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8 de Abril, 2025

Infra-estrutura Alimentar: o Activo Estratégico Mais Ignorado do Mundo

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INTRODUÇÃO

Num mundo marcado por guerras, choques climáticos e cadeias logísticas frágeis, a segurança alimentar tornou-se numa prioridade estratégica global. África, com 60% das terras aráveis ainda por explorar, está no centro desta nova equação.

Contudo, o continente perde até 30% da sua produção agrícola após a colheita — não por falta de sementes ou terra, mas por falta de silos, frio, estradas e coordenação logística. A consequência é clara: alimentos desperdiçados, rendimento perdido, economias estagnadas.

Este artigo mostra como essa fragilidade pode ser convertida numa das oportunidades mais negligenciadas — e promissoras — do nosso tempo. Com base em dados, casos concretos e análises rigorosas, apresenta uma tese simples: infra-estrutura pós-colheita é hoje o ponto de alavanca mais eficaz para desbloquear valor, inclusão e estabilidade em África.

PARTE I — O PROBLEMA INVISÍVEL: PERDAS, PARADOXOS E POTENCIAL DESPERDIÇADO

Capítulo 1 — Uma Crise Invisível, Mas de Dimensão Continental

A cada ano, África perde cerca de 30% da sua produção agrícola no período pós-colheita, uma tragédia económica e social que representa um desperdício de alimentos na ordem dos US$ 4 mil milhões anuais só na África Subsariana (FAO, 2023). Trata-se de alimentos que foram plantados, cultivados, colhidos, mas que nunca chegam ao consumidor — sendo destruídos por pragas, humidade, maus métodos de armazenagem ou ausência de transporte básico.

Num continente onde a fome afecta mais de 280 milhões de pessoas, este nível de perda é mais do que ineficiência — é um erro sistémico com consequências humanitárias e económicas incalculáveis.

Capítulo 2 — O Paradoxo Africano: Terra Fértil, Estômagos Vazios

A África Subsariana possui 60% das terras aráveis inexploradas do planeta (Banco Mundial, 2021). A diversidade climática, a fertilidade dos solos e o número crescente de jovens agricultores colocam o continente na linha da frente do potencial produtivo agrícola mundial.

Paradoxalmente, África importa mais de US$ 45 mil milhões por ano em produtos alimentares e é altamente vulnerável às flutuações de preços e cadeias globais. A razão é simples: sem infra-estruturas de armazenamento, frio, transporte e digitalização, a abundância converte-se em perda.

Capítulo 3 — Moçambique: Um Espelho Claro do Problema e da Solução

Moçambique é um microcosmo do fenómeno africano. Em 2023, o país colheu mais de 3 milhões de toneladas de cereais (IAI, 2023), mas continua a perder entre 20% a 30% da sua produção agrícola após a colheita — chegando a 45,8% nas leguminosas e arroz em províncias como Sofala (IAI, 2023; Diário Económico, 2021).

Estes números traduzem-se em centenas de milhões de dólares perdidos todos os anos, enquanto comunidades rurais enfrentam insegurança alimentar e mercados ficam por abastecer. Pior ainda: apenas 59% da produção agrícola é efectivamente escoada para o mercado (IAI, 2023), o que significa que quase metade da economia agrícola não se monetiza — não gera rendimento, nem impostos, nem investimento.

Segundo o Inquérito Agrário Integrado de 2023, as perdas variam entre 13% e 30%, com destaque para o milho, arroz, mapira e mexoeira. Embora estes dados oficiais sejam alarmantes, a literatura científica recente reforça que o país carece de soluções sistemáticas para armazenagem e escoamento.

Um estudo académico sobre o milho, publicado em 2020, confirma que as perdas pós-colheita são elevadas, mas ainda subavaliadas pela investigação nacional (Come et al., 2020). Já um estudo técnico no norte de Moçambique demonstrou que sistemas tradicionais de armazenagem levam a perdas superiores a 30%, enquanto tecnologias melhoradas, como silos metálicos ou sacos herméticos, podem reduzi-las para menos de 2% (Besson, 2014).

Gráfico 1 – Perdas Pós-Colheita por Cultura em Moçambique (%)
Este gráfico apresenta as perdas médias nas principais culturas alimentares em Moçambique. Os dados foram obtidos do Inquérito Agrário Integrado de 2023, reforçados por estudos científicos recentes que comprovam a elevada taxa de desperdício agrícola no país, principalmente por falta de infra-estrutura de armazenagem e escoamento.

Capítulo 4 — A Raiz do Problema: Ausência de Infra-estrutura Pós-Colheita

Estudos conduzidos no Ruanda e Etiópia demonstram que os principais factores de perda incluem:
• Armazenamento precário sem ventilação ou controlo de temperatura;
• Transporte deficiente, muitas vezes feito em condições improvisadas;
• Ausência de redes de frio para conservação de hortícolas, peixe e carne;
• Infestação por pragas e exposição à humidade (Robertson, 2019; Agunga & Sleshi, 2018);
• Fraca integração com plataformas de mercado digital (Morepje et al., 2024).

As mesmas causas identificadas nesses estudos aplicam-se a Moçambique, conforme relatado nos dados da avaliação pós-colheita do Ministério da Agricultura (2023).

Capítulo 5 — A Solução Está em Três Palavras: Frio, Silo e Digital

A literatura científica convergente indica que infra-estrutura básica e descentralizada de pós-colheita pode reduzir perdas em até 40% e gerar retorno directo em menos de cinco anos (Swai et al., 2019; IFC, 2021).

As três áreas de impacto mais elevadas são:

• Cadeias de frio solares: já testadas com sucesso no Quénia e Nigéria, com retorno de 2 a 3 anos em frutas e hortícolas (GCA, 2023)
• Silos herméticos e cooperativos: que reduzem em até 98% o risco de pragas e toxinas como a aflatoxina (Kimatu et al., 2012)
• Plataformas de e-commerce agrícola: como as usadas na Índia e Ruanda, que aumentam em 30% o rendimento do agricultor ao reduzir intermediários e permitir venda directa com rastreabilidade (Morepje et al., 2024)

PARTE II — ESTRATÉGIAS GLOBAIS, BENCHMARKS E OPORTUNIDADES DE CAPITAL

Capítulo 6 — O Que Já Funciona: Lições do Sul Global

Modelos replicáveis de êxito em países emergentes provam que a infra-estrutura de pós-colheita não é um sonho teórico — é um negócio sólido.

Na Índia, a implementação de silos cooperativos e plataformas digitais de rastreabilidade permitiu reduzir o tempo de escoamento em 40% e triplicar o acesso a microcrédito rural entre agricultores familiares, segundo o Banco Mundial (2020).

No Gana, o programa “One District, One Warehouse” construiu mais de 80 armazéns em zonas agrícolas, reduzindo perdas pós-colheita em cerca de 30% e aumentando o rendimento líquido de pequenos produtores em até 22% (Robertson, 2019).

No Brasil, cooperativas agrícolas apoiadas por fundos logísticos e parcerias público-privadas conseguiram atingir retornos entre 14% a 17% ao ano em projectos de armazenamento e distribuição (Warnholz, 2008).

Capítulo 7 — A Tese de Investimento: Como Estruturar uma Oportunidade Rentável

De acordo com diversos estudos empíricos, nomeadamente na Tanzânia, Nigéria e Quénia, investimentos entre US$ 5 a US$ 25 milhões em silos, armazéns refrigerados e transporte rural descentralizado podem gerar retornos internos entre 12% a 20% ao ano — sobretudo em cadeias de frutas, legumes e pescados (Makule et al., 2022; Rutta HYPERLINK “https://consensus.app/papers/understanding-barriers-impeding-the-deployment-of-rutta/8243d59ce9535411b2a5f7a0d3d33d7e/?utm_source=chatgpt” HYPERLINK “https://consensus.app/papers/understanding-barriers-impeding-the-deployment-of-rutta/8243d59ce9535411b2a5f7a0d3d33d7e/?utm_source=chatgpt” HYPERLINK “https://consensus.app/papers/understanding-barriers-impeding-the-deployment-of-rutta/8243d59ce9535411b2a5f7a0d3d33d7e/?utm_source=chatgpt”, 2022).

Gráfico 2 – Retorno Estimado por Tipo de Investimento
De acordo com estudos realizados em ambientes rurais da África Subsariana, o retorno estimado para investimentos em silos herméticos varia entre 12% a 15%, em frio descentralizado entre 16% a 20%, e em digitalização logística entre 14% a 18%. O gráfico seguinte apresenta a média dos retornos esperados com base em evidência empírica multi-país.”

Estudos em Moçambique indicam que 40% a 50% das perdas em hortícolas e leguminosas ocorrem na ausência de frio ou armazenamento básico — e que a simples introdução de sacos herméticos e pequenas câmaras frias solares pode gerar retorno em menos de dois anos (Channa et al., 2022).

Capítulo 8 — Capital Catalítico: Reduzir o Risco, Aumentar o Impacto

Para investidores internacionais, o grande entrave é o risco. Mas esse risco pode ser mitigado com instrumentos já testados como blended finance, seguros climáticos, contratos de offtake e garantias de primeiro risco.

Estudos recentes mostram que investimentos agrícolas estruturados com participação de governos, agências multilaterais e o sector privado reduzem a percepção de risco até 45% em relação ao modelo tradicional de project finance (Nkambule, 2016).

Moçambique já possui um instrumento operativo: o Fundo Catalítico para Inovação e Demonstração (FCID), que oferece cofinanciamento até 70% para projectos de agro-logística e inovação rural nas províncias de Manica, Sofala, Gaza e Inhambane (fundocatalitico.gov.mz).

Capítulo 9 — A Nova Geopolítica Alimentar: Segurança é o Novo Petróleo

A guerra na Ucrânia, as tensões comerciais EUA-China e a volatilidade climática colocaram o alimento no mesmo patamar estratégico da energia. O World Economic Forum (2024) afirma que “a segurança alimentar é hoje tão crítica quanto a segurança energética”.

Países como o Egipto, Arábia Saudita e Bangladesh estão a constituir reservas alimentares nacionais, e procuram diversificar os seus fornecedores. África, com terra, sol e proximidade logística, entra neste novo mapa como fornecedor de equilíbrio geoestratégico.

 

Capítulo 10 — A Disputa Silenciosa: China, Índia, Turquia e o Espaço Logístico Africano

Enquanto o Ocidente hesita, outras potências avançam. A China já financiou mais de US$ 10 mil milhões em infra-estrutura agrícola em África nos últimos cinco anos, incluindo silos, redes ferroviárias e parques logísticos (Robertson, 2019).

A Índia apoia a digitalização de cadeias pós-colheita no Quénia, Nigéria e Gana, e a Turquia instalou hubs logísticos agroalimentares em Angola e Senegal. Esta disputa é real — e África, desta vez, não é o prémio — é o palco.

Capítulo 11 — A Oportunidade do Ocidente: Investir, Antes que Seja Tarde

A ausência de acção do capital ocidental em cadeias alimentares africanas não é um reflexo de falta de oportunidade — é um erro de leitura estratégica. Estão disponíveis garantias multilaterais (IFC, AfDB, GCF), fundos de impacto (FinDev Canada, Norfund) e projectos em operação.

A janela para capital inteligente e paciente ainda está aberta. Mas não estará para sempre.

PARTE III — TECNOLOGIA, CLIMA, ESCALABILIDADE E A REDEFINIÇÃO GEOPOLÍTICA

Capítulo 12 — Tecnologia Africana para um Problema Africano

A inovação no sector agrícola africano não virá exclusivamente de fora. De facto, as soluções mais escaláveis e resilientes estão a nascer no próprio continente. Plataformas como a Twiga Foods (Quénia), AgUnity (Nigéria) ou FarmCrowdy (Gana) já digitalizaram o acesso a mercados e microfinanciamento para dezenas de milhares de pequenos produtores.

Estudos recentes mostram que a integração de aplicativos móveis, pagamento digital e gestão de stocks em tempo real pode reduzir perdas em até 40% em zonas com baixa infra-estrutura física (Morepje et al., 2024).

Capítulo 13 — Infra-estrutura como Adaptador Climático

Infra-estrutura pós-colheita não serve apenas para proteger o alimento — serve também para proteger o ambiente e as comunidades. Armazenagem adequada, secagem solar e transporte optimizado reduzem as emissões de CO₂ (dióxido de carbono) e diminuem a necessidade de desmatamento para compensar perdas.

Para além da dimensão económica, a modernização da infra-estrutura pós-colheita tem impacto directo na mitigação climática. Cada tonelada de alimento que não se perde representa emissões evitadas. Estima-se que o desperdício alimentar represente até 10% das emissões globais de CO₂ equivalente (FAO, 2022). Em África, onde grande parte das perdas ocorre logo após a colheita, a armazenagem eficiente e as cadeias de frio solares constituem uma das intervenções mais eficazes para a redução do impacto ambiental da agricultura.
Além disso, centros logísticos rurais podem funcionar como pontos de resposta rápida em crises climáticas, fornecendo sementes, fertilizantes e alimentos em casos de emergência.

O Grupo de Resiliência Climática Global (GCA, 2023) defende que “investir em cold chains descentralizadas é uma das intervenções mais custo-eficientes em adaptação climática rural”.

Capítulo 14 — A Escalabilidade Está na Essência da Oportunidade Agrícola Africana

Moçambique, com os seus corredores de Nacala, Beira e Maputo, serve de piloto perfeito. Mas o modelo é replicável. Segundo a FAO, plataformas logísticas regionais partilhadas — com silos, frio e acesso digital — poderiam servir até 150 milhões de pequenos produtores em África com um investimento inferior a US$ 10 mil milhões.

Os investimentos em infra-estrutura agrícola não apenas geram retorno económico — amplificam impacto social directo em zonas rurais. O gráfico abaixo mostra uma estimativa do número de beneficiários rurais que podem ser alcançados por cada tipo de infra-estrutura, por cada tranche de investimento de 5 a 10 milhões de dólares.

Gráfico 3 – Investimento vs. População Impactada

O gráfico abaixo compara o investimento necessário em diferentes tipos de infra-estrutura agrícola com o número de beneficiários directos em zonas rurais. Demonstra como investimentos relativamente modestos podem impactar milhares de vidas, gerar rendimento e criar resiliência local.

O que falta não é tecnologia nem prova de conceito. Falta capital com visão, aliado a execução local de confiança.

Capítulo 15 — O Dividendo Social: Inclusão, Emprego e Coesão

Investir em cadeias alimentares não só gera retorno financeiro, como impacto directo em estabilidade social. Em Moçambique, tal como em vários países da SADC, mais de 70% da força agrícola é composta por mulheres, sobretudo no pós-colheita.

A construção de hubs logísticos rurais pode gerar:
• Entre três a sete empregos directos por cada US$ 100.000 investidos;
• Redução da migração forçada rural-urbana;
• Aumento da autonomia financeira feminina (Swai et al., 2019).

A agricultura, quando conectada à infra-estrutura, é ferramenta de paz, não apenas de produção.

Capítulo 16 — África como Celeiro do Canadá: Uma Aliança Estratégica Emergente

Com o agravamento das tensões comerciais com os EUA e a dependência de fornecedores alimentares instáveis, o Canadá procura parceiros agrícolas fiáveis e escaláveis. África — e em particular a África Austral — oferece não só diversidade de culturas, como acordos bilaterais amigáveis.

Moçambique já exporta leguminosas e gergelim para mercados asiáticos e do Golfo. Expandir esta relação para o Canadá permitiria acesso a um mercado exigente, mas com forte interesse em ESG e parcerias duradouras.

A FinDev Canada, agência canadiana de investimento de impacto, considera a agro-logística africana um sector prioritário para 2024–2028. (Canada Africa HYPERLINK “https://canadaafrica.ca/” HYPERLINK “https://canadaafrica.ca/” HYPERLINK “https://canadaafrica.ca/”Chamber HYPERLINK “https://canadaafrica.ca/” HYPERLINK “https://canadaafrica.ca/” HYPERLINK “https://canadaafrica.ca/”, 2023).

Capítulo 17 — Conclusão: O Investimento Que Ainda Não Tem Preço

África carece de soluções concretas: armazenagem, estradas e tecnologia pós-colheita. Precisa de investidores que vejam valor antes da valorização. Que percebam que a comida não é apenas consumo – é poder, estabilidade e soberania.

“No xadrez geoeconómico do século XXI, África não é um peão. É a casa central do tabuleiro. Quem a ignorar, não perde apenas uma jogada — perde o jogo.”

*Denise Cortês-Keyser, assessora responsável por África no Global Gas Centre, em Genebra, é especialista em mineração, petróleo e gás, energia, finanças e atração de investimentos, liderando iniciativas estratégicas para fortalecer África no cenário global.

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