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6 de Setembro, 2019

“É difícil falar de reconciliação quando ainda estão vivas feridas causadas durante muitos anos de discórdia”, Papa Francisco na sua homília no ENZ

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Visitou Moçambique sob lema “Esperança, Paz e Reconciliação” e, por ser considerado mensageiro da paz e reconciliação, foi recebido no Pavilhão do Maxaquene, no encontro inter-religioso que manteve com os jovens, com a palavra “reconciliação”, mas nesta sexta-feira, durante a sua homilia, na santa missa que dirigiu no Estádio Nacional do Zimpeto, capital moçambicana, o Papa Francisco defendeu ser difícil falar deste tema, quando ainda estão vivas as feridas causadas durante muitos anos de discórdia.

 

 

Na sua homilia, proferida durante 14 minutos e perante mais de 50 mil fiéis de diferentes congregações religiosas, transmitida em directo pela televisão (TVM e STV) e pela rádio pública, o Sumo Pontífice afirmou ser triste que irmãos se explorem, assim como se deixem corromper, considerando ainda ser “muito perigoso aceitar que a corrupção seja o preço que tem de ser pago pela ajuda externa, que não seja assim entre vocês”.

 

Na sua mensagem de despedida ao povo moçambicano, depois de três dias de visita, o Santo Padre disse que se Jesus for o árbitro entre as decisões complexas do nosso país, “então Moçambique tem garantido um futuro de esperança”.

 

Acompanhe, nos próximos parágrafos, a transcrição integral da homilia do Papa Francisco, proferida na manhã de hoje, no Estádio Nacional do Zimpeto.

 

Amados irmãos e irmãs!

 

Ouvimos no Evangelho de Lucas uma passagem do Sermão da Planície. Depois de escolher os seus discípulos e ter proclamado as Bem-aventuranças, Jesus acrescenta: “Digo-vos a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos”. Uma palavra dirigida hoje também a nós, que a escutamos neste Estádio.

 

Di-lo com clareza, simplicidade e firmeza trançado uma senda, um caminho estreito que requer algumas virtudes. Porque Jesus não é um idealista que ignora a realidade, está a falar de um inimigo concreto, real, que descreverá o momento anterior, aquele que nos odeia, insulta e rejeita como a infâmia.

 

Muitos de vós podem ainda contar, em primeira pessoa, histórias de violência, ódio e discórdia, alguns da sua própria carne, outros de conhecidos que já não existem e outros ainda pelo temor de que feridas do passado se repitam e tentam apagar o caminho da paz já percorrido, como em Cabo Delgado.

 

Jesus não nos convida a um amor abstrato, etéreo ou teórico, redigido em escrivaninhas para discursos. O caminho que nos propõe é o que ele percorreu primeiro, aquele que o fez amar aqueles que o traíram, julgaram injustamente e aqueles que o mataram. Portanto, é difícil falar de reconciliação quando ainda estão vivas feridas causadas durante muitos anos de discórdia ou convidar a dar um passo de perdão que não se dignifique em meio ao sofrimento e impedir que se cancele a memória ou os ideais.

 

Mesmo assim, Jesus convida a amar e a fazer o bem e isto é muito mais do que ignorar a pessoa que nos prejudicou ou esforçar-se porque não se cruzam as nossas vidas.

 

É um mandato que visa uma benevolência activa, desinteressada e extraordinária para com aqueles que nos feriram, mas Jesus não fica por ai, ele pede-nos também que abençoemos e rezemos, isto é, pelo nosso falar seja um bendizer, gerador de vidas e não de morte, que pronunciemos seus nomes não para insulto ou vingança, mas para inaugurar um novo vínculo que leve à paz, alta e a medida que o mestre nos propõe.

 

Com tal convite, Jesus – longe de ser um masoquista – quer encerar para sempre a prática tão usual, ontem como hoje, de ser cristão e viver sobre a lei de talião, não se pode pensar o futuro e construir uma nação, uma sociedade sustentada na equidade da violência.

 

Não posso seguir Jesus se a ordem que promovo e vivo é olho por olho e dente por dente. Nenhuma família e nenhum grupo de vizinhos ou uma etnia e menos ainda um país tem futuro, se o motor que os une, congrega e cobre as diferenças é a vingança e o ódio.

 

Não podemos pôr-nos de acordo e unir-nos para nos vingarmos, para fazermos àquele que foi violento, o mesmo que ele nos fez, para planearmos ocasiões de retaliação sob formatos aparentemente legais. As armas e a reprensão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos. A equidade da violência é sempre uma espiral sem saída e o seu custo é muito alto.

 

Há outro caminho possível, porque é crucial não esquecer que os nossos povos têm direito à paz. Vós tendes direito à paz. Para tornar o seu convite mais concreto e aplicável no dia-a-dia, Jesus propõe uma primeira regra de ouro ao alcance de todos: “como quereis que os outros vos façam, fazei-lho vós também”, ajuda-nos a descobrir o que é mais importante nesta reciprocidade de trato: amar-nos, ajudar-nos e emprestar sem esperar nada em troca. E Paulo traduz-nos como revestir-nos de sentimentos de misericórdia e de bondade.

 

O mundo desconhecia, e continua sem conhecer, a virtude da misericórdia, da compaixão, matando e abandonando os deficientes e idosos, eliminando os feridos e enfermos ou divertindo-se com o sofrimento dos animais. Também não praticava a bondade e amabilidade, que nos move a considerar o bem do próximo tão querido como o próprio.

 

Superar os tempos da divisão e violência supõe não só um acto de reconciliação ou a paz entendida como ausência de conflito, supõe o compromisso diário de cada um de nós ter um olhar atento e activo que nos leva a tratar os outros com aquela misericórdia e bondade com que queremos ser tratados, sobretudo, aqueles que, pela sua condição, rapidamente acabam rejeitados e destruídos.

 

Trata-se de uma atitude, não de débeis, mas dos fortes, uma atitude de homens e mulheres que descobrem que não é necessário maltratar, denigrir ou esmagar para se sentirem importantes, antes pelo contrário… e esta atitude é a forca profética que o próprio Jesus Cristo nos ensinou ao querer identificar-se com ele e mostrar-nos que o serviço é o caminho.

 

Moçambique possui um território cheio de recursos naturais e culturais, mas paradoxalmente com uma quantidade enorme da sua população abaixo do nível de pobreza. E, por vezes, parece que aqueles que se aproximam com o suposto desejo de ajudar tem outros interesses. E é triste quando isso se verifica entre irmãos da mesma terra, que se deixam corromper e é muito perigoso aceitar que a corrupção seja o preço que tem de ser pago pela ajuda externa. Não seja assim entre vocês.

 

Com as suas palavras, Jesus impele-nos a ser protagonistas de outro trato: o do seu Reino. Aqui e agora, devem haver sementes de alegria e esperança, paz e reconciliação.

 

O que o espírito vem a impelir, não é o activismo transbordante, mas antes de tudo, uma atenção prestada a outros, reconhecendo-o e valorizando-o como irmão até sentir a sua vida e sua dor como a nossa vida e a nossa dor. Este é o melhor termómetro para descobrir as ideologias de todo e qualquer tipo que tentam manipular os pobres e as situações de injustiça aos serviços dos interesses políticos ou pessoais. Só assim poderemos ser, no lugar onde nos encontrarmos, sementes e instrumentos de paz e reconciliação.

 

Queremos que reine a paz e esperança nos nossos corações e no palpitar do nosso povo. Queremos um futuro de paz. Queremos que reine nos nossos corações a paz de Cristo, como justamente dizia a carta de São Paulo. Ele usa um verbo que vem do mundo do desporto e faz referência ao árbitro que decide as coisas discutíveis. E disse “que a paz de Cristo seja o árbitro em vossos corações”. Se a paz é árbitro nos nossos corações, então quando os sentimentos estão em conflito e nos acharmos indecisos entre dois sentidos opostos, façamos o jogo de Cristo. A decisão de Cristo manter-nos-á num caminho do amor, na senda da misericórdia, na opção pelos mais pobres, na salvaguarda da natureza, no caminho da paz. Se Jesus for o árbitro entre as emoções em conflito do nosso coração, entre as decisões complexas do nosso país, então Moçambique tem garantido um futuro de esperança. Então, o vosso país cantará a Deus, com gratidão e de todo o coração, salmos, hinos e cânticos inspirados. (Marta Afonso)

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