“A essência das coisas é senti-las
tão densas e tão claras,
que não possam conter-se por completo
nas palavras.”
(“Um Denso Silêncio Azul”, 1965)
Glória de Sant’Anna, nascida em Lisboa a 26 de Maio de 1925, tendo chegado a Moçambique em 1951, no ano em que se estreia poeticamente com o livro “Distância”, escreveu abundantemente sobre Pemba e sobre aquele mar translúcido ou diáfano que atravessa, de forma densa e azul, toda a tessitura da sua arte poética. Começou por viver em Nampula e, dois anos depois transfere-se para Pemba, onde permaneceria largos anos. Os últimos dois anos da sua passagem moçambicana acontecem no Chimoio antes de, em 1974, retornar a Portugal.
Os títulos da sua biografia poética: “Distância” (1951), “Música Ausente” (1954”, “Livro de Água” (1961), “Poemas do Tempo Agreste” (1964), “Um Denso Silêncio Azul” (1965), “Desde que o Mundo e 32 Poemas de Intervalo” (1972). É autora do livro de crónicas “…Do Tempo Inútil” (1975) e de um livro infanto-juvenil “Zum-zum” (1995). A sua obra poética, publicada e inédita, está reunida em duas antologias “Amaranto” (1988) e “Solampo” (2000).
“Solampo”, editada pela Ndjira em Maputo, há 25 anos, é uma brevíssima súmula da sua obra poética e reúne textos coligidos dos seus livros, com excepção do livro de estreia. Há um cuidado, neste breve livro, de seleccionar os seus poemas mais africanos. Aliás, o subtítulo da obra é significativo: “Escrevendo no mar de pemba com o silêncio do mato”. Dir-se-ia que nesta breve colectânea está o testamento poético moçambicano de Glória de Sant’Anna.
Os materiais poéticos da autora: o mar, o silêncio, a solidão, a angústia, a ausência, a música, as mulheres, as crianças negras, a esperança, a humanidade. No fundo, Glória de Sant’Anna escreveu sobre o ser humano e sobre o seu destino. Escreveu sobre a vida e sobre a morte. Eis a essência da sua extraordinária poesia.
Do livro “Desde que o Mundo e 32 Poemas de Intervalo”, cito este belo poema, intitulado “Segundo poema de solidão”, que poderia ser uma espécie de breviário ou epítome da sua obra:
“Serei tão secreta
como o tecido da água
e tão leve
e tão através de mim deixando passar
toda a paisagem
e todo o alheio pecado
do gesto, da presença ou da palavra
que logo que a tua mão me prenda
me não acharás
serei de água.
Os versos de Glória de Sant’Anna são quase sempre assim: breves, nítidos, cristalinos, translúcidos, distintos. Trazem, na sua textura, a pureza da água. E têm uma transparência que os tornam distintos. Para além de sempre se abeirarem do silêncio e da morte. A vocação do silêncio é a grande tradição da poesia. E a morte. No caso desta autora, a morte e o mar, ou a morte no mar.
Glória de Sant´Anna, cujo nome completo é Maria da Glória de Sá e Lemos d’Almeida e Figueiredo da Fonseca de Sant’Anna Andrade Paes, nasceu efectivamente a 26 de Maio de 1925 e não a 25, como em muitos livros, inclusivamente seus, erroneamente se faz referência. Tirou o curso complementar de Letras no Colégio de Odivelas, casou em 1949 e dois anos depois transferiu-se para Moçambique com o seu marido, Afonso Manta Andrade Paes, tendo-se fixado inicialmente em Nampula.
Colabora, em Moçambique, em publicações como “Guardian” ou “Itinerário” e no “Diário Popular”, em Portugal, para onde redige regularmente uma “crónica do Mato”. As suas colaborações estendem-se às revistas brasileiras “Actualidades” e “Sul”. Do mato, do silêncio, da distância e do mar vai porfiando, entre os anos 50 e 70, “um denso silêncio azul” que permeia toda a sua poesia.
A sua poesia é, sobretudo, marcada pela baía de Pemba: “A água é pura”. Escreveu alguns dos mais pungentes poemas sobre a Ilha de Moçambique.
É autora de uma das abordagens poéticas mais compassivas na poesia que se escreveu antes da independência de Moçambique: “a nossa humanidade é o mesmo laço / irmão”, escreve em “Poema para um negro” no livro “Poemas do Tempo Agreste” (1964).
Sempre uma poesia lastreada pelo sentido da humanidade, destituída de biografia ou de biografismo, uma escrita despojada, austera, sóbria, desprendida, marcada poderosamente pelas vozes, pelos silêncios, pela angústia, sobretudo de mulheres e homens negros, e pela incessante busca da esperança.
Eugénio Lisboa dizia, algures, da arte poética de Glória de Sant’Anna: “uma arte líquida, secreta, discretamente deslizante, atenta e comovida, contidamente dramática, ilusoriamente tranquila, rica nos seus meios, de uma simplicidade enganadora, nítida mas plena de mistério, límpida mas “mortal” e tocada pela asa de uma angústia que mal se mostra”.
Do “Livro de Água” socorro-me destes versos (“Legenda”) para falar da poesia de Glória de Sant’Anna:
“Quando a dor se levanta,
ergue o teu rosto:
as estrelas só nascem
a seguir ao sol-posto.”
Há, no entanto, um outro poema de Glória de Sant’Anna, belo e pungente, intitulado “Maternidade” do livro “Um Denso Silêncio Azul”, que poderia ser também a sua biografia poética e que é o embasamento da sua imensa magnanimidade:
“Olho-te: és negra.
Olhas-me: sou branca.
Mas sorrimos as duas
na tarde que se adianta.
Tu sabes e eu sei:
o que ergue altivamente o meu vestido
e o que soergue a tua capulana,
é a mesma humanidade.
Quando soar a hora
determinada, crua, dolorosa
de conceder ao mundo o mistério da vida,
seremos tão iguais, tão verdadeiras,
tão míseras, tão fortes
e tão perto da morte…
que este sorriso de hoje,
na tarde que se esvai,
é o testemunho exacto
do erro das fronteiras raciais.
Dos nossos ventres altos,
os filhos que brotarem
nos chamarão com a mesma palavra.
E ambas estamos certas
– tu, negra e eu, branca –
que é dentro dos nossos ventres
que germina a esperança.”
Isto é dolorosamente belo. A grande arte talvez seja justamente isso: a beleza que nos fissura ou lacera, que nos trespassa ou dilacera, que nos arrebata, que nos jugula ou subjuga. Este poema, contundentemente belo, é um poema que deveria ser exaltado por estes dias em que nos afadigamos a sublinhar as nossas diferenças, quando vemos o altruísmo apartado, quando divergimos do humanismo e não nos reconhecemos iguais.
Glória de Sant’Anna, antes do seu ocaso, a 2 de Junho de 2009, em Válega, Portugal, ainda haveria de testemunhar: “Eu naveguei pelo interior de um longo rio humano de tempos diversos onde também há sangue vegetal, buscando o que acabei por encontrar – a imensa angústia que se reparte. Sobre isso escrevo.”
Lê-la, por estes dias em que celebramos o seu centenário, é um lenitivo de que precisamos. Afinal, também, buscamos na poesia algo que nos console. A sua música, a sua solidão, o seu silêncio, o seu mar, os seus poemas da chuva, dos batuques, dos bairros negros, sobre a paisagem, as canções, as crianças, as mulheres e os homens, na sua dolorosa angústia, neste seu esplêndido hino, entre a vida e a morte, impregnado de humanidade, compassivo e comovente, magnânimo e nobre, são o gérmen da esperança.
Cidade do Cabo, 26 de Maio de 2025