O dia 05 de Março parecia ser um dia normal para Alcina Nhaume, uma jovem de 28 anos que foi vítima de uma bala disparada pela Unidade de Intervenção Rápida (UIR), dentro do seu atelier, em Michafutene, distrito de Marracuene, província de Maputo, acto que desfigurou o seu rosto.
Naquele fatídico dia, Alcina conta que chegou ao atelier às 8h00 e, por volta das 10h00, ouviu algumas pessoas que passavam pelo mercado (informal instalado junto à Estrada Nacional Nº 1), onde também se localiza o seu posto de trabalho a comentarem que havia um carro do Conselho Municipal da Cidade de Maputo com corpos. Ouviu que as pessoas pararam o carro para tentar perceber o que se passava, mas ela continuou a trabalhar normalmente.
Por se tratar de uma pessoa muito medrosa, decidiu não se aproximar do local onde havia aquele tumulto devido aos corpos. Como relata, até àquele momento, não havia presença policial. Por volta das 13h00, a Polícia de Protecção apareceu no local para dispersar as pessoas e controlar o carro que transportava os corpos. Sem sucesso, foi mobilizado um contingente da UIR, que chegou ao local pelas 15h00, tendo iniciado uma corria desenfreada dos manifestantes de um lado para o outro, e acto contínuo, o comércio foi encerrado.
Ao ver todos a fechar os seus estabelecimentos, Alcina também decidiu fechar as portas e ordenou os seus trabalhadores a saírem do atelier. Como não tinha almoçado, aproveitou para ir a casa almoçar com o seu pai, que mora perto do mercado.
“Sentei-me à mesa para almoçar com o meu pai e trocamos algumas palavras. Ao terminarmos, ele foi o primeiro a sair da mesa e foi daí que aproveitei para voltar ao atelier e continuar o meu trabalho, uma vez que estava a costurar um vestido de noiva e não queria atrasar a entrega. Saí sem me despedir, de forma que o meu pai não se apercebeu”, relatou.
Alcina Nhaume conta que, ao chegou ao atelier, abriu a porta e certificou-se de que estava tudo trancado. “Comecei a trabalhar, tranquila, durante cerca de 30 minutos, segura de que lá fora tudo tinha acalmado, pois não ouvia manifestações. De repente, comecei a sentir tonturas, e vi sangue a escorrer intensamente pelo chão. O atelier ficou coberto de sangue. Fui ao espelho e vi a minha mandíbula completamente destruída. Perguntei-me: “Meu Deus, o que é isto”?
Como tinha alguma noção de primeiros socorros, pegou num tecido para estancar o sangramento, e depois o telemóvel para ligar para a cunhada que trabalha num hospital. Foi daí que saiu à rua em busca de ajuda.
Naquele instante, Alcina passou por muitas pessoas, mas, devido à agitação, ninguém se apercebeu de que ela estava ferida, pois tentou esconder o seu rosto com o pano para estancar o sangue.
“Com a força de Deus, caminhei até casa para pedir ajuda ao meu pai. Assim que ele me viu, ficou em choque. Entreguei-lhe o telemóvel e pedi que ligasse para a minha cunhada para nos orientar sobre o que fazer”.
Ainda assustado, o pai, em vez de telefonar, foi procurar ajuda junto da Polícia, que não correspondeu ao pedido. “Vendo a demora, decidi sair novamente e caminhar até uma clínica próxima de casa”, contou com voz trêmula e suave.
Já na rua, ela relata que algumas pessoas começaram a perceber o que se passava, pois, o tecido que tapava o seu rosto já estava completamente encharcado em sangue. Alguns queriam carregá-la, mas pediu apenas que informassem ao seu pai que tinha ido para a clínica.
Na clínica, recebeu os primeiros socorros e foi transferida imediatamente para o Hospital Central de Maputo (HCM). “No mesmo instante, o meu pai chegou com um carro e levou-me até lá. Chegado ao HCM, lembro-me de ter saído do carro, enquanto o meu pai carregava o soro. Lembro-me ainda de ter ouvido o médico perguntar-me se podia tirar ou cortar a minha roupa para prestar o devido atendimento”, disse.
Até hoje, sem perceber o que aconteceu naquele fatídico dia 05 de Março, Alcina agradece a Deus por tudo. “Levei um tiro que me desfigurou o rosto e me levou a ficar cerca de um mês sem conseguir comer e nem falar, até hoje não percebi de onde veio a bala, pois tudo estava fechado. Mesmo assim, consegui caminhar até à casa, dirigir-me à clínica e chegar lúcida ao HCM, sem nunca perder a consciência e hoje eu digo que sou uma mulher forte”.
Alcina relata ainda que não ouviu qualquer disparo e muito menos que havia tiroteio. Apenas se viu no chão, com o rosto desfigurado. “Se eu tivesse notado qualquer movimento estranho quando saí de casa, jamais teria arriscado a minha vida, principalmente porque o meu atelier fica junto à estrada. Mas parecia tudo normal”.
Hoje, Alcina lamenta o facto de ninguém ter assumido responsabilidade pelo que lhe aconteceu e continua a acontecer a outras pessoas. “Não se justifica o que está a acontecer neste país e o silêncio das autoridades. Não é humano. Eu cheguei a pedir a Deus que, se fosse possível, tirasse todas as armas que estão a fazer tanto mal a pessoas inocentes. O que custa usarem balas de borracha ou gás lacrimogéneo para dispersar a população? Hoje, não consigo comer sólidos; vivo apenas de líquidos, pois não consigo mastigar. Mas eu sei que tudo vai ficar bem. A Polícia em Moçambique está a disparar para matar. Infelizmente, sou um exemplo disso”, comentou.
Alcina recebeu ajuda para cirurgia de reconstrução facial na Espanha e, no próximo mês de Maio, ela e a sua irmã vão viajar para aquele país europeu para iniciar um tratamento médico especializado, graças à solidariedade de pessoas que se comoveram com o caso. O retorno a Maputo está previsto para o mês de Agosto. Na Espanha será assistida por uma equipa médica composta por um cirurgião de renome, com enorme experiência em reconstrução facial, para devolver a dignidade da jovem.
“Tenho fé de que tudo vai ficar bem. Vou voltar diferente e Deus está sempre comigo. Sei que, neste momento, os trâmites legais estão a ser concluídos para que possamos partir nos próximos dias, logo que eu tiver alta aqui no HCM”, disse Alcina Nhaume.
Importa destacar que, naquele dia, 05 de Março, enquanto a população tentava impedir o carro do Conselho Municipal de avançar com os corpos, em Michafutene, na cidade de Maputo, a UIR abria fogo contra a caravana de Venâncio Mondlane, no bairro de Hulene, na cidade de Maputo, onde duas crianças perderam a vida e mais de 15 pessoas ficaram gravemente feridas, e, em simultâneo, o presidente da República, Daniel Chapo e outros dirigentes partidários assinavam um acordo sobre os termos de referência para o diálogo nacional e a reconciliação.
Importa lembrar que o caso de Alcina Nhaume não é o primeiro a evidenciar a brutalidade policial contra a população indefesa, especialmente contra mulheres. Outro episódio que também chocou o mundo (mas, sem qualquer responsabilização) ocorreu em Novembro do ano passado, quando um carro militar (BTR) das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) atropelou propositadamente Maria Madalena Matusse, de 29 anos, em plena luz do dia, no cruzamento entre as Avenidas Eduardo Mondlane e Guerra Popular, sob o olhar impotente da população. Até hoje, ela continua em busca de recuperação.
Refira-se que mais de 350 pessoas morreram entre Outubro e Março último, em consequência das manifestações pós-eleitorais. Grande parte das vítimas foi assassinada pela Polícia.