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27 de Março, 2025

O verdadeiro banco dos moçambicanos: a transição dos bancos tradicionais para as carteiras móveis

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Nos últimos anos, Moçambique tem vivido uma transformação profunda no seu sector financeiro. Se, no passado, os bancos tradicionais dominavam o mercado, hoje as carteiras móveis ganharam espaço e tornaram-se o verdadeiro banco dos moçambicanos. A praticidade, a falta de burocracia e a acessibilidade tornaram esses serviços a solução mais viável para milhões de cidadãos, especialmente aqueles historicamente marginalizados pelo sistema bancário formal.

No entanto, essa mudança não veio sem desafios. O aumento do endividamento, a inadimplência e a migração de usuários entre as carteiras móveis para escapar de dívidas revelam as fragilidades na regulamentação do sector e expõem riscos para a sustentabilidade do sistema financeiro.

Os bancos convencionais perdem espaço

A história bancária de Moçambique remonta ao período colonial, quando o Banco Nacional Ultramarino foi fundado em 1864 sob jurisdição portuguesa. Após a independência, o sector bancário começou a diversificar-se, com o surgimento de instituições como o Banco Comercial de Moçambique S.A.R.L (BCM). Em 1995, nasceu o Banco Internacional de Moçambique (BIM), que mais tarde adquiriu a totalidade dos activos do BCM.

A entrada de investidores estrangeiros também marcou essa evolução. Em 1997, o Banco Popular de Desenvolvimento (BPD) foi privatizado, passando a chamar-se Banco Austral, hoje ABSA. No mesmo ano, surgiu o Banco Comercial e de Investimento (BCI), consolidando-se como um dos maiores bancos privados do país, ao lado do Millennium BIM, Standard Bank e ABSA.

Apesar dessa expansão, a inclusão financeira permaneceu um desafio. De acordo com o Relatório de Conjuntura Económica e Perspectivas de Inflação do Banco de Moçambique (Outubro de 2024), apenas 30,9% dos adultos moçambicanos possuíam uma conta bancária formal em 2023. Esse número manteve-se praticamente inalterado desde 2021, reflectindo a estagnação da bancarização.

Além disso, os dados revelam uma significativa desigualdade de acesso entre homens e mulheres: enquanto 41,5% dos homens possuem uma conta bancária, apenas 19,3% das mulheres têm acesso ao serviço. Por outro lado, as carteiras móveis avançaram rapidamente. Segundo o Relatório de Inclusão Financeira de 2022 do Banco de Moçambique, 68,5% da população adulta já utilizava serviços financeiros via carteiras móveis, superando a meta de 60% estabelecida para esse ano.

Com um acesso mais prático e sem as barreiras burocráticas dos bancos tradicionais, as carteiras móveis tornaram-se uma ferramenta indispensável para milhões de moçambicanos. Mas essa nova realidade trouxe consigo um desafio inesperado: o endividamento desenfreado e a fuga dos clientes inadimplentes.

Txuna M-Pesa: crédito fácil, dívidas difíceis

O M-Pesa, da Vodacom, é uma das carteiras móveis mais populares do país e, em 2020, lançou um serviço inovador: o Txuna M-Pesa, um sistema de crédito instantâneo que permite empréstimos sem necessidade de garantias ou fiadores.
Nos últimos quatro anos, mais de 2,5 milhões de clientes recorreram ao serviço para pagar as propinas, cobrir despesas médicas e investir nos pequenos negócios. No entanto, muitos desses usuários viram-se em apuros financeiros quando chegou o momento de pagar as dívidas.

A fuga para o Emola

Duda Chone, de 25 anos, explica como passou de usuária frequente do M-Pesa para cliente exclusiva do E-mola, da Movitel.

“Comecei a usar o Txuna M-Pesa com um pequeno empréstimo de 70 meticais. Como paguei a tempo, meu limite aumentou para 180 meticais, depois 300, 600, 800, até que consegui pedir emprestado 1 200 meticais em 2023. Mas quando percebi que não teria como pagar esse valor, simplesmente parei de usar o M-Pesa. Passei a fazer todas as minhas transacções pelo E-mola, que eu quase não usava antes.”

Duda afirma que não pretende deixar de usar as carteiras móveis, mas reconhece que a facilidade de acesso ao crédito pode ser perigosa.

“O M-Pesa tornou a minha vida muito mais fácil. Eu uso há mais de 10 anos, mas, depois dessa dívida, não tive escolha senão mudar para o E-mola. Sei que foi errado não pagar, mas as cobranças eram constantes e eu não via outra saída”, concluiu.
Outro caso semelhante é o de Felisberto Cebola (nome fictício), agente da polícia que usa o número da Vodacom desde 2013.

“A primeira carteira móvel que usei foi o M-Pesa, era um serviço que sempre me ajudava a enviar valores de forma rápida para várias pessoas e sobretudo para minha mãe que vive em Lichinga e que está sob os meus cuidados. Depois das quantias baixas, o meu limite foi de 1400, então usei o Txuna M-Pesa para um empréstimo de 1 400 meticais, mas, quando chegou a data de pagamento, parei de depositar dinheiro na conta. Eu pedia para amigos e familiares me consultarem antes de me enviar dinheiro para evitar que a dívida fosse descontada automaticamente”, explica.

Após meses ignorando as mensagens da Vodacom, Cebola tomou uma decisão drástica:

“Em Novembro de 2023, abandonei o número da Vodacom e passei a usar apenas a Movitel e a Mcel. Quando tentei recuperar o meu número em Outubro de 2024, já tinha sido vendido para outra pessoa. Foi aí que percebi que nunca mais voltaria a usar a Vodacom”, acrescenta.
O grande receio de Cebola é fazer aquisição de um novo número Vodacom e registar com os seus dados e ter de pagar a dívida, visto que a informação quanto a esse aspecto não está clara.

Para muitos cidadãos, como Anselmo Macuácua, as carteiras móveis tornaram-se mais do que uma simples ferramenta de transacção, elas representam a única alternativa viável diante das dificuldades impostas pelo sistema bancário tradicional. A história de Macuácua reforça o padrão já identificado pelos outros entrevistados: a migração entre as carteiras móveis não apenas como uma questão de conveniência, mas também como uma estratégia para driblar dívidas e evitar restrições financeiras.

Anselmo Macuácua, taxista de aplicativo e pai de três meninas, contou à reportagem da “Carta” que, no passado, aceitava pagamentos através das carteiras móveis E-mola e M-Pesa. No entanto, após enfrentar dificuldades financeiras no último ano, acabou por contrair uma dívida no Txuna M-Pesa ao atingir o limite de 3 000 meticais e se viu obrigado a abandonar o número.

“Em 2024 contraí a dívida, sempre que quisesse receber dinheiro dos negócios que fazia, usava as carteiras móveis do M-Pesa das pessoas que se encontravam próximas a mim. Eram valores acima de 10 000 meticais que recebia e eu levantava de imediato. Mas pelo facto de ser complicado viver sem as carteiras móveis, tive de obter um outro número Vodacom e ter uma conta M-Pesa para que a vida continue facilitada, mas tive receio de registar usando os meus dados por conta das possíveis sanções que poderia sofrer. Assim, o número e a conta M-Pesa que uso estão registados com os dados da minha irmã, e assim uso normalmente e não pretendo contrair nenhuma outra dívida”, explica.

Macuácua conclui afirmando que raramente utiliza as suas contas bancárias, pois encontrou nas carteiras móveis uma alternativa eficiente. Com elas, consegue realizar diversos pagamentos de serviços e compras, tornando-se um verdadeiro banco na palma da mão.

O impacto no sistema financeiro

O economista Egas Daniel acredita que a transição para as carteiras móveis é um fenómeno visível e irreversível que o país vai continuar a experimentar nos próximos anos, na medida em que os telefones se tornaram um instrumento próximo do cidadão.
O economista explica que as carteiras móveis vêm para complementar os bancos tradicionais. “Tendo em conta a burocracia e as dificuldades para ter uma conta bancária e operá-la, os moçambicanos vêem uma oportunidade de ter boa parte dos serviços dos bancos tradicionais de forma simplificada, sendo independente dos ATM’s. Mas alerta para os riscos dessa fuga de dívidas.

“As carteiras móveis tornaram-se uma alternativa natural porque são acessíveis e eliminam a burocracia. No entanto, a inadimplência crescente pode comprometer a sustentabilidade do modelo. O problema não é apenas a dívida individual, mas o efeito cumulativo de milhares de usuários que simplesmente abandonam uma operadora e migram para outra” explica.

Para ele, o Banco de Moçambique precisa intervir, criando mecanismos de controlo e sanção.

“O ideal seria a criação de um sistema de lista negra que impedisse que um cliente inadimplente contraísse novos empréstimos em qualquer carteira móvel. Além disso, as operadoras deveriam cooperar mais entre si para evitar essa migração predatória que acaba beneficiando a carteira móvel de refúgio”.

A proposta de um cadastro centralizado de devedores é vista pelo especialista como uma possível solução para evitar que a inadimplência se torne um problema sistémico.

Estas são as mensagens enviadas pela Vodacom aos devedores com o objectivo de lembrá-los e incentivá-los a cumprir com os seus compromissos financeiros dentro do prazo acordado. Todos os dias, a operadora envia mensagens com conteúdos variados, mas sempre com o mesmo propósito. No entanto, esses lembretes têm desagradado alguns usuários, levando-os a considerar a troca do número.

Empréstimos M-Pesa: funcionamento e consequências do incumprimento

Sérgio Gomes, Director-Geral da Vodafone M-Pesa, em conversa com a reportagem da “Carta”, esclareceu que os valores dos empréstimos disponibilizados pela plataforma variam entre 70 e 3 500 meticais. No entanto, o valor máximo que cada cliente pode solicitar é definido com base na sua pontuação de crédito, considerando o seu perfil transaccional e o histórico na plataforma de empréstimos.

“Adoptamos uma abordagem proactiva na implementação de várias iniciativas de educação financeira, ajudando os nossos clientes a gerir melhor os seus empréstimos e a compreender as consequências do não pagamento. Mantemos uma comunicação regular por meio de SMS e chamadas, bem como através da nossa rede de agentes, reforçando a importância do cumprimento das obrigações financeiras”, explicou Gomes.

Para apoiar os clientes, o M-Pesa oferece facilidades de pagamento, incluindo a possibilidade de liquidar os empréstimos em prestações e até mesmo planos de reestruturação, como a dedução automática de pequenas parcelas sempre que o cliente recebe dinheiro na sua conta M-Pesa. Dessa forma, os usuários podem continuar a utilizar os serviços da plataforma enquanto honram os seus compromissos financeiros.

A inovação, a conveniência e o foco na experiência do cliente são os principais diferenciais do M-Pesa. “Oferecemos uma plataforma acessível e segura para transferências, pagamentos, empréstimos, poupanças e seguros, garantindo que todos, independentemente da sua localização ou perfil, possam beneficiar dessas soluções de forma prática e eficiente”, afirmou o director.

Segundo Gomes, o M-Pesa permite o acesso ao crédito de forma rápida e sem burocracia, contribuindo para que mais pessoas possam cumprir as suas necessidades financeiras imediatas e de longo prazo. Esse compromisso com a inclusão financeira é uma das maiores prioridades da empresa porque ajuda a democratizar o acesso a serviços financeiros.

Em relação à coexistência das carteiras móveis com os bancos tradicionais, Sérgio Gomes enfatizou que “o dinheiro electrónico é suportado pelos bancos tradicionais, e as carteiras móveis ajudam a alcançar áreas onde os bancos têm limitações, oferecendo maior inclusão financeira. Além disso, os produtos de empréstimos são concedidos através de bancos comerciais, mostrando que ambos os sistemas se complementam”.

Sobre a recuperação de dívidas, o director explicou que, apesar de os empréstimos serem concedidos a um determinado número 84/85, eles estão vinculados ao cliente. “A recuperação das dívidas pode ser feita em qualquer conta M-Pesa onde seja possível identificar que pertence ao mesmo cliente, bem como nas contas bancárias que esse cliente possua no banco parceiro do produto”, detalhou.

Em casos de incumprimento, os clientes são reportados à Central de Registo de Crédito (CRC) do Banco de Moçambique. Com isso, ficam impedidos de solicitar empréstimos noutras instituições financeiras e perdem o acesso a novas linhas de crédito, pois passam a representar um risco para o M-Pesa e outras entidades do sector financeiro.

A posição do M-Pesa reforça o papel essencial das carteiras móveis na economia moçambicana, oferecendo soluções financeiras inclusivas e acessíveis para a população. No entanto, a responsabilidade financeira dos clientes é um factor crucial para a sustentabilidade do sistema.

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