“Que se calem as armas, pois o meu coração está apertado. Que vivam todos aqueles que acreditam no amor. Como viver sem celebrar a amizade? Como viver sem sonhar que, um dia, seremos todos amigos?”
Dos mais variados e assombrosos materiais e equipamentos que a humanidade ousou construir — e que o mundo consagrou como eternos —, o livro deve, seguramente, ser o mais poderoso e importante, ocupando o lugar cimeiro no ranking da criatividade. Das escrituras sagradas até ao mais fútil e desprezível dos livros, as suas páginas retractam a própria humanidade, o seu percurso e as suas maiores conquistas. Jorge Luís Borges, escritor e poeta argentino, no seu livro “Ensaio”, colocava o livro como inigualável de entre todas as invenções humanas. Todas as restantes seriam, como dizia, extensões do próprio corpo humano. O microscópio e o telescópio seriam extensões da vista, o telefone o prolongamento da voz, o arado e a espada eram as extensões do corpo.
Porém, o livro, era tudo isso e um pouco mais; era a extensão da memória e da própria imaginação. A gloriosa viagem entre o recordar de sonhos ou o revisitar de um passado mais alegre, tenebroso, memorial, retroactivo ou transacto. Se o livro é tudo isso, então, pela leitura os humanos transcrevem o tempo decorrido até a modernidade, pós-modernidade ou o futuro. Podemos, até, discordar das opiniões dos livros e dos seus autores, podem existir conceitos que o tempo prova estarem errados; ainda assim, descobrimos, em cada livro, algo de sagrado e divino, personagens, ideias, justiça e protagonismo, reflexões, os espelhos da empatia, relatos que assombram, ficção irrealizável, histórias abençoadas e, acima de tudo, o desejo de reencontrar no final da leitura a felicidade e a sabedoria.
Vem este intróito a propósito do livro “Observador de Sonhos”, escrito e lançado em 2024, fora dos holofotes e parangonas dos jornais ou das revistas de especialidade. É um livro fortemente influenciado pela oralidade e tradição africana, que combina uma linguagem moderna com recursos que evocam os ecos da tradição oral. Escrito por Bruno Morgado, jovem de múltiplos talentos e, sobretudo, com imensa sensibilidade para os desafios da vida e que reflecte esse ambiente urbano para um país que tem distintas veias e artérias, sempre tão desiguais e com sensibilidades distintas. Morgado faz um apelo, e com facilidade, mergulha em temáticas existenciais, explorando a solidão, o amor e um mergulho na modernidade e nos seus perigos e descasos.
É um livro que, convenhamos, retoma toda a teoria desenvolvida por Friedrich Schiller, poeta e filósofo alemão, na obra “A educação Estética do Homem”, que considerava que escrever corresponde a viver e sonhar, e sonhar com o prazer equivaleria a ser sábio. Schiller era apologista de que a arte de escrever deveria servir uma finalidade que transcendia a finalidade educativa e de formação do intelecto. Essa teoria ressoa e traz de volta as passagens desenhadas e pintadas pelo escritor e poeta Bruno Morgado. Com efeito, esses escritos, ainda que desinteressados e sem o intuito de entrar para o mundo da literatura, edificam essa grande obra de arte da vida. Escrever, escrever e escrever, enaltecendo a vida e o mundo.
Calane da Silva, nosso saudoso escritor que perdura em nossas memórias, conviveu com a família Morgado e sublinhou, em sua trajectória, a existência de inúmeros escritores anónimos na literatura moçambicana, cujas obras ainda carecem de leitura e apropriação por parte do grande público. Aqueles que, à boa maneira de George Orwell, sem precisarem de ser compulsivos, debruçaram-se sobre a actualidade social e política do seu tempo, num olhar implacável, tendo como trave-mestra a cosmovisão e a denúncia dos exageros e da indignação. Porém, existem aqueles que se mantêm anónimos em vida e se fazem conhecidos já na eternidade quando só podem dialogar com Deus. Escritores cuja pena lírica, de tantos anos, apenas se torna conhecida bem mais tarde. Está é a descrição que Calane prefaciou no livro “Poemetria” de Carlos Morgado, por sinal, progenitor de Bruno Morgado, que, igualmente, fartou-se de escrever em folhas A4 soltas, guardanapos de papel de restaurantes, interiores de capas de revistas, enfim, em tudo por onde era possível colocar um lápis e uma caneta.
Carlos Morgado pode ter dado o mote ao seu filho, apesar dos estilos de escrita diferenciados. Ele dedicou-se, fundamentalmente, à poesia lírica e por vezes dramática, muitas vezes didáctica, e à ode ao amor e felicidade, sem abstracções ou limitações. A sua obra veio ao grande público, e ao mundo da crítica literária, 10 anos depois de ter partido para o encontro do Redentor. Morgado pai deixou para o Moçambique essa capacidade firme de sonhar, apesar das adversidades, e a certeza de que sonhar seria uma forma de reconciliar e instigar ao próximo o sentimento e crença de que nada seria mais importante do que acreditar no país, na sua potencialidade e capacidade de oferecer ao cidadão o essencial.
“Poemetria” foi o título que Carlos Morgado nunca sonhou para o seu livro. Os outros o fizeram por ele. Os títulos não expressam a inspiração e nem sempre os tempos. Assim, Calane da Silva questionava se a poesia teria medidas, se teria tamanho e se a lírica poderia ser quantificada. Estas indagações surgiram-me de imediato quando lia e desfolhava o “Observador de Sonhos”, livro de Bruno Morgado.
A poemetria em Bruno Morgado, também ele primogénito e que carrega os segredos, os mistérios poéticos e empresariais do pai, revela-se com uma cumplicidade e tonalidade que se assemelha bem a algo congénito, apenas separados pelo tempo. Como seria, então, possível, medir e padronizar a lírica metafórica e cantada pelos dedos e pelos olhos do coração do jovem escritor Bruno Morgado, ainda na sua adolescência de escrita?
Convenhamos que Bruno Morgado entende a poesia como uma provocação do pensamento. Coloca, de forma simplista e natural, as ideias que não podem ser ditas de outra forma, esses sonhos amarrados, bem como a inquietude da lealdade e a convivência resumida a conceitos linguísticos fáceis de interpretar e tão difíceis de alcançar. Bruno apresenta-se como ostensivamente ousado e sonhador, instigador que, para gáudio dos que tiveram a oportunidade de o ler, compreende que por detrás da simplicidade e do despercebido, existe um poeta que vai trilhar por essa carreira brilhante e sem encenações. Mas, ao mesmo tempo, mostra-se suficientemente tímido para desvendar a melancolia e introspecção de uma sociedade carregada de tantos tons e dilemas existenciais.
“Se eu pudesse Lobolar o céu, entregaria o mar em troca, só para o mar saber quem manda.”
Bruno Morgado chegou à literatura e ao complicado mercado livreiro nacional com o seu primeiro livro “Caverna dos Corajosos”, uma espécie de aventura mágica sobre a família, o amor, a coragem e a união baseada numa praia algures do país. Se neste primeiro livro procurava o seu próprio norte, como se a bússola pudesse indicar outro ponto cardeal mais conveniente, no segundo livro ele se refina e reencontra algo que não conseguiu alcançar antes. Esse novo desafio parece ser já mastigado, na simbiose entre o lirismo e o místico, procurando o reencontro entre a transcendência da comunhão nessa busca pela felicidade que nos escapa por todas as esquinas, dedos e momentos políticos desta nação com a idade do escritor.
“Que vivam felizes os que tenham que viver e que esses sejam todos”.
Tal como afirmara Rainer Maria Rilke, um dos maiores poetas da língua alemã do século XX, cada escritor segue a sua geração e as suas tendências. Cada um tem de voltar-se para si mesmo, investigando o motivo que o impele a escrever, e comprovando se a sua escrita se estende até às raízes e ao ponto mais profundo do seu coração. Simultaneamente, tem de se confessar, a si mesmo, se morreria caso fosse proibido de escrever. Bruno Morgado tem seguido este conselho com alguma flexibilidade, porém, os com seus critérios, parâmetros e tempos. Esta obra tem seguido este prognóstico e Bruno Morgado, também, na crista do jubileu, idealiza a amizade como o centro do universo, com o cerne da sua poesia entretida entre essa mesma amizade e cordialidade, acreditando que valeu a pena viver a vida, só para ter a honra de temer não poder ser feliz.
Este “Observador de Sonhos” é, como descreve a nota introdutória do livro, o lugar onde poderemos ver o mundo, o real e o imaginário, o concreto e o ficcional. Um mundo sem qualquer espaço e condição para algo que não seja a amizade como denominador comum e pressuposto essencial da amizade. A propósito, Bruno Morgado regressa a Cabo Delgado, a martirizada província do norte, com uma abordagem que minimiza a descrição de senso comum, mas, ao mesmo tempo, aprofunda uma perspectiva de maldição que não augura futuro de prosperidade e bem estar para a região. Uma metáfora que começa a ser assumida por todos os locais e que traduz bem tudo o que tem sido prometido e está a acontecer aos olhos de todos.
“Estávamos no ano 2023 na vila Karibu Kinada, quando sobre aquele povoado pairou uma nuvem de um verde carregado – bastante assustador. De repente um raio fulminante deu início a uma forte chuva de dinheiro que durou sete dias. Todos que puderam, naquele país, para ali se dirigiram. Entre agressões e tiros ninguém sobreviveu para contar a história – apenas o dono da nuvem que nem sequer ali queria ficar.”
Este pode ser o texto mais difícil de omitir, por sair do plano da maldição e se centrar na ausência de indicadores e modelos que trarão prosperidade à comunidade local. As famílias convivem entre promessas de riqueza e a violência que por lá se instalou na última década. Cabo Delgado continua sendo o mote preferido por escritores e músicos que, perplexos pela barbárie e pela incapacidade de se colocar um ponto final na situação, vai alimentando páginas de livros, artigos e canções. O autor não fica indiferente e apresenta a temática de forma indirecta, porém, com a mesma incidência e profundidade. Afinal Cabo Delgado também é Moçambique. Um slogan que os locais fazem como apelo, para que todos entendam que ninguém merece passar por tanto sofrimento e crueldade.
Um outro texto do livro que se divide em três partes, revisita os sonhos em ebulição, para além de abordar os textos do além e o quarto de histórias. Diz o autor: “Corriam rumores de que um misterioso feiticeiro tinha realizado um feitiço sobre aquele povoado e que já ninguém mais teria filhos. No mês seguinte, metade das mulheres estavam grávidas. Agora ninguém se lembra do feiticeiro.” Este poema espelha bem o testemunho de uma clarividência que está bem associada ao seu país e povo, tantas vezes, tão obscurantista, outras, trivial e crente de misticismos e futilidades. Crença e fé banalizadas até à exaustão.
Paralelamente, o livro chama a atenção pela rima métrica que, articulando ideias e assunções por parágrafos meticulosamente pequenos e sintéticos, encerra conteúdos profundos que poderiam ser ditos por frases mais longas. Uma espécie de fuga dos cânones de uma poesia mais solta e que procura colocar todas as ideias e conteúdos na mesma quadra, para que o leitor navegue na imaginação e reencontre outras interpretações que não sejam aquelas do próprio autor.
O “Observador de Sonhos”, de Bruno Morgado, editado pela Catálogos com antologias sobre novas vozes, encontrou o espaço adequado para se apresentar como novas vozes. Esse lugar onde se pode ver o mundo e que permite que se possa sonhar sem medo de tropeçar, apesar de todos os desafios do mundo de hoje. Este mundo de muitas contradições e hesitações, que, por vezes, parece não ter espaço para as angústias e essa sensação de vazios. A Catálogos se assume como uma editora não só preocupada com o ficcional e o imaginário, mas, sobretudo, com o concreto e com um país que procura se reconciliar e prosperar.
Bruno Morgado não escolheu a Catálogos, foi a editora que abriu as portas para essas novas vozes e ela própria defende a liberdade intelectual contra os avanços dos desmandos e de algum totalitarismo que perpassa os argumentos. Não será nunca fácil para a literatura ou qualquer das artes florescer em sociedades e tempos de grandes conflitos e muita incerteza. Escritores e outros agentes artísticos são, por vezes, vistos como rebeldes, mas desempenham também o papel de educar e informar o público, assumindo a missão de substituir discursos propagandísticos por narrativas mais realistas e coerentes.
Não existe poesia desligada da política, sobretudo nesta época de medos e ódios, e as lealdades de carácter político estão na consciência de todos. Como o Morgado mesmo diz: “Impiedosa a força com que aquele povo avançava rumo a liberdade. Cânticos e odes a um futuro melhor, a um país de homens e mulheres livres e unidos em torno das causas mais nobres que há. O direito a dormir bem. Será que dormimos? Um dia o Grande Rei aboliu a escravatura mental que proibia os cidadãos de amar sem remorsos, de amar sem limites”.
“Um bom escritor não sana as dúvidas — ele as honra”, como escreveu Oliver Harden. Em tempos de respostas fáceis e opiniões ruidosas, precisamos, mais do que nunca, de uma literatura que indaga, de uma escrita que, em vez de encerrar o pensamento, o inaugura. Ipsis verbis: “O significado perguntou um dia ao significante por que se achava tão importante. O significante respondeu que não queria se tornar tão insignificante quanto o significado.” Com efeito, o escritor não tem a pretensão de responder a tudo, tampouco de esclarecer ou tornar-se porta-voz de verdades absolutas – justamente para não transformar a linguagem em instrumento de doutrinação. “Observador de Sonhos”, entre certezas e incertezas, revela um sentido profundo e educa de forma subversiva, deslocando-se da zona de conforto e das convenções. É uma obra que instiga, mais do que resolve, e que busca envolver o leitor antes de qualquer tentativa de explicar. Por tudo isso, vale a pena lê-la – e carregá-la no bolso. (X)