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Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

11 de Março, 2025

O dia em que ‘Ponto Final’ deixou de ser… idílico!

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Talvez porque eram os subúrbios mais próximos, logo a seguir à cidade, Maxaquene, Polana Caniço, Urbanização, Aeroporto eram os bairros que mais acolhiam os muitos vientes buscadores de oportunidades de emprego na zona de cimento, durante a época colonial e pouco depois da proclamação da independência nacional. Muitos gazenses de diferentes cantos de Gaza, mas não só, vieram e estabeleceram-se naqueles bairros e procuravam trabalho, em muitos casos, como empregados domésticos em casas particulares, ou de serventes em empresas geralmente privadas. A maior parte desses vientes eram de formação e educação escolar baixa, alguns mesmo analfabetos. O meu próprio pai e tio, com educação escolar baixa, chegaram a estabelecer-se algures na Polana Caniço e trabalharam como empregados domésticos. Salvou-os o pai, meu avó António, o vovó Manguiza, que, vindo de férias da África do Sul onde trabalhava nas minas, ouvindo que os seus filhos estavam em Lourenço Marques, foi buscá-los e mandou-os à formação profissionalizante. Meu pai ficou professor de posto escolar e o meu tio, irmão mais velho, pedreiro.

Por conseguinte, desde muito cedo, praticamente desde o berço, que ouvia falar, primeiro, de Lourenço Marques e, depois, de Maputo. Desde Malehice, onde nasci, até Mugunwane, passando por Munhangane e Xipadja, onde cresci e fiz a escolaridade inicial. Falava-se de uma cidade muito bela, fascinante, limpa, idílica, épica, fantástica, de grandeza fora do comum. Mesmo sem termos de comparação. E quando fui crescendo e interagindo com outras crianças cujos pais já frequentavam ou estavam já na então capital da Província de Moçambique, a beleza e extraordinariedade da urbe vinha ao de cima. De tal sorte que chegava eu a ter ciúmes, sentindo-me apequenado, pois ainda não tinha estado, nem conhecia Lourenço Marques, nem depois Maputo. Em Xipadja, é onde foram mais intensas as conversas sobre a capital. Já estudava sequencialmente em Malehice, Xai-Xai e Chókwè. Quer nesses locais, quer quando fosse de férias a Xipadja e encontrar-me com jovens da zona que já tinham tido a oportunidade de conhecer, Lourenço Marques, que já era a capital Maputo, era o tema.

As avenidas de Angola, Acordos de Lusaka, Vladimir Lenine e a Eduardo Mondlane eram as mais cantadas. Xipamanine, Alto Maé e a Baixa, com os seus mistérios da noite e da rua de Bagamoyo, assim como a FACIM, complementavam as narrativas idílicas e épicas da já Maputo. Num desses anos, estando já em Chókwè, numa das férias, acabei não indo para Xipadja, mas seguir viagem, à revelia dos meus pais, para… Maputo, onde vim hospedar-me em casa de um tio durante cerca de um mês: foi a êxtase total, delírio absoluto, um grande objectivo tinha sido conseguido. Até me dei ao luxo e prazer de percorrer, de ponta a ponta, as ruas maputenses sozinho, o dia inteiro, enquanto meu tio estava no trabalho.

Na Escola Secundária de Chókwè, tínhamos um docente de Química. Durante os três anos em que trabalhamos com ele, costumava terminar as suas aulas de forma anedótica, perguntando: “O que é que fica no cruzamento das avenidas Eduardo Mondlane e Guerra Popular?”. E nós, teatralmente, em uníssono, respondíamos sempre: “Ponto Final” – referindo-nos ao restaurante Ponto Final que lá se situava (agora, KFC). O ponto final, na metalinguística, marca o fim de um texto. Para nós, lá na escola, era o fim da aula e podíamos recolher para as nossas casas!

E foi este “Ponto Final”, metaforizando primeiro Lourenço Marques, depois Maputo, que ficou no meu imaginário, mas no de muitos compatriotas também, desde a adolescência, puberdade até à entrada para a idade adulta. Esquina das avenidas Eduardo Mondlane e Guerra Popular; ou seja, confluência destas duas fabulosas vias, ambas vindas do infinito. A Guerra Popular trazendo o calor, a energia, a cultura, o fluxo de inúmeros passageiros e gentes vindos desde os bairros Urbanização, Maxaquene, Aeroporto, Hulene, Malhazine, Magoanine… até Marracuene, Manhiça… Gaza, Inhambane e por aí fora até ao norte do país, depois Tanzania até Cairo! E a Eduardo Mondlane exaurindo todas as gentes, mentes, valores, culturas e energias vindas das regiões mais a sul: Luís Cabral (ou Xinhembanine), Matola, Namaacha, Ressano Garcia e tudo o resto até aos países vizinhos de Eswathine e África do Sul e outros mais.

Ambas as avenidas, maravilhosas, faustosas, fantásticas, bastante movimentadas, traduzem o pulsar do dia na cidade de Maputo. Foi esta faixa da cidade, (a região do Ponto Final) que construiu em milhões de mentes dos gazenses, mas não só – e acredito que continuam -, uma imagem épica, idílica, fascinante, fantástica, maravilhosa… primeiro de uma Lourenço Marques e, mais tarde, da fabulosa cidade de Maputo, amada, apreciada, cobiçada pelo mundo inteiro!

Hoje. Tal como acontece com um disco duro, esta imagem não mais aparece. A vasculha está a ser intensa em todos os domínios do disco, mas… nada. Aquele Ponto Final idílico, épico, suscitante de um imaginário romântico, desapareceu completamente. Sumiu. Nem com a ajuda da inteligência artificial, reaparece. Apagão!

O que o disco duro exaure a plenos pulmões é uma Eduardo Mondlane e Guerra Popular repletas, em todos os sentidos – norte, sul, leste e oeste -, de blindados, tanques de guerra, mahindras, muitos polícias, bastantes militares, imensos tiros, entre gás lacrimogêneo, balas de borracha e cápsulas de balas verdadeiras. Sobretudo depois de 9 de Outubro passado, só se vislumbra um “Ponto Final” militarizado, repleto de polícias e militares, autêntico espectro de guerra, terror, combates, pneus a arder em vários sítios, muitos cidadãos correndo de um lado para o outro; mahindras prenhes de policiais armados, com cães e bastões, etc., etc. e etc. Mas, mais tenebroso que tudo o que se pode imaginar, foi o dia 27 de Novembro de 2024, quando um carro blindado passa por cima do corpo de uma senhora de meia idade!… num filme perfeito.

Ponto Final jamais será aquele local que foi: mítico, mágico e muito evocativo! Triste.

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