Ainda é Abril. O mês da Mulher na Pérola do Índico. Não sei se a propósito do mês do outrora cognominado de sexo fraco, a mulher era o tema de conversa numa das mesas de uma casa de pasto. E não era uma mesa qualquer: era a mesa do canto.
Antes de prosseguir com o enredo, referir que o acento na mesa do canto é por ela ser a mesa misteriosa. Dos mais velhos aprendi de que esta mesa, em tempos sombrios da nossa história, era a dos “bufos”/secreta. Não sei se ainda preval__ece, mas creio que hoje em dia apenas ficou a fama, contudo um detalhe: nela sentam os notáveis do local.
Desde então, e sempre que entro numa casa de pasto, seja qual for a tipologia, reparo para a mesa do canto e sento-me na mais próxima. Foi assim há dias, em viagem a uma das províncias. A curiosidade era a de sempre: medir o pulsar da vida local.
Embora soubesse do informal registo histórico nacional de misteriosos assassinatos de indivíduos que se sentaram nas proximidades da mesa do canto, acabando por ouvir o que não deviam, não fora suficiente que me dissuadisse. Imperou o facto de ser a primeira vez no local e sem nenhum amigo autóctone e nem “viente” que me desse o “briefing” da cartografia social, económica e política local.
Depois que me sentara, e devidamente atendido por uma esbelta de Abril, fiz o meu o pedido. Aproveito e abro um parenteses de curiosidade para a seguinte pergunta: quais são os critérios usados no recrutamento do “staff ” feminino para atendimento nas mesas das casas de pasto? Conjecturo que um deles esteja relacionado com os efeitos na combinação do tempo de estadia, consumo e a frequência dos clientes.
Acho que me perdi. Falava mesmo de quê? De Abril? Sim. De Abril e de que era o mês da Mulher. Por acaso era sobre a mulher que falavam dois notáveis locais que se sentavam na misteriosa mesa do canto. Pelos sinais – candência vocal, gestos e quantidade de cigarros no cinzeiro – um chamara o outro e a este lamentava as mágoas da sua Estrela de Abril.
O meu copo ainda estava à meia haste e a minha caixa de correio já dava sinais de que tinha que libertar espaço. As mágoas eram tantas e já levavam décadas. O interlocutor, que se manterá calado desde a minha chegada, em jeito de resumo, suponho, tomou a palavra e disse: “No fundo, no fundo o que elas querem é dinheiro!”
De repente se fez silêncio. Não só na mesa do canto, mas em toda a casa de pasto. Um sinal de que todos acompanhavam a conversa que se desenrolava na enigmática mesa do canto.
O lamuriante, que mal acabara de ouvir o resumo feito, deu um valente gole da bebida seca que consumia e em seguida largou, de todos os orifícios possíveis, uma densa fumaça que lentamente foi desaparecendo ao mesmo tempo que o seu rosto e voz se irrompiam, o primeiro da fumaça e o segundo, quebrando o silêncio de suspense – que tomara conta da casa de pasto – com as seguintes e tensas palavras: “Qual no fundo? À superfície, pah!”.
Depois de proferir o seu veredicto, o lamuriante, ciente de que todos ouviram o que acabara de decretar, levantou-se, aliás, o veredicto fora proferido enquanto se levantava e foi, oscilante e ténue manca no andar, até aos lavabos.
Enquanto esteve nos lavabos, o silêncio esperou pelo seu regresso. E o regresso foi silencioso numa maca do SERNIC (Serviço Nacional de Investigação Criminal). Na sua passagem pelo corredor humano, que se formara subitamente para a sua solene despedida, o silêncio continuou a ser a marca do local.
Voltei a minha mesa. Peguei nos meus pertences e na caminhada ao balcão para saldar a conta olhei profundo para a fatídica mesa do canto, a mesma sensação de sempre: ela é mesmo a mesa misteriosa. “É mais uma vítima de Abril”. Foram as palavras, e únicas, do “Barman” depois que me entregara os trocos.