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27 de May, 2025

Entre o Aperto de Mãos e o Aperto da Bota: A balada da Paz em Promoção e a Justiça Fora de Estoque

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O Nascimento da Tragédia
No palco moçambicano, onde o drama político se desenrola entre cortinas de veludo e bastidores de ferro, o recente reencontro entre Daniel Chapo e Venâncio Mondlane — um com a caneta do poder, outro com o título autoconcedido de “Presidente Eleito Pelo Povo” — oferece um espetáculo digno da pena mordaz de Voltaire e da frieza estratégica de Maquiavel.

É verdade, senhores, que um aperto de mãos pode calar espingardas. Mas também pode servir para encobrir a continuidade de um sistema cuja essência se alimenta do silêncio, da impunidade e da simulação da paz. Como diria Maquiavel, “os homens julgam mais com os olhos do que com as mãos”, e a política é a arte de parecer virtuoso mesmo quando se governa pelo medo.

De Gaulle, se vivo estivesse, diria: “Moçambique não é uma mesa-redonda — é uma bomba-relógio disfarçada de reunião de comadres.”

E Marx escreveria: “A história se repete: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa, a terceira como comunicado da Presidência.”

É preciso dizer o óbvio: este país está exausto de encontros secretos e apertos de mão em lugares míticos. O que Moçambique precisa não é de fotos. É de justiça. Não é de consenso estranho. É de respeito ao voto, à vida, à dignidade.

Enquanto os “líderes” falam em reconciliação, o povo segue sem pão, sem remédio e sem voz. E, pior: sem esperança de que algo mude quando os protagonistas são sempre os mesmos, apenas em trajes diferentes.

A estética da conciliação, o vazio da justiça
Num cenário cuidadosamente montado, Chapo e Mondlane reeditam o gesto simbólico do “aperto de mãos”, num ritual que visa apaziguar os ânimos da plebe — ou pelo menos parecer que se apazigua. Mondlane exige prazos e monitoramento para libertação de detidos políticos, assistência médica às vítimas e programas juvenis. Promessas nobres, sem dúvida. Mas também conhecidas. Já vimos essa peça antes.

E como Voltaire nos ensinou, “é perigoso estar certo quando o governo está errado.” Quem são os detidos senão jovens que ousaram duvidar da pureza do processo eleitoral? Quem são os feridos senão cidadãos que, com a ingenuidade do povo de Cândido, acreditaram que este é “o melhor dos mundos possíveis”?

A paz como produto político
Daniel Chapo fala em “paz e segurança” como pré-condições para o desenvolvimento. Não é novo. Todo regime que teme a liberdade adorna o seu discurso com os sinos da paz. Mas como Maquiavel adverte em O Príncipe, “é mais seguro ser temido do que amado, quando se não pode ser ambos.” A paz proposta é uma paz sob tutela, sob vigilância, e sobretudo, sob condições impostas por quem sempre teve o monopólio das armas, das leis e da narrativa.

A tal “inclusividade” do diálogo parece mais um eufemismo de conveniência. Quantos dos “outros extratos sociais” realmente participam? Onde estão os agricultores sem terra, os mineiros expropriados, as mulheres que enterram os filhos mortos pela polícia ou pela fome?

A utilidade da oposição domesticada
Venâncio Mondlane, nesta peça trágico-cômica, parece oscilar entre o mártir e o colaborador. Ao aceitar sucessivos encontros “secretos” ou “simbólicos” sem resultados concretos e verificáveis, arrisca-se a ser percebido não como líder insurgente, mas como parte do sistema que finge combater. Maquiavel teria sorrido: o príncipe mais astuto é aquele que convence o adversário a selar a paz enquanto ainda sangra.

Voltaire, por sua vez, perguntaria: “É esse o melhor diálogo possível?” Quando as prisões se enchem de jovens por protestarem e o governo responde com comissões e sorrisos, há mais de tragédia do que de esperança nesse script.

A função do bastonário e os bastidores da legalidade
A presença do Bastonário da Ordem dos Advogados parece emprestar um verniz jurídico à negociação — um gesto que, à primeira vista, confere solenidade, credibilidade e esperança de que o diálogo ocorra dentro dos marcos do Estado de Direito. Contudo, quando a legalidade precisa ser invocada como exceção — e não como regra — a própria ideia de justiça entra em colapso.

Um Estado que deve ser convencido a cumprir as leis que ele mesmo sancionou já se encontra em negação do seu próprio fundamento. Já não governa pela norma, mas pela conveniência. Nesse teatro, o Direito deixa de ser a estrutura sobre a qual a sociedade repousa e passa a ser uma peça cenográfica: bonito, necessário para compor o cenário, mas removível sempre que o enredo exigir. Como adverte Walter Benjamin, no seu ensaio “Para uma crítica da violência”, a autoridade estatal tende a usar o direito não como instrumento de justiça, mas como instrumento de conservação da própria violência legalizada.

É nesse paradoxo que a figura do bastonário se torna simbólica e trágica. Sua presença, ao mesmo tempo que sinaliza um desejo de institucionalidade, pode inadvertidamente legitimar um jogo onde a legalidade virou performance. Hegel já havia dito que o Estado é a “realidade da ideia ética” — mas quando o Estado se divorcia da ética, resta apenas a aparência formal da lei, manipulada por aqueles que dominam a linguagem do poder.

A legalidade, nesse contexto, torna-se cúmplice da simulação. Aquilo que deveria proteger o cidadão transforma-se em ferramenta de pacificação simbólica. O bastonário vira então uma figura ambivalente: ou age como guardião vigilante da Constituição — mesmo contra o Estado — ou torna-se testemunha involuntária de um pacto que reafirma a hegemonia sob a aparência do diálogo.

A pergunta que persiste é: a lei serve para limitar o poder ou apenas para dar-lhe um rosto aceitável?
Como lembraria Giorgio Agamben, vivemos num tempo em que o estado de exceção se tornou regra, e nesse tempo, até os juristas são arrastados para a lógica perversa da excecionalidade: fingir normalidade enquanto se suspendem os direitos.

Conclusão: Paz sem Justiça é Pantomima
A história julgará estes encontros não pelos comunicados de imprensa nem pelas fotos sorridentes, mas pelas reformas reais, pelas libertações concretas, pelo fim das detenções arbitrárias e da violência institucional. Até lá, o povo moçambicano — como o camponês das Cartas Filosóficas de Voltaire — continuará a plantar, sangrar e calar, esperando que algum dia o aperto de mãos se transforme num verdadeiro contrato social, e não num pacto de conveniência entre elites que trocam de cadeiras, mas não de consciência.

Enquanto isso, os presos políticos seguem encarcerados, como se o seu crime fosse respirar a democracia em praça pública. Os jovens que apanharam pancada por sonhar vivem agora doentes e esquecidos. E o povo, ah, o povo — esse eterno figurante — assiste ao espetáculo sem direito a fala.

Venâncio, o ex-revolucionário de megafone na mão, aparece agora como diplomata em treinamento. Saiu da rua para o salão, trocou a urgência do grito pela liturgia do protocolo. Vê-se nele o cansaço típico de quem descobre que o sistema não se quebra — se absorve.

Quarta-feira, 21 de maio de 2025

*Ivanick Lopandza é um jovem intelectual, poeta e activista social santomense, com ADN paternal congolês, membro fundador do colectivo Ilha dos Poetas Vivos em São Tomé no ano de 2022, com seus companheiros santomenses Marty Pereira, Remy Diogo e moçambicano MiltoNeladas (Milton Machel). Autor de livros de poesia, Ivanick é também bloguista, curando seu blogue Lopandzart.

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