Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

15 de Abril, 2025

Despedida melancólica de Mario Vargas Llosa

Escrito por

Em “História secreta de um romance”, o genial escritor peruano, Mario Vargas Llosa, que abandonou o mundo dos vivos no domingo, ao relatar como redigiu um dos seus mais belos e pungentes romances, intitulado “A Casa Verde”, diz o seguinte e eu cito: “Escrever um romance é uma cerimónia parecida com o “strip-tease”. Como a rapariga que, sob impudicos reflectores, despe as suas roupas e mostra, um por um, os seus encantos secretos, também o romancista desnuda em público a sua intimidade através dos seus romances. Há, evidentemente, diferenças. Aquilo que o romancista exibe de si mesmo não são os seus encantos secretos, como a rapariga desenvolta, mas demônios que o atormentam e obcecam, a parte mais feia de si mesmo: as suas nostalgias, as suas culpas e os seus rancores. Outra diferença é que, num “strip-tease”, a rapariga começa vestida e acaba despida. No caso do romance, a trajectória é inversa: o romancista começa por estar despido e acaba vestido. As experiências pessoais (vividas, sonhadas, ouvidas, lidas) que constituíram o principal estímulo para escrever a história mantêm-se tão maliciosamente disfarçadas durante o processo de criação que, uma vez terminado o romance, ninguém, muitas vezes nem o próprio romancista, consegue escutar facilmente esse coração autobiográfico que palpita fatalmente em toda a ficção. Escrever um romance é um “strip-tease” invertido e todos os romancistas são exibicionistas discretos.”

Mario Vargas Llosa, para além de ser um extraordinário fabulador, era também um brilhante ensaísta. Ao contar a história como escreveu, entre 1962 e 1965, “A Casa Verde”, uma história secreta, na qual ele desvenda o processo que o levou à criação desse belo livro, complexo e imaginativo, que se situa em dois lugares e planos diferentes – Piura, no extremo norte da costa e Andes – dois lugares e dois mundos históricos, sociais e geográficos, opostos e antagónicos de certo modo, há o gênio, o talento, e, sobretudo, a grande arte narrativa de Vargas Llosa.

Lembrei-me, esta noite, deste livrinho quase melancólico – “História secreta de um romance” -, que recolhe uma conferência, proferida na Washignton State University (Pullman, Washingtom, em 11 de dezembro de 1968) e escrita, como o escritor acautela, originalmente, num inglês rudimentar, mas que este haveria de reescrever em 1971. É fascinante ler este pequeno livro e habitar o universo, os demônios, as incertezas, as dúvidas, as nostalgias e as culpas do romancista. Nele, Vargas Llosa demonstra cabalmente a sua tese e o faz esplendidamente.

Mario Vargas Llosa é o último grande vulto do chamado “boom” latino-americano. Escreveu livros notáveis e recebeu inúmeros prémios, entre os quais o Nobel, que chegou em 2010 quando, provavelmente, ele já não o esperava. Desde “A Cidade e os Cães” (1962) a “Cinco Esquinas” (2016) escreveu livros inolvidáveis. Para mim, para além de “A Casa Verde”, que motivou aquela história bela e secreta, destacaria “A Conversa na Catedral” (1969), “A Tia Júlia e o Escrevedor” (1977), “A Festa do Chibo” (2000). Bastaria ele ter escrito “A Conversa na Catedral” e “A Festa do Chibo” para entrar no meu panteão. Mas devo-lhe, devemos-lhe muito mais.

Quando lhe deram o Nobel, “por sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens pungentes sobre a resistência, revolta e derrota dos indivíduos” (Academia Sueca dixit), lembrei-me, inevitavelmente, de um outro romancista, latino-americano, que o tivera em 1982, de quem fora grande amigo, sobre quem escrevera inclusive um livro culto e notável – “História de um Deicídio” – e com quem rompera em 1976: Gabriel García Márquez.

Em Julho de 2017, numa conversa sobre o colombiano que falecera três anos antes, Vargas falou de García Márquez e da amizade literária mais mítica da América Latina. Durante anos declinara comentar sobre o fim dessa amizade. Quem conhece Vargas Llosa e os seus escritos não encontrou, provavelmente, novidade nesse momento nostálgico. Lá estão os anos 50/60 de Paris, onde se descobrira como latino-americanos (a sua obra “História Afectiva da América Latina” é uma extraordinária evocação desse tempo e das suas personagens), lá estão as leituras, a influência de Sartre, o amor comum por Faulkner, a influência de Virgínia Woolf sobre o colombiano, o tempo de Barcelona (onde foram todos parar por influência de Carmen Balcells, a agente literária que os lançou), lá está a conversa sobre Cuba e as contradições que a revolução, Fidel e o caso Padilla incendiaram, o terramoto (termo meu) que o livro “Cem Anos de Solidão” provocou, entre outros.

Surpreendeu-me – e isso foi uma novidade para mim – a opinião dele sobre “O Outono do Patriarca”. Quando li este livro fascinou-me essa cartografia de poder que García Márquez fez, também é um grande mestre. Mario Vargas Llosa afirma sobre aquela obra: “Não gostei. Talvez seja um pouco exagerado dizer assim, mas achei a caricatura de García Márquez, como se estivesse imitando a si mesmo. O personagem não me parece nada verosímil. Os personagens de “Cem Anos de Solidão”, ao mesmo tempo que são desenfreados e além do possível, são sempre verosímeis, o romance tem a capacidade de torná-los verosímeis dentro do seu exagero. Ao contrário, o personagem do ditador me pareceu muito caricatural, um personagem que era como uma caricatura de García Márquez. Além disso, acho que que a prosa não funcionai, que nesse romance ele tentou um tipo de linguagem muito diferente da que tinha utilizado nos romances anteriores e não deu certo. Não era uma prosa que dava verosimilhança e persuasão à história que contava. De todos os romances que ele escreveu acho esse o mais fraco.”

Plinio Apuleyo de Mendonza sobre o “O Outono do Patriarca” perguntara a Gabriel García Márquez: “Disseste sobre “O Outono do Patriarca” coisas bastante paradoxais. Primeiro que é o mais popular de todos os teus livros do ponto de vista da linguagem, quando na realidade pareceria o mais barroco, o mais difícil…”

Gabriel García Márquez responderia: “Não, está escrito utilizando uma grande quantidade de expressões e refrãos populares de toda a zona do Caribe. Os tradutores às vezes ficam loucos tentando encontrar o sentido de frases que os motoristas de táxi de Barranquilla entenderiam de imediato, e com uma risada. É um livro raivosamente caribenho, costeño, um luxo que se permite o autor de “Cem Anos de Solidão” quando decide por fim escrever o que quer.”

A conversa, em “O Aroma da Goiaba” prossegue. Não importa transcrevê-la por inteiro. A opinião do Vargas Llosa, no entanto, desassossegou-me. Tenho que reler “O Outono do Patriarca”. Li-o demasiado jovem. Há meses reli “Ninguém Escreve ao Coronel” e exultei. Tinha-o o lido antes dos 20 anos. Para além desse livro sou um devoto de “O Amor nos Tempos de Cólera”, dos contos de “Os Funerais da Mamã Grande”, dos “Cem Anos de Solidão”, ou da “Crónica de uma Morte Anunciada”. Li com emoção a autobiografia “Viver para Contá-la”.

A amizade entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, que nascera de uma admiração mútua, cartografada antes por correspondência, antes de ambos se encontrarem, em 1967, no aeroporto de Caracas, foi interrompida em 1976. Um manto cobre as razões. Vargas escusa-se a falar disso. Nenhum deles esclareceu. Diz-se que quando Vargas ganhou o Nobel, Márquez terá admitido: “Cuentas iguales”. Como quem diz: estamos empatados. Verdade ou mito?

Alguém disse algures: durante anos se dizia que Mario era muito bom, mas o verdadeiro génio era Gabo (García Márquez). O seu Nobel, em 1982, assinalou essa ligeira superioridade. Entretanto, em 2010, ficaram empatados. Nunca mais se viram desde o rompimento. Como recebeu a notícia da morte de García Márquez? – quis saber Carlos Granés numa conversa recentíssima.

Mario Vargas Llosa respondeu: “Com pena certamente. É uma época que acaba, como com a morte de Cortázar ou de Carlos Fuentes. Eram escritores magníficos, mas também foram grandes amigos, e o foram num momento no qual a América Latina chamou a atenção do mundo inteiro. Como escritores, vivemos um período em que a literatura latino-americana era uma credencial positiva. Descobrir que, de repente, sou o último sobrevivente dessa geração e o último que pode falar em primeira pessoa dessa experiência é algo triste.”

Seja como for, ao ler esta revelação melancólica, assinalo que tanto um como o outro são dois notabilíssimos escritores. Pessoalmente, sinto-me dividido entre ambos, entre a perícia técnica e a capacidade fabular do peruano e a exuberante e torrencial narrativa do colombiano. Um era mais cerebral e o outro mais poético. Mas ambos praticavam o mesmo exercício de “strip-tease” de que falava Vargas Llosa na sua história secreta de “A Casa Verde”, que era curiosamente, uma casa de alterne.

Termino, este breve elogio ao peruano agora desaparecido, citando parte desta entrevista onde Mario Vargas Llosa traça o perfil literário de Gabriel García Márquez, sobre o qual não tenho resistência nem dificuldade em aceitar. Vargas Llosa: “Era extraordinariamente divertido, um óptimo contador de casos, mas não era um intelectual, funcionava mais como um artista, como um poeta, não estava em condições de explicar intelectualmente o enorme talento que tinha para escrever. Funcionava à base de intuição, instinto, palpite. Essa disposição tão extraordinária que tinha para com os adjectivos, com os advérbios e sobretudo com a trama e a matéria narrativa não passava pelo conceitual. Naqueles anos em que fomos tão amigos eu tinha a sensação de que muitas vezes ele não era consciente das coisas mágicas, milagrosas que fazia ao compor as suas histórias.”

Não sei, quando de Lima se noticia o seu declínio, o que pensar: se numa rapariga desenvolta, perante os impudicos reflectores, enquanto se despe, peça a peça, revelando os seus secretos encantos, ou, pelo contrário, se cogito no destino do último resistente do “boom” latino-americano, se me indago se temos a noção da magia, do milagre e do espanto que a sua extensíssima obra provoca, se penso nos seus demónios, nas suas incertezas e contradições, nas dúvidas e nostalgias, se penso no homem que defendia intransigentemente a liberdade, ou, simplesmente, se fico detido naquela imagem poderosa, lembrando a sua actuação longa e extraordinária, genial e incontornável, do contador de histórias, esse mestre imortal, subscrita no “strip-tease” do romancista que acontece inversamente.

Cidade do Cabo, 15 de Abril de 2025

Sir Motors