Todas as línguas são belas, como os rios que correm e vão deixando escória nas margens. Cada língua tem o seu ritmo, o seu compasso. É como na escala diatónica, as notas ressurgem em comportas diferentes, porém com o mesmo objectivo que é a composição da música. É aí onde está a beleza. O sotaque é um componente importante na comunicação, revela a liberdade de falar a língua dos outros sem perder a minha personalidade, as minhas raízes. É preciso compreender isso, a liberdade e a personalidade.
Eu já falara em tempos sobre este assunto importante e belo da nossa cultura, o sotaque das nossas línguas. Por exemplo na Rádio Moçambique – não sei se ainda se usa este critério – para você ser locutor de cabine na língua portuguesa tinha que falar como os próprios portugueses, ou próximo deles, sem o sotaque do xinyúngwè, por exemplo. Os que não conseguissem esse feito tinham poucas chances de ser admitidos naquela área, eram reorientados. Hoje não sei como é que funciona a selecção dos profissionais daquela estação emissora.
Tomé Mbuya João, meu ídolo, nunca teve problemas em trabalhar na Voz da América em português com o sotaque do “seu” xinyúgwè. É fascinante ouvi-lo a falar “assim”, ele torna-se um actor que, falando a língua que não é sua, inculca a sua própria, fazendo do seu trabalho uma arte, e a arte é bela. É como Ernesto Gove, um economista de proa e antigo governador do Banco de Moçambique, fala português aprumado com sotaque bitonga, e há quem se ria dele.
Nós somos africanos, temos as nossas línguas. Mas há quem se sente inferiormente complexado como o bitonga, por exemplo, que estando em Maputo, não quer que o reconheçam como tal. No “chapa” ou noutros lugares públicos ele evita falar a sua língua. Fala um changana mal falado e piora a situação quando esse changana mal falado tem sotaque bitonga, língua que ele evita articular em sociedade.
Marina Pachinuapa é uma makonde que nunca se escondeu. Fala a língua portuguesa e você percebe sem qualquer esforço que ela é makonde, e foi sempre um regalo ouvi-la, é como se estivesse a escutar a própria música do planalto cantada por Casimiro Nyusi, ou a assistir a um espectáculo de mapiko. Mesmo assim ainda existem – muitos – os que se esforçam em falar como os portugueses. Pior do que isso, há aqueles que se riem ao ouvir Kalene nos palcos a fazer arte falando português com o suporte de xicena. Então esses, como dizia um ilustre actor de teatro, não conhecem o valor do jazz, e o jazz vem daqui.
Os angolanos são de outra jaez cultural, os guineenses, os sul-africanos, os zimbabweanos. Até Nelson Mandela, vulto mundial de capital humano e político sem medida, fala inglês com a rusticidade do tlosa, e a sua grandeza não será abalada por isso. E nós aqui em Moçambique, como é que vamos, vamos para onde esse esforço constante de querermos falar como “eles”?