado e desarmante, uma cultura sólida e uma obstinada vontade de viver e de triunfar. Tinha desígnios para a sua vida. Não os cumpriu todos. Mas viveu na plenitude. Viveu e amou. Amou e viveu. Sempre com pronunciada, irrequieta, bem-disposta, vigorosa energia. Até parece que suspeitava dos intuitos divinos que lhe cortaram as asas em pleno voo.
António Pinto de Abreu nasceu no dia 21 de Março de 1965. Passam hoje, precisamente, 60 anos. Acontece que 21 de Março é o dia da poesia e dos poetas. Ele foi, até ao fim, um poeta. Foi-o nos seus versos, nos seus gestos, na sua forma de estar e de ser. Foi-o quando sorria mefistofelicamente, quando zombava dos amigos. Foi-o quando se entregava à rumba e dançava ébrio por ritmos caribenhos. Era-o quando castiço, genuíno, ufano, provocador, astuto, desenvolto, sagaz nos iluminava com algo que não sabíamos discernir, mas sabíamos que nos alumbrava.
Foi, para mim, mais do que um amigo. Foi meu irmão, meu mais velho. Praticamos uma cumplicidade sem tréguas e tornamo-nos parentes. Esse parentesco vai, até hoje, para além das nossas afinidades literárias e tributa-se na relação que prossegue tanto com a sua musa soberana como com a sua progênie.
Aqui lhe faço uma singela homenagem, deixo-lhe um aceno, nesta breve, mas sentida mesura. Oiço compungido Pablo Milanés (“Pablo Querido”, que ele me trouxe de La Habana) e sou incapaz de dizer do muito que o António Pinto de Abreu faz falta. Hoje – o dia dele, o dia da poesia – e todos os dias.
Cidade do Cabo, 21 de Março de 2025