Quando, há trinta e cinco anos, em Janeiro de 1990, fui ao seu encontro, para uma entrevista literária, publicada na “Gazeta” do vetusto semanário TEMPO, estava diante de uma escritora que se estreava, depois dos 50 anos, com um magro e belo livro de contos, uma escrita enganosamente simples e poderosamente atingida, vizinha de uma realidade vivida e subsumida. Também estava diante de uma mulher culta, com conversa inteligente e um sorriso desarmante, mesmo quando cuidava de fazer censura às anomias que então se revelavam na sociedade.
“Ninguém Matou Suhura” reunia cinco textos que denunciavam situações que tinham ocorrido entre 1935 e 1974. Ou melhor: a autora datava assim os textos e localizava-os, de Lourenço Marques à Ilha de Moçambique, passando por Luanda. E mais: fazia questão de sublinhar que o que escrevera advinha de factos que tinham ocorrido. “Estes contos são baseados em factos verídicos, embora os locais e as datas nem sempre correspondem à realidade”.
Aquando do centenário de Maputo, no limite do prazo, ela entregara à competição o conto “Caniço” para o concurso referente à ficção, que levava o nome de João Dias. O texto, inédito, venceria o prémio. Entre uma actividade profissional exigente (era à época directora na Secretaria de Estado da Cultura) e a necessidade inadiável de escrever (afinal, porfiara desde sempre esse desígnio), nascerá, em 1988, sob a chancela da AEMO, “Ninguém Matou Suhura”.
O pequeno livro reunia para além do texto homónimo (“Ninguém Matou Suhura” – Ilha de Moçambique, Novembro de 1970), o aludido “Caniço” (Lourenço Marques, Dezembro de 1945), “Aconteceu em Saua-Saua” (Junho de 1935), “O baile de Celina” (Lourenço Marques, 1950) e “O último pesadelo” (Luanda, Abril de 1974). Todos eles escorados em factos verídicos, como rezava uma breve nota final, e como a autora fazia gáudio de referir. Aliás, como se cumprisse uma promessa e prestasse contas à História, devolvendo-lhe um testemunho e legando ao futuro um testamento.
Os factos a que se refere a autora e que estão magistralmente transfigurados naquelas peças literárias ganham, na morfologia destes contos, uma roupagem, digamos assim, que os distinguem. Luís Bernardo Honwana, no prefácio que faz, refere-se-lhe: “Ao ler as histórias que fazem parte deste livro a gente imagina o que a autora terá dito de si para si quando testemunhou algumas das situações aqui descritas, ao tempo em que elas aconteceram. “Um dia eu escrevo” – as palavras de frustração e desafio, temor e resgate que, ao longo da história, terão despoletado tantas vocações para a literatura. Tê-las-ás dito Lília Momplé? Crível, se atentarmos na preocupação de datar, de localizar espacialmente as histórias”.
Lília Maria Clara Carrière Momplé nasceu, na Ilha de Moçambique, a 19 de Março de 1935, faz hoje 90 anos. Das suas origens avultam, do lado materno, uma avó macua e um avô francês (Carrière, oriundo de Marselha); do lado paterno, a avó que nascera em Lourenço Marques e o avô (Momplé) que vinha da ilha Maurícia. Sangue que mistura origens negras, indianas, chinesas, europeias. Uma amálgama.
Isso dá-lhe um encanto. Para além da sua beleza. O seu panache. A sua cultura, a sua elegância e a sua elevação. Uma mulher distinta, fidalga, cultora de línguas. Com uma conversa fascinante, os olhos brilhantes e o sorriso marcando os zigomas. Mas sempre despretensiosa. O que não significa nem significava que fosse anódina, antes pelo contrário. A sua crítica era por vezes severa. Abominava a mediocridade, a incultura ou o descaso a que estavam sempre votados a literatura e os escritores num contexto em que se procurava a ascensão social através da riqueza e da ostentação. Aliás, este será um tema para um livro futuro.
Vivera na mítica Ilha onde nascera, depois na então Lourenço Marques, quando chegou a altura de frequentar o liceu, e, mais tarde iria, teria a possibilidade de estudar em Portugal, primeiro em Germânicas e depois em Serviço Social. Em 1964 vive em Londres, no ano seguinte retorna a Moçambique. Desenvolve então trabalho social. Entre 1968 e 1971, vive em S. Paulo e na Bahia, no Brasil. No regresso ao país vai para a Ilha onde permanece dez anos. Em 1981 ingressa na Secretaria de Estado da Cultura e, no ano seguinte, está entre os membros fundadores da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). Ela acreditava num certo activismo literário. Queria que os escritores fossem às escolas, ao encontro dos estudantes. Pugnava por isso. Foi Secretária Geral da associação entre os anos de 1995 e 2001. Também foi Presidente da AEMO.
Participou em eventos literários no país e no estrangeiro. Representou o país no Conselho Executivo da UNESCO em Paris, entre 2001 e 2005. Estas são as suas principais efemérides.
A escritora sentia-se, dir-me-á naquela remota conversa de 90, exaltada com o acto de escrever, com o acto de criação. A publicação não lhe trazia a mesma empolgação como o acto transcendente de ficcionar a vida vivida, a miséria dos dias, o drama dos tempos. Escrevia sobre o que vira, sobre o que a impressionara, sobre o que levava dentro de si. Havia, sim, uma biografia dissimulada, digo eu, ou se quisermos, a escrita dela era, como a de muitos, um exercício autobiográfico. Ela se revia, no final, na realidade, na vida das pessoas, no seu quotidiano, nas suas frustrações ou nas lídimas e dignas aspirações de muitos. O seu trabalho era transpor isso para o papel. Fazia-o com exigência, com aprumo, com diligência, com humildade.
Passados estes trinta e cinco anos, com a estante da autora com mais títulos, designadamente “Neighbours” (1995), “Os olhos da cobra verde” (1997) e uma “Antologia de Contos” (2012) e prémios, como o José Craveirinha, em 2012, estou tentado a encomiá-la. Lília Momplé é, por direito próprio, uma das mais belas e surpreendentes contistas moçambicanas e, simultaneamente, uma das menos celebradas e aludidas.
Creio que não lhe demos a importância que merece. Que a subalternizamos por alguma razão que não sei escrutinar. Provavelmente por nossa incúria ou distração. Ou por pela nossa milenar incapacidade de nos reconhecermos nos melhores. Pela nossa inultrapassável abulia.
Há tempos anunciava um romance que se curava da necessidade de revelar a angústia e a perplexidade de uma escritora que vive e se confronta “com criaturas que lançam mão de tudo para preencher com bens materiais o seu enorme vazio interior” ou que “amam também o poder e a ostentação”. O título: “Fantoches de Aço”. Não tenho notícia de que tenha prosseguido. Teria gostado de experimentar o seu vinagre.
Lília escreveu pouco. Ou, pelo menos, publicou pouco. E do pouco que publicou tem um punhado de contos magistrais: “Caniço” é a dramática e pungente história de Naftal, do seu pai mineiro e da sua irmã, que se tornará prostituta; “Baile de Celina”, história do racismo miserável que permeava a sociedade colonial; “Stress”, sobre os tempos ulteriores à independência e ao desagregar dos valores, história dramática de um professor, nos tempos da guerra, que se embriaga da sua angústia, na varanda, sob o olhar da amante de um major general, ou “Uma bala para Sharmila”, conto que decorre no Iraque (pós 11 de Setembro) e que irá atormentar o soldado Mark Sledje. Qualquer um destes contos, se mais não houvesse, bastariam para a inscrever nos armoriais da nossa literatura e da literatura africana.
Lília Momplé é uma escritora atenta às anomias sociais, aos conflitos e às tensões, quer nas famílias ou na sociedade, ao preconceito ou segregação, à degenerescência dos valores, à corrupção ou à alteração da ordem no interior da sociedade, ao seu abastardamento. Alguém asseverava que a melhor notícia histórica não se assacava dos tomos da História, mas na ficção narrativa. É o caso dos livros da Lília. São, também, o melhor da narração da nossa história, do tempo e das suas contradições. Os seus livros, a sua obra, o seu exemplo, são um poderoso monumento ético e cultural. A integridade, a probidade, a dignidade. Justamente para onde foram exilados os antigos. Que nos distinguiam pelo exemplo e uma bitola moral e um cânone social e um protótipo individual, posturas que não remuneram nos dias de hoje.