Estive em Luanda numa empreitada anti-corrupção dasociedade civil local, a convite da AJPD, organização dirigida energicamente pela Lúcia de Silveira, uma guerreira dos direitos humanos e do acesso à justiça, que está a agarrar no atual “momentum” de vontade política do Presidente João Lourenço contra a corrupção.
Eis o que percebi:
- João Lourenço tem sido amplamente acarinhado por sua investida contra a corrupção mas ainda não conseguiu construir uma confiança sólida na sociedade. A sociedade duvida. Ele era parte da elite de José Eduardo dos Santos (Zedu). Para além da prisão de Zenu (filho de Zedu, que dirigia o Fundo Soberano e criou o Banco Kwanza com dinheiros do Estado) e de um alto quadro do regime anterior, nada mais de significativo aconteceu. O ultimato relativo ao repatriamento dos dinheiros roubados ao Estado ainda não passou disso: de mero ultimato. Ninguém ainda cumpriu.
- Duvida-se da capacidade do Governo em fazer vingar esse ultimato. O Governo poderá conseguir confiscar bens domiciliados em Angola mas poucos crêem que o repatriamento aconteça a breve trecho sem que haja processos judiciais que levem ao decreto vigoroso daquela sanção e uma negociação com os bancos dos países onde boa parte dos dinheiros está guardado.
- Existe a percepção segundo a qual João Lourenço está apenas empenhado numa operação cosmética visando reverter a imagem angolana de pária no plano externo, para recolocar o sector financeiro de Angola na normalidade. Essa percepção se baseia no facto de que anúncios decisivos de JL na atual cartada anti-corrupção são tomados quando ele está no exterior (como foi a prisão de Zenu).
- Essa operação cosmética visaria também o plano interno, recuperando a desgastada imagem do MPLA, mas muitos duvidam que um mero golpe de teatro sirva para apaziguar as dores da pobreza e da miséria estampada em cada lamento de angolano marginalizado. De modo que a “operação resgate”, um misto de purga no funcionalismo público para afastar os “fantasmas” e a retirada do comércio informal das ruas barulhentas de Luanda, é vista com desconfiança, sobretudo porque os cidadãos esperam que lhes sejam dadas alternativas.
- Entre franjas consideráveis da intelectualidade angolana há o entendimento de que João Lourenço tem um grande desafio para alavancar seu discurso anti-corrupção: desencadear uma revisão da Constituição, para reduzir substancialmente os poderes do PR, lavrando terreno para um novo quadro de cheks and balances. O atuais poderes do PR bloqueiam a acção do judiciário; o mandato do PGR não é protegido contra interferência do Executivo. Uma clara separação de poderes que limite as interferências de um sobre o outro é fundamental. Resquícios de uma classe política fortemente embrenhada numa gestão “neo-patrimonial” do Estado (J-F Médard) estão presentes. João Lourenço terá de afastar a continuada perceção de um poder do Estado personalizado em quase todos os níveis de autoridade, com estruturas informais de partilha de renda, através do clientelismo e da patronagem. O primeiro passo para que isso aconteça é uma ampla revisão da Constituição. Ainda não se percebe claramente se Lourenço está interessado nisso.
- Só essa revisão levará a uma efetiva mobilização dos céticos, gerando uma verdadeira ação coletiva necessária para a introdução de um coquetail de reformas anti-corrupção com impacto em diversos níveis da administração pública e na interface desta com a sociedade no geral e o sector privado. Sem isso, a atual onda vai esmorecendo.
- Aliás, João Lourenço deverá perceber que uma reforma anti-corrupção envolverá um amplo redesenho institucional, para dotar Angola de um quadro legal e organizacional compreensivo para empreender a reação penal contra a corrupção.
- Organizações da sociedade civil angolana estão a despertar para esse desiderato, começando a estudar como intervir efetivamente na reforma. Mas falta ainda libertar consciências ainda não habituadas ao pluralismo de ideias e ao envolvimento ativo da sociedade civil na advocacia e monitoria dos assuntos da governação.
- José Eduardo dos Santos é um homem ferido no seu orgulho mas impotente perante o desabar do mundo sobre o teto desvairado de sua ambição desmedida. Abandonado pela mulher, Ana Paula, e com um filho preso, Zedu confina-se no seu palácio do Miramar, lambendo as feridas de um percurso ditatorial terminado ingloriamente.