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5 de May, 2025

JOSÉ LUANDINO VIEIRA, 90 ANOS

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José Luandino Vieira faz hoje, 4 de Maio de 2025, 90 anos. É um dos soberbos escritores africanos. Evoco-o aqui nesta prosa canhestra. Luandino representa um dos prodígios das nossas literaturas. É também um nome indeclinável do nacionalismo angolano. Esteve longos anos preso por causa da sua luta e do seu activismo contra o colonialismo e as brutais injustiças sociais em Angola. Foi um dos presos no Campo de Concentração do Tarrafal.

Da sua vasta bibliografia, destaco os seguintes livros de contos: “A Cidade e a Infância” (1957), “Luuanda” (1963), “Velhas histórias” (1974), “Duas histórias” (1974), “No antigamente, na vida”(1974), “Macandumba” (1978), “Laurentino, Dona Antónia de Sousa Neto & eu” (1981), “História da baciazinha de Quitaba” (1986). Dos seus romances: “Nosso Musseque” ou “Nós, os do Makulusu” (1974). É autor das novelas: “A vida verdadeira de Domingos Xavier” (1961) e “João Vêncio: Os seus amores” (1979). Publicaria ainda “O livro dos rios” e “O Livro dos guerrilheiros”, da trilogia “De rios velhos e guerrilheiros” (2006). É autor do livro “Papéis de Prisão” (2015).

Luandino é um escritor notável. É sobretudo um escritor que inventa uma nova escrita, na qual se reinventa a língua portuguesa. Ele remaneja a língua, ele reinventa a língua. É um mestre da língua. Hoje há muitos epígonos. Ao tempo em que ele escreveu as suas obras, tudo o que fez foi inédito, surpreendente, invulgar. Tudo isto aliado a uma violenta crítica às injustiças sociais em Angola, sobretudo lá na “fronteira do asfalto” – belíssima e dura metáfora de Luandino sobre os musseques, que entraram no nosso imaginário através da sua escrita, do universo que ele descreveu, com as suas personagens memoráveis.

Há uma nova dicção com Luandino, uma nova sintaxe, uma nova construção, um novo edifício, uma nova gramática, um novo idioma. Uma nova intelecção. Uma nova enunciação. Um novo estilo. Há uma outra locução. Outra língua. Outra figuração. Outro arquétipo. Outra tradução da realidade.

Ocorre-me, ao celebrar os seus 90 anos, homenageá-lo, relembrar três episódios que me ligam a Luandino:

1.
Quando a Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE) atribuiu o Grande Prémio de Novela ao livro “Luuanda” em 1965, Luandino estava preso no Tarrafal, cumprindo uma longa penitência, por suas actividades consideradas subversivas. Alguns membros do júri foram presos: Alexandre Pinheiro Torres, Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira. O “Jornal de Fundão” noticiou e deu destaque ao prémio, sem referir que o escritor era considerado um criminoso pelo regime. O jornal seria encerrado por seis meses e multado. A SPE foi assaltada e encerrada.

Em 1995, eu estava na redacção do jornal “Público” e propus ao meu editor, o saudoso Torcato Sepúlveda, um homem culto e conhecedor destas lutas – foi companheiro em Coimbra de Jorge Fonseca, poeta e antigo presidente de Cabo Verde – e ele acolheu, com entusiasmo, a ideia de contar aquela história.

“Prémio e Castigo”, designei assim aquela prosa, em alusão ao romance de Dostoievski. Consegui, antes, o telefone do escritor, que residia então em Luanda, e entrevistei-o. Luandino, embora vivesse afastado da ribalta, aceitou falar comigo. Não me surpreendeu a sua simplicidade, a sua afabilidade e a sua humildade. O José Craveirinha falara-me, muitos anos antes, de Luandino, justamente naqueles termos. O Rui Nogar corroborara. Isto nos longínquos anos 80. E foi esse ser extraordinário que encontrei naquele contacto telefónico. Tivemos uma bela conversa. Como se tratasse de velhos amigos. Fez de mim seu par, uma láurea imerecida.

Retenho dessa entrevista a forma desassombrada como falou dos doze anos em que permaneceu no Tarrafal. A empatia de Luandino lembrou-me o exemplo de Mandela. Não guardava nenhum ressentimento e falava até com compreensão daqueles tempos e das personagens da prisão. Ali estava o escritor na sua grandeza incomensurável. Ali também estava o homem, um homem gigante. Guardei-o, assim, ciosamente na memória.

2.

Três anos depois dessa entrevista, em 1998, houve um encontro de escritores, na Cidade da Praia, em Cabo Verde. Estavam alguns amigos na Praia: o Alçada Baptista, escritor de grande coração, a quem devo muito, sobretudo acolhimento e apoio nos meus tempos impenitentes de Lisboa. Estavam ainda: Nélida Piñon (Brasil), Luís Cardoso (Timor Leste), Ana Paula Tavares, José Eduardo Agualusa, Manuel Rui (Angola), Albertino Bragança (São Tomé e Príncipe). O Germano Almeida encontrava-se em casa e era nosso anfitrião.

A Ana Paula Tavares tinha um recado para a Tia Beba e combinou com parte do grupo ir visitá-la quando nos deslocássemos ao Tarrafal. Foi uma jornada emocionante: estivemos na prisão de Luandino e de outros escritores, ouvimos depoimentos dilacerantes sobre aqueles tempos duríssimos. Sob aquele sol oblíquo sobre as nossas cabeças, ali, perguntava-me como é que Luandino me falara sem animosidade sobre os tempos que ali passara. É em momentos como estes que se percebe que há homens invulgares, incomuns, singulares, excepcionais. Luandino é um desses poucos.

Pedro Martins (1951-2022) acabara de publicar o seu duro e lacerante “Testemunho de um Combatente”. Ana Cordeiro oferecera-me um exemplar da edição do Centro Cultural Português na Praia. É um livro brutal. Muitos anos depois Mário Lúcio de Sousa haveria de publicar “O Diabo foi meu Padeiro”. De permeio, poemas, contos, romances, de autores angolanos, portugueses, cabo-verdianos, entre outros.

Procurámos, de seguida, a Tia Beba, que a era a mãe daqueles presos, oriundos de outros países, sem família ali, sem rede nenhuma. A Tia Beba surgiu, naquela sua acanhada estatura, distintíssima, com um sorriso no rosto e tratou-nos a todos como se fôssemos o Luandino ou seus velhos companheiros de prisão. A Ana Paula Tavares deixou-lhe a carta do Luandino e o recado. Tia Beba falou-nos sobre aqueles jovens que acolhia como filhos e tivemos uma tarde inolvidável na sua companhia. O Manuel Rui escreveu de improviso um poema: “Tia Beba, o teu nome é liberdade”. Ela ficou reconhecida. Tia Beba faleceria, aos 109 anos, em 2019.

Saí dali, do Tarrafal, daquela prisão, daquela casa humilde e acolhedora da Tia Beba, daquele lugar exuberante chamado Tarrafal, com um mar soberbo do qual mal prestei atenção, em tumulto, com a sensação de ter vivido um dia único na minha vida. O Luandino não estava, mas esteve comigo, esteve com todos nós, a toda a hora, naquela viagem.

3.

Quase dez anos depois da entrevista que lhe fizera, a recordar os 30 anos do prémio e do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, estava eu em Viana do Castelo, num desses rituais literários, discreteando sobre a literatura moçambicana com a Ana Mafalda Leite. Luandino vivia já em Portugal, abrigado em Vila Nova de Cerveira, no Minho. Não aparecia em público e raramente dava entrevistas. Cultivava a discrição. Recusaria, no ano seguinte, o Prémio Camões.

No meio da charla, eis que o vejo, com a sua mítica boina basca, a barba aparadíssima, vestido elegantemente de preto, sorridente, emergindo na sala. Um belo e hierático homem, cabelo e barba toda grisalha. E um sorriso largo. Suspendemos a conversa e ele veio dar-me um abraço. Fiquei comovido. Afinal, fora ali para me abraçar e deixar uma palavra amiga. Foi o nosso primeiro e único encontro. Ele sabia que eu andava por Viana. Quando terminámos a conversa, ele e o escultor José Rodrigues (1936-2016), que o acolhia e o acompanhava, haviam desaparecido na bruma noite. Guardei esse abraço e esse gesto com uma das mais belas e inolvidáveis memórias literárias.

Termino esta breve recordação do Mestre Luandino, ouvindo Ruy Mingas (desaparecido há um ano) cantando “Monangambé”, poema de António Jacinto, e deixo-me emocionar. José Luandino Vieira é, para mim, o maior escritor africano de língua portuguesa vivo. Gosto de ser peremptório e tenho que sê-lo hoje, ao evocá-lo nos seus belos 90 anos. Foi premiado ao longo da sua brilhante carreira. Falta-lhe o Nobel. Não tenho dúvidas de que ele o merece mais do que qualquer outro autor dos nossos países.

Queria, ainda, que esta brevíssima lembrança, ao correr da pena, sobre um dos mais inventivos escritores do nosso tempo, este nosso e todos os outros, fosse apenas um abraço, como aquele abraço comovente e inesperado que José Luandino Vieira houve por bem ir dar-me numa remotíssima e perdurável noite literária.

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