“Do país sonhado ao país vivido: Moçambique 1975-2025” é a mais recente proposta de leitura colocada à disposição dos moçambicanos pelo Observatório do Meio Rural (OMR) – organização da sociedade civil que realiza estudos e pesquisas sobre políticas relativas ao desenvolvimento rural –, com assinatura dos economistas João Mosca e Thomas Selemane.
A ser lançado hoje, em Maputo, o livro apresenta, em pouco mais de 80 páginas, a situação social, política e económica do país durante os quase 50 anos de independência nacional, a serem comemorados no próximo dia 25 de Junho, no Estádio da Machava, na província de Maputo, local onde o primeiro Presidente da República, Samora Moisés Machel, anunciou a constituição da República Popular de Moçambique.
Segundo os autores, aquando da independência nacional, sonhava-se com um Estado de operários e camponeses, mas após 50 anos vivemos num “Estado dominado pelas elites da Frelimo e com corrupção endémica – uma plataforma de distribuição hierarquizada de recursos financeiros e materiais”.
Igualmente, refere o livro – já disponível nas plataformas digitais da organização – sonhava-se com um “Estado popular democrático”, mas vive-se um “Estado autoritário, centralizado, concentrador do poder e imbuído de corrupção endémica”, marcado por campos de reeducação, fuzilamentos, desaparecimentos, sequestros e prisões arbitrárias e de “uma democracia aparente”.
A obra defende ainda que, quando Samora Machel proclamou a independência nacional, a Frelimo dizia que os seus dirigentes seriam “os primeiros nos sacrifícios” e “os últimos nos benefícios”, mas debalde!
Observou-se, sim, “elites partidárias com benesses diversas: distribuição de lugares em conselhos de administração de empresas e institutos públicos, mesmo sem qualificações; obtenção de licenças mineiras e DUAT para posterior venda a investidores; contratos com entidades do Estado, mesmo sem mérito; bolsas de estudo para os filhos no estrangeiro; tratamento médico no estrangeiro; aquisição de viaturas; casas de ‘função’; viagens em serviço com pockets money chorudos; assistência protocolar com várias viaturas, mesmo após cessação de funções; empregados e seguranças pagos pelo Estado”, sublinham.
O sonho da paz foi substituído por 27 anos de guerra, instabilidade social (manifestações e greves) e clima de indignação, sobretudo em jovens recém-formados. O sonho de construir a unidade nacional e “uma sociedade anti-tribalista e anti-racista” foi substituído por um “sentimento identitário de uma região ou etnia”.
“O discurso não é racista, mas múltiplas decisões governamentais e sentimentos populares têm a cor da pele, da etnia e da militância partidária como referência”, defendem os autores do livro, para quem a agricultura centra-se na exportação e secundarização dos pequenos produtores de alimentos e na importação massiva de bens alimentares.
Privatização beneficiou elites da Frelimo
De acordo com o livro, depois da independência, a evolução da economia moçambicana esteve sujeita a instabilidades quanto aos modelos de desenvolvimento, que resultaram de opções políticas e ideológicas, sobretudo da “experiência socialista”; reformas económicas impostas pelas instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI); a instauração de uma “economia selvagem”, terminando numa “economia de saque”; e o período de uma grave crise económica, de causas múltiplas e interrelacionadas (dívidas ocultas, guerra em Cabo Delgado, crises políticas pós-eleitorais e de instabilidade social), aumento da pobreza, choques climáticos e outras.
Os autores sublinham que a guerra civil teve grandes repercussões económicas. “À medida que a guerra se alastrava, Moçambique introduziu um Programa de Ajustamento Estrutural do Banco Mundial, que incluía um grande programa de privatização”, referem.
Em termos estatísticos, a pesquisa mostra que, durante o período de 1980 a 1986, a taxa de crescimento fixou-se entre 4,4% e 4,3%, sendo que nos anos de 1982 e 1984 era de -6,3% e -9,6%, respectivamente. Já a inflação estava entre 17,6% (em 1982) e 16,9% (1986), sendo que a taxa mais alta foi registada em 1984 (30,3%).
“A crise económica, a desestabilização social, a perestroika e os respectivos efeitos sobre as relações externas e de cooperação, a situação política regional (Zimbabwe até finais de 1979 com o Acordo de Lancaster House em Londres e os conflitos políticos e económicos com a África do Sul até 1994 – data do fim do apartheid) e as pressões internacionais, ‘forçaram’ Moçambique a optar por reformas económicas profundas”, descrevem.
Entretanto, o livro defende que “o processo de privatização beneficiou as elites da Frelimo, sem capital, formação técnica e de gestão, cultura produtiva e sem ética empresarial”, através da compra de empresas, resultante das privatizações a preços simbólicos e com acesso facilitado ao crédito; estabelecimento de aliança entre empresários moçambicanos e estrangeiros para a gestão das empresas; e aquisição a preços simbólicos do património do Estado durante as nacionalizações e posterior venda ou aluguer do património (habitação, armazéns das fábricas, etc.).
“Como resultado deste processo politizado, grande parte das empresas foram ficando em ruínas, dando início de um prolongado e amplo processo de desindustrialização da economia”, diz, dando o exemplo da privatização do então Banco Popular de Desenvolvimento (BPD), em 1997.
“A Conta Geral do Estado de 2019 mostra que isso foi um fracasso: em 17 anos, de 2002 a 2019, o Governo conseguiu cobrar 954,99 milhões de Meticais. Assim, o saque aos bancos Austral e ex-BCM, juntamente com o caso das dívidas ocultas (em 2013), perfazem os três maiores rombos financeiros e escândalos de corrupção conhecidos na história de Moçambique”.
Desde finais do seculo XX vigora uma economia extractivista e dependente
Segundo os autores, após o fim da guerra civil, cujo acordo de paz foi celebrado a 04 de Outubro, em Roma (Itália) entre o Governo da Frelimo e a Renamo, houve uma considerável recuperação do crescimento económico comparativamente à década anterior; uma redução da elevada e irregular inflação verificada durante a década de 80; redução drástica da inflação durante a década de 90, como resultado da política monetária adoptada; a persistência do défice público, embora com redução do seu peso no PIB; e a continuação de um elevado défice da balança comercial e muito baixa da taxa de cobertura as importações.
Dados constantes do estudo indicam, por exemplo, que o crescimento económico saiu de -0,2%, em 1990, para 12,6%, em 1998; enquanto a inflação desceu de 139,7%, em 1987, para 3,1%, em 1999.
No entanto, em finais do século XX, defendem, entrou em vigor “um modelo extractivista e dependente”, que reproduziu o subdesenvolvimento. “A secundarização da agricultura, a desindustrialização e a emergência da exploração de recursos naturais foram as principais transformações estruturais que aconteceram no período em análise”, rematam.
“O crescimento após a guerra civil, particularmente depois do início do presente século, foi afunilado, sectorial e espacialmente, e foi gerador de mais pobreza e maiores desigualdades sociais e territoriais. Apesar de o indicador do IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] ter melhorado, a posição do país não sai dos dez piores classificados no ranking internacional”, sublinham, acrescentando que o número de pobres tem aumentado.
O livro enfatiza que a narrativa oficial, ao longo dos anos, recorre às crises económicas externas, os conflitos armados, a “mão externa” e os choques climáticos para justificar a crise económica, social e de instabilidade social e militar, porém, os economistas entendem que as opções dos modelos económicos, das políticas públicas, a ineficácia das instituições, a corrupção e a partidarização do Estado de grande parte dos sectores da economia são parte do problema.
“Moçambique tem tido políticas públicas não concordantes com as narrativas políticas e desajustadas das realidades internas e dos contextos externos”, afirmam os investigadores, assegurando ainda que o país “possui um Estado com poucos recursos e uma administração pública ineficaz, ineficiente e frágil”.
“Possui pouca capacidade para assegurar serviços universais básicos, (…) a partidarização do Estado, a concentração e centralização dos poderes de decisão, a falta de transparência em muitos actos administrativos e decisórios e a corrupção aprofundam a ineficácia e ineficiência”, acrescentam.
Refira-se que a obra centra a análise no Produto Interno Bruto (PIB) e estrutura económica; população e emprego; pobreza; relações económicas externas e dependência externa; conflitos; e ambiente.