O Nascimento da tragédia
Nos salões semi-iluminados do novo puritanismo econômico, onde o patriotismo se vende em frascos de spray e a ignorância veste terno, ergue-se a figura de Peter Navarro — parte economista, parte inquisidor da nova ordem mundial, parte entusiasta de tarifas como se fossem relíquias sagradas de uma cruzada comercial. Ele é o Savonarola de Wall Street, queimando tratados internacionais em praça pública como se fossem grimórios satânicos.
Navarro não vê o mundo em termos de oferta e procura. Ele vê um grande tabuleiro de Risk, onde cada container que atravessa o Pacífico carrega não mercadoria, mas feitiçaria chinesa disfarçada de escova elétrica. Para ele, os acordos multilaterais são os sabás da bruxaria globalista, e sua missão é uma só: salvar a América das garras do comércio como quem salva um adolescente das gomas de THC.
Sob a bênção do oráculo laranja — Trump, agora em seu terceiro mês de reinado reciclado — Navarro reina como o sumo sacerdote da Teologia Tarifária, que prega que o único pecado original foi permitir que o mundo se tornasse interdependente.
O embate dos titãs: Navarro x Musk
No altar das ironias históricas, o mais recente duelo de egos envolve Navarro e o barão do espaço, Elon Musk. De um lado, o homem que acredita que a China está por trás de todo mal moderno; do outro, um sujeito que quer colonizar Marte com mão de obra terceirizada. Musk, com a fineza de um magnata ressentido, chamou Navarro de “um neandertal com diploma”. Navarro retrucou chamando Musk de “marionete transnacional” — o que, na língua dele, é basicamente o mesmo que acusá-lo de bruxaria.
A troca de farpas foi digna de uma Caça às Bruxas de Salem, edição 5G, com direito a acusações de traição, feitiçaria tecnológica e contaminação espiritual por meio de carros elétricos.
Tarifas como penitência nacional
Para Navarro, cada tarifa é uma indulgência comprada com dor. Se um americano pagar 30% a mais por um tênis feito no Vietnã, isso é uma bênção. Se um trabalhador da Califórnia perder o emprego porque sua empresa não pode mais importar alumínio barato, isso é martírio. Estamos todos em um grande retiro espiritual rumo à autossuficiência, passando fome de iPads e abstinência de gadgets como quem atravessa a Lei Seca de uma nova era.
A lógica é simples: a cura está no sofrimento. O mesmo sofrimento que levou os EUA, no passado, a banir o álcool e a celebrar Al Capone como um herói involuntário. Agora, os contrabandistas não trazem rum das Caraíbas, mas chips taiwaneses escondidos em caixas de cereais.
O dragão vermelho contra-ataca
Mas enquanto Navarro brinca de Torquemada tarifário, do outro lado do Pacífico, a China observa em silêncio — ou quase. Seria o retorno de Trump e Navarro o ajuste de contas final da Guerra do Ópio? Talvez. O império do meio, que já foi humilhado por barris de heroína britânica, agora devolve a gentileza exportando fentanyl em doses homeopáticas de vingança? O Novo Século Americano termina afogado em comprimidos e paranoia. Muitos zombies pelas ruas do American way of living… o estágio final da financeirização da dignidade humana.
Enquanto isso, Navarro continua a apontar o dedo em riste, como um padre colonial gritando “Feiticeira!” em direção a qualquer coisa que venha com ideogramas. Na sua cabeça, a China está envenenando a juventude americana com apps de dança e cápsulas de sofrimento. O que ele esquece de mencionar é que boa parte dos laboratórios estão no porão da própria América — e os únicos operários visíveis são fantasmas do sistema de saúde falido.
Das garrafas escondidas aos smartphones contrabandeados
A América já passou por isso antes. Uma vez, decidiu que o álcool era o grande inimigo da moral e da família. E assim nasceu a Lei Seca — um experimento social em que o Estado proibiu o whisky e, como resposta, a sociedade inventou o jazz, os gângsteres, os túneis subterrâneos e o coquetel Manhattan.
Hoje, vivemos a Lei Seca 2.0, versão tarifária, onde o pecado original não é mais o bourbon, mas o microchip chinês.
Na teologia navarrista, cada iPhone fabricado em Shenzhen carrega o vírus do comunismo, e cada camiseta barata da Uniqlo é um ataque direto à Declaração da Independência. Assim como o álcool transformou padres em contrabandistas e donas de casa em destiladoras de garagem, as novas tarifas estão transformando adolescentes em mulas de gadgets, e empresários do Kansas em traficantes de peças automotivas coreanas.
Proibir o comércio com a China é como proibir o álcool num bar irlandês — cria-se um mercado negro tão eficiente que até Adam Smith ressuscita só para bater palmas. E, no fim, enquanto Navarro sonha com fábricas renascendo como fênix em Detroit, o que renasce mesmo são as versões paralelas do capitalismo subterrâneo, agora regidas por VPNs e faturas falsas.
Se Al Capone vendia gin, em breve veremos versões do Capone moderno vendendo AirPods debaixo do balcão. Não se espante se surgir o Cartel de Cupertino — e, claro, Musk já estará vendendo liberdade aduaneira no blockchain por 0,3 Dogecoin.
O que foi o speakeasy, será agora o click-easy. Em vez de “posso te servir um copo?”, perguntaremos: “quer um Xiaomi escondido no forro do casaco?”
A história repete-se. Primeiro como tragédia, depois como farsa, e por fim… como nota fiscal fraudada.
Trump, o maestro do caos
Com Trump de volta ao trono — ou ao Twitter, agora renomeado “X”, como se fosse um profeta críptico ou um xarope experimental — os americanos vivem como figurantes de um musical sombrio. Três meses de governo e a inflação virou entretenimento, o Congresso é uma sitcom de má qualidade, e a confiança internacional está sendo vendida em leilão junto com os direitos civis.
Navarro, com seus relatórios escritos como se fossem discursos de Nostradamus em PowerPoint, anda dizendo que o futuro será americano ou não será. Mas a pergunta que o mundo começa a sussurrar é outra: será que ainda existe um “futuro americano”? Ou será que estamos assistindo, em tempo real, a sua mutação zumbi?
O que o mundo pode esperar?
Muito pouco. Ou muito caos. Talvez ambos, servidos com gelo e cinismo. Preparem-se para uma nova Guerra Fria — mas agora sem ideologia, sem espiões elegantes e sem jazz. Só resta sarcasmo, memes e uma overdose de nostalgia imperial.
O tabuleiro está posto: de um lado, a fé messiânica na autossuficiência como se fosse o novo evangelho; do outro, um mundo perplexo, assistindo a tudo com a expressão de quem vê um homem nu berrando no supermercado porque o preço do abacate dobrou.
E no centro do palco, Peter Navarro, o exorcista da era global. Empunha tarifas como se fossem crucifixos contra demônios invisíveis, recitando mantras protecionistas como se estivesse invocando os Founding Fathers numa sessão espírita do Partido Republicano. Ele aponta para a China como se fosse a nova Babilônia Digital — esquecendo que o dragão não apenas sobreviveu: ele se alfabetizou em inglês, comprou startups no Vale do Silício e agora assiste de camarote à América implodir — comprimido por comprimido, overdose por overdose.
Sim, a globalização talvez não acabe. Mas certamente está fumando um charuto cubano, sentada num bar clandestino, gargalhando da tentativa.
*Ivanick Lopandza é um jovem intelectual, poeta e activista social santomense, com ADN paternal congolês, membro fundador do colectivo Ilha dos Poetas Vivos em São Tomé no ano de 2022, com seus companheiros santomenses Marty Pereira, Remy Diogo e moçambicano MiltoNeladas (Milton Machel). Autor de livros de poesia, Ivanick é também bloguista, curando seu blogue Lopandzart.