A única generosidade mais pura que sempre vi em Calane foi a de dobrar-se; ele tinha uma espécie de guinchos no pescoço que lhe dobravam a cabeça para falar com os mais baixinhos. Não era só o corpo enorme que se dobrava, que descia, eram os seus óculos, o seu cheio, a sua boca entulhada […]
Tinha a cabeça submersa, como um cágado, no casco da camisola, movimentava-a mas só para os lados. Tinha os óculos poisados sobre a mesa, mas as marcas dos óculos continuavam em seu nariz; e seus olhos mexiam-se a cada instante como pés húmidos arrancados das meias. Os óculos de costas estavam sobre a mesa, um […]
Naquela sala, do Hospital José Macamo, éramos um rebanho de doentes comendo restos de sono e capim nas camas de lençóis sujos. Os enfermeiros surgiam arrastando tubos de soros e nós éramos um enorme rebanho. Cada doente tinha um pastor que lhe espetava as agulhas, que lhe corrigia o lençol no canto da cama, que […]
Como estagiário a primeira pessoa que conheci naquele jornal foi um branco, meio gasto, que sempre que entrasse na redacção deixava, em forma de cheiro, uma enorme cauda com bocejos de álcool e pêlos leves de tabaco. Entrava sempre aos berros na redacção com a língua sobre o peito e punha-se a ladrar: “isto é […]
A sua enorme barriga com cardume de lombrigas como a de um canguru em gestação e a habilidade de dormir de boca aberta na sala, levaram a turma toda a chamá-lo Senhor Deputado. Seu nome era Viriato Bernardo Maposse. Era um espectáculo vê-lo dormindo de boca aberta e as moscas aterrando zumbidos sobre a pista […]
Quando a funerária meteu-se no cemitério com o cadáver do país enrolado num pano branco e trancado no caixão, os soluços dos presentes começaram a espumar. Eram soluços breves que decaíam das gargantas como pequenas cascatas. O país estreava-se no cemitério depois anos e anos lutando contra um cancro da corrupção. Um fulano qualquer, metido […]
Corri com tralhas para entregar a um fulano que já estava com as malas prontas e as horas esgotadas para regressar a Maputo. Eram tralhas de saudades, de falta, de lágrimas que queria que ele ajeitasse-me na sua mala. Fiz tudo a correr, de modo que a caixinha de saudades fazia barulho como uma caneca […]
Trabalhava como jornalista quando fui apontado para cobrir a inauguração de uma fontanária numa província do sul do país. O gabinete do senhor Governador deu-nos ajuda de custo, mas tudo evaporou nas mãos do meu editor; dia seguinte o homem apareceu bêbado no jornal e disparou em todos lados: “vocês sabiam que o primeiro homem […]
Quando a Federação Moçambicana de Futebol foi arrastada pelos pés para fora do jogo, com seus dirigentes que passavam a vida soprando apitos de sono nos escritórios como pastores de gado, todas as bolas foram transformadas em berlindes e assim surgiu dessa devastação a Federação Moçambicana de Berlindes. O timbre da nova federação era um […]
Mariano, vi-te nas fotografias deitado de costas como uma baleia cuspida pela fúria do mar, os teus olhos pendurados no rosto pareciam duas lâmpadas fundidas balançando e divertindo os insectos das tuas sobrancelhas. E aparece-me que tinhas muita pressa em morrer, pois nem uma lâmina de gilete passaste pela barba e não baixaste os lábios […]