Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

10 de June, 2025

NGŨGĨ WA THIONG’O ( 5.01.1938 – 28.05.2025)

Escrito por

Ngũgĩ wa Thiong’o, que morreu a 28 de Maio de 2025, terá o seu nome inscrito nos armoriais da literatura africana e universal, como um dos mais profícuos e originais autores do nosso continente. Com a sua morte, desaparece um dos últimos gigantes africanos. Provavelmente, Wole Soyinka seja agora o último grande sobrevivente desta geração de verdadeiros fundadores da literatura africana e intérpretes do nosso tempo.

Ngũgĩ nasceu no Quénia, numa zona rural, Kamiriithu, em Limuru, a 5 de Janeiro de 1938, numa família numerosa, quinto filho da terceira mulher do seu pai, Thiong’o wa Nducũ. O pai tornou-se alcoólico e violento e a sua mãe, Wanjiku, arrecadou dinheiro para o mandar estudar. O pequeno Ngũgĩ frequentou a Alliance High School, que estava a 20 quilómetros de Limuru, nos meados dos anos 50. Mais tarde iria para a universidade ugandesa de Makerere. Aliás, Kampala e Uganda têm uma importância capital na sua futura afirmação como escritor. Ali encontrou um ambiente propício para se desenvolver como escritor e como intectual.

Mais tarde participaria da célebre Conferência de Escritores Africanos de Expressão Inglesa, realizada justamente em Kampala, em 1962, onde se discutia, entre outros assuntos, por que língua estes se deveriam afirmar: se nas línguas africanas de origem ou na língua do antigo colonizador.

À época o livro “O Bebedor de Vinho de Palma e o seu Falecido Vinhateiro na Vila de Gente Morta” do nigeriano Amos Tutuola que, curiosamente, não participou do evento, estava no centro do debate. O sul-africano J.M. Coetzee, num texto recente, sobre Tutuola lembra esse encontro, onde se discutia o futuro das literaturas dos países colonizados pelos britânicos.

O livro de Tutuola estava escrito num inglês arrevesado que imitava os homens de rua sem domínio da língua. Amos cruzava lendas iorubas e uma fabulosa imaginação. Era uma obra virtuosa, mas a sua via, que era uma espécie de meio caminho, também não colheu entusiasmo, pese embora a sua obra fosse e seja considerada uma das obras mais importantes da literatura africana.

Qual seria então a língua de afirmação dos escritores num contexto pós-independência? A língua da antiga potência colonial ou a sua língua de origem? A ala dos que defendiam a língua inglesa prosseguiu o seu percurso e Ngũgĩ dissentiu dela. A língua de expressão literária, de identidade e de afirmação, cultural e política, seria para ele, que iria, anos depois escrever em kikuyu, um tema central e relevante. Os seus primeiros quatro romances foram escritos, no entanto, em inglês.

Com a publicação, em 1964, de “Weep Not, Child”, no Reino Unido, Ngũgĩ wa Thiong’o haveria de se consagrar como o primeiro autor da África Oriental a publicar um romance em língua inglesa. Esta edição deve-se ao seu encontro com Chinua Achebe (em 1962) que o levou a publicar na mítica série de “Escritores Africanos”, da Hienemann, na qual, aliás, foi editada a obra seminal “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, do moçambicano Luís Bernardo Honwana, com o título “We Killed Mangy-Dog & other stories”.

Para além da questão linguística, a obra de Thiong’o foi profundamente política e acutilantemente crítica. Em 1977 publicou “Pétalas de Sangue”, um romance em que retratava uma Quénia corrupta nos anos ulteriores à independência.  É dessa época a peça escrita em kikuyu cujo título em inglês seria “I Will Marry When I Want”, que denunciava uma sociedade que já se ressentia dos malefícios da corrupção e da degenerescência que se alastrava socialmente. Foi um sucesso tremendo de público, mas custou-lhe a prisão. A sua casa foi invadida e os seus livros apreendidos. Permaneceu um ano encarcerado sem julgamento. Ngũgĩ já se afirmava claramente como um dissidente.

Na prisão escreveu, com recurso ao papel higiénico, o seu romance “O Diabo na Cruz”, em kikuyu. Afinal, esta via não só lhe garantia a adesão do público como irritava profundamente as autoridades quenianas. Se o haviam prendido por escrever na sua língua, era através dela que iria empreender as suas lutas futuras e obras.

Num livro publicado em 1986, intitulado “Decolonising the Mind”, wa Thiong’o voltava ao argumento da língua de afirmação e criticava autores como Chinua Achebe. Escusado será dizer que as relações entre ambos azedariam. Ngũgĩ escrevia os seus livros na língua kikuyu e posteriormente traduzia-os para o inglês.

A sua obra foi marcada pelos acontecimentos que ditam a luta pela independência do Quénia, as suas posições anti-coloniais e pelos acontecimentos que estão na origem da revolta dos Mau-Mau. Mas também pelas suas experiências pessoais, pelos eventos que viveu nos anos 50, pela sua vida familiar, marcada sobretudo pela violência doméstica.

“Um Grão de Trigo”, escrito quando estava na Universidade de Leeds, fala dos tempos imediatamente anteriores à independência. O livro é uma versão céptica dos marcos ufanos ou heroicos que assinalam o discurso oficial sobre a independência do Quénia, em 1963. Ngũgĩ wa Thiong’o não alinhava no proselitismo que atravessava o seu país. Aliás, este triunfalismo parece uma marca distintiva dos países africanos que, com os tempos, viram desmentidas as promessas que as independências tinham produzido, muito por culpa da impreparação de quem os governava ou dos cancros (como a corrupção) que foram corroendo os seus tecidos sociais. Muitos desses regimes tornar-se-iam intolerantes à crítica e foram severos com os intelectuais. É o caso do Quénia e de Ngũgĩ wa Thiong’o.

O escritor regressaria ao seu país em 1967. Muda o seu nome de registo para Ngũgĩ wa Thiong’o (os primeiros livros assinava como James Thiong’o) e ingressa no departamento de literatura inglesa da Universidade de Nairobi. Faz uma intrépida campanha para a sua abolição, o que consegue com sucesso, e é criado, em seu lugar, um departamento de literatura africana, com um currículo que incluía literatura oral e escrita. São anos de grande activismo cultural e político.

Quando foi preso, em 1977, a Aministia Internacional fez uma campanha para o libertar. O presidente Jomo Kenyatta, que o mandara prender, morre em Agosto de 1978. O seu sucessor, Daniel Arap Moi, libertará o escritor em Dezembro do mesmo ano. Não obstante, o governo de Moi foi um alvo da mordacidade crítica de Thiong’o.

Ngũgĩ wa Thiong’o não será readmitido pela Universidade de Naroibi e exila-se. Primeiro em Londres, no Reino Unido, e, mais tarde, nos Estados Unidos, onde lecciona literatura comparada nas universidades de Yale e de Nova Iorque. Retornaria ao Quénia quando Moi se viu forçado a abandonar o poder no ano de 2002. O seu regresso em Agosto desse ano foi triunfal e, simultaneamente, trágico. Teve multidões no aeroporto de Nairobi, contudo três dias depois a sua casa foi assaltada por quatro javardos, que estupraram a sua mulher e o maltrataram (queimando-o com cigarro no rosto, entre outras sevícias) quando este a tentou defender. Pareceu-lhe um ataque político.

No regresso à Califórnia, onde vivia em Irvine, dedicou-se a escrever memórias. A sua obra satírica “O Mágico do Corvo” (2006), entre outras obras, zombava dos governantes e dos seus acólitos. Em 2019 publicaria a sua última obra em kikuyu, que teve uma versão em língua inglesa no ano seguinte (“Perfect Nine”). A sua obra é vasta e diversa. Escreveu romances, contos, peças de teatro e ensaios. Foi professor, activista e, sobretudo, crítico. Foi um humanista. Um grande humanista.

Ngũgĩ wa Thiong’o também teve uma vasta prole. Da sua primeira mulher teve seis filhos, entre os quais Mukoma wa Ngugi e Wanjiku wa Ngugi, ambos conhecidos escritores. Da sua segunda mulher teria mais filhos.

A literatura africana mal chega hoje ao nosso país. Nos anos 80, ficamos a conhecer uma plêiade de escritores africanos, entre os quais Ngũgĩ wa Thiong’o com os seus briosos romances “Pétalas de Sangue” e “Um Grão de Trigo”. Mas também o senegalês Sembène Ousmane (“O Harmatão”), o equato-guineense Camara Laye  (“O Menino Negro”), os nigerianos Chinua Achebe (“Um Homem Popular”) e Wole Soyinka (“Os Intérpretes”), os sul-africanos Alex La Guma (“País de Pedra” ou “Tempo da Morte Cruel”), Alan Paton (“Chora Terra Bem Amada”) e Peter Abrahams (“Um Rapaz na Mina”). Mais tarde haveríamos de ler o egípcio Naguib Mahafuz, ou os sul-africanos Nadine Gordimer e a J.M. Coetzee, todos eles laureados com o Nobel. O primeiro Nobel africano tinha sido outorgado a Soyinka em 1986.

Hoje, escusado será dizer, nenhum destes autores chegam ao nosso trânsito como leitores, nem a obra dos escritores mais recentes, onde pontificam nomes femininos relevantes, como a zimbabweana Tsitsi Dangarembga, a etíope Maaza Mengiste, ou a nigeriana Chimamanda Adichie Ngozie, entre outras grandes intérpretes do devir africano.

Estas novas gerações de autores trazem outras formulações e identidades, lutas e afirmações, muito longe dos problemas impostos pela luta anti-colonial ou pela afirmação pós-independência da geração de autores fundadores como Ngũgĩ wa Thiong’o.

Do Quénia são poucas as notícias literárias que temos. Assinalo, no entanto, o talentosíssimo Binyavanga Wainaina (1971-2019), que era um tipo extraordinário, ou Yvonne A Adhiambo Owour, vencedora do Caine Prize, prémio que lançara Binyavanga, ou ainda a escritora Grace Ogot (1930-2015), uma das primeiras ficcionistas quenianas.

Estamos confinados ao gueto da língua portuguesa e à escassez de circulação de livros de outras origens. Do Brasil, felizmente, ainda chegam algumas traduções interessantes de autores africanos graças ao notável trabalho da editora Kapulana.

Quando a morte veio ao seu encontro, a 28 de Maio, há uma semana, Ngũgĩ wa Thiong’o tinha 87 anos e um belo e honrado percurso. Tinha recebido quase todas láureas, faltando-lhe, no entanto, a honraria do Nobel, que muito merecia. Aliás, viveu a mesma injustiça que o seu velho amigo Chinua Achebe.

Desde 2010, quando perdeu para o peruano Mario Vargas Llosa, recentemente falecido, Ngũgĩ wa Thiong’o era visto todos os anos como favorito. Não o concederam. Quando Abdulrazak Gurnah, em 2021, foi agraciado com o Nobel rebelei-me com o facto de o considerarem africano. Gurnah tem mérito literário, indubitavelmente, mas é um autor inglês nascido em Zanzibar. A Academia, disse-o na época, se quisesse dar um prémio a um africano tinha Ngũgĩ wa Thiong’o e não o fez.

Ngũgĩ wa Thiong’o foi um escritor de longo curso, com uma poderosa e vasta obra, entre o registo pessoal e político, entre a memória familiar e a denúncia social. Era um crítico mordaz, por vezes sarcástico. Sempre libertário e profundamente comprometido com as causas sociais. Era conhecido pela sua boa disposição, pela sua bonomia e por ser amigo dos seus pares. Comunista, ou melhor anti-capitalista, viveu grande parte da sua vida na América, onde foi aclamado e admirado. Começara a sua carreira escrevendo em inglês e depois haveria de escreveu na sua língua kikuyu. Percorreu as sete partidas do mundo e deixou, entre os que o conheceram, o lastro do seu imenso humanismo e a sua extraordinária afabilidade.

Sir Motors

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *