Não precisarei ir ao dicionário para entender o significado de violência. Tampouco consultar o que a literatura tem desenvolvido em vários tratados e escritos sobre a violência. Nesta pouca caminhada, que na verdade já se faz longa, aprendi o BÊ-A-BA da violência desde cedo.
Violentaram-me quando era ainda um infante em tenra idade e senti na flor da pele o recrudescer de uma nova ordem social. Nos finais da década 1980 e primórdios dos anos 90, já havia os famosos gwadjissas, designação para os amigos do alheio que sem pestanejar roubavam e batiam. Ir à escola e voltar em segurança era um acto heróico e até de sorte.
Não sei quando nem onde ao certo eclodiram as famosas gangues que grassaram Maputo. Foi um período em que a violência era cartão de visita para ser aceite na sociedade já decadente.
Álcool, estupefacientes, catanas, tacos de baseball, correntes, punho inglês, e outros objectos cortantes eram as ferramentas mais comuns para colocar regras num submundo desregrado.
As fronteiras eram divididas entre as gangs da zona nobre – Gotcha, Skinhead da Maxaquene, Fantastic, Untouch-Man, e as da zona emergente Skinhead da Malhangalene, Ronil Mapandza, Guindza, etc. A sucessão e manutenção do terror era tal que tínhamos as gangs dos mais velhos – os chamados séniores e depois, criaram-se as gangues juniores (As Mini skin, mini Gotcha, mini alguma coisa). E a cidade polarizou-se e novas periferias surgiram em defesa da violência entre jovens incautos e sem destreza para escolher o bem e o mal – parece que era obrigatório praticar o terror para ser e estar na moda.
Cruzar um e outro polo da cidade era um risco tremendo, e cedo aprendemos a viver camuflados, cedo aprendemos a ser camaleões de nós mesmos, camaleões de lá e de cá. Era uma luta dupla pela aceitação e inclusão no submundo da violência e do crime e ao mesmo tempo pela negação daquilo que se sabia ser a margem da lei.
As gangs evoluíram sob olhar impávido das autoridades. Uns profissionalizaram-se na arte de matar, violar, violentar e acabaram na BO., outros simplesmente viram que aquele mundo era apenas fashion na TV.
Depois desta febre, a minha cidade não mais foi a mesma. Depois das gangues veio a ressaca delas, veio também uma espécie de resultado delas, com violência gratuita, desordem estruturada, crime organizado e associações para delinquir de forma agrupada. Roubar, aterrorizar e assaltar os fofinhos era palavra de ordem. Era na Manyanga, na Josina ou no Estrela, na estátua, na bota alta, no Jardim dos Madjermanes ou no ponto final, era uma questão de agradecer e benzer a cada check point passado e a cada circunscrição que tinha os seus ladrões e donos. Veio a serie brasileira “A Turma do Gueto” com os Jamantas e Shaquilas da vida a inspirarem uma adolescência sem horizonte, sem pensamento critico e ávida em ser como os de lá do outro lado. Os termos malandro e malandragem viraram sinónimo de ousadia e esperteza.
O tempo passou e, uma década separou a efervescência dos anos 90 da incerteza dos anos 2000. A adolescência e a juventude cruzaram-se em espaços de convergência social entre o passado e presente. Veio a pressão da época e o cliché de estudar em escolas e colégios renomados __ entre o ensino público ainda com alguma, na verdade pouca qualidade, e o privado – apanágio de alguns, muito poucos. Foi a segunda ou a terceira violência que sofri e talvez que sofremos, e que nos ajudou a olharmos para a realidade de forma diferente. Uns foram para lá e outros (nós) ficamos cá. E como os telefones celulares ainda eram um luxo, a comunicação era com recurso aos fixos e aos orelhões da TDM, muitas amizades e amores perderam-se. Foi também, uma forma de transição violenta.
Anos passaram-se. Uns especializaram-se em algo, e outros especializaram-se em nada. E também foi violento – ver os tais donos da famosa Jimmy Dole, dos tamancos, dos quadrados e das calcas boca de sino apertadas, aqueles que paralisavam o antigo SPLASH na COOP, e dominavam o antigo mini-golf, já transformados e prostrados ao tempo.
Fui violentado também quando vi que depois da luta para frequentar o ensino superior, tinha de lutar para ter emprego. E doeu aceitar que era um instruído desempregado e meio frustrado.
Nenhuma novidade até aí, pois era a realidade do país. Tal realidade só piorou nos anos que se seguiram. O canudo e a boa formação superior já não eram suficientes para abrir portas do mercado; era necessário ter costas quentes e um cartão encarnado que equivalia a um bilhete de identidade. Parecia prenúncio de tempos difíceis para a pátria amada, tempos de passagens e aprovações automáticas nas escolas, de massificação do Ensino Superior, e um autêntico escangalhar do já escangalhado.
Repudiámos, mas não condenámos a violência que fomos sofrendo ao longo dos tempos, e por incrível que pareça replicamos a mesma, e por vezes em proporções mais alarmantes. Vamos fazer das gerações vindouras algo pior do que fizeram com a nossa.
A violência em todas suas formas só gera mais violência, e disto temos provas e evidências. A violência nem sempre é a física; ela pode ser psicológica, pode ser também a privação, a carência, as desigualdades, a exclusão e a ausência, etc.
A falta de escolas, de hospitais, de comida são uma forma de violência que aprofundou o fosso entre os vários subúrbios urbanos e rurais, das novas periferias nascidas nas cidades que hoje temos.
A falta de diálogo é uma forma de violência também. E é preocupante para quem já experimentou o amargo da guerra civil, do conflito e da instabilidade político-social. A incapacidade de dialogar e aceitar as diferenças é um acto de violência, talvez o mais violento que se pode praticar entre alas mais esclarecidas e instruídas.
Violentámos o povo com a fome, com a decadente saúde, educação, o desemprego, com a falta de habitação, com a falta de transporte, falta de segurança, falta de acesso a justiça, e muito mais. Violentámos o povo com balas, com gás, com prisões, com violações aos direitos fundamentais, e retiramos a pouca dignidade que ainda restava. Retirámos depois a capacidade de sonhar e admirar o sol, as estrelas e de produzir um futuro imaginário. E com isto, estamos a matar parte de nós, parte daquilo que é realmente e inexoravelmente nosso – a moçambicanidade.
Sobre a nossa apatia, sobre a nossa cobardia, nosso medo e nossa indiferença, são pontos que o amanhã há-de nos questionar.
Em: Respaldos da minha geração