Num país em busca de caminhos sólidos para o crescimento sustentável, é urgente encarar a despesa pública não apenas como um acto contabilístico, mas como uma força de transformação da economia. Este artigo lança luz sobre um dos maiores trunfos da política económica ao alcance do Estado moçambicano: o poder das compras públicas. A proposta é clara, pode-se tornar o Estado um comprador estratégico que impulsione cadeias produtivas locais, com base num sistema de gestão financeira moderno, transparente e orientado para o desenvolvimento.
O ponto de partida é simples, mas poderoso: onde o Estado compra, o mercado cresce. Se o Estado utilizar os seus recursos para adquirir produtos da indústria nacional, estará a dinamizar a produção, gerar empregos, promover a transferência de tecnologia e reduzir a dependência externa. Esta não é uma ideia nova, nem é exclusivamente minha, mas continua subaproveitada em Moçambique. Por isso, reforço-a nesta oportunidade que me foi gentilmente concedida pela “Carta da Semana”.
A industrialização continua a ser um imperativo para a inclusão económica. Porém, não pode depender exclusivamente do investimento privado. O Estado, com a sua escala e capacidade de planificação, pode desempenhar um papel determinante na reanimação de sectores como a agro-indústria, a metalomecânica, a construção civil e as tecnologias limpas. Mas, para tal, é necessário alinhar os instrumentos de política pública, entre os quais se destaca o e-SISTAFE.
Os Relatórios e Pareceres do Tribunal Administrativo, entre 2019 e 2022, revelam um padrão preocupante: a despesa destinada a sectores produtivos varia em demasia. Em 2019, apenas 3,9% foi alocada a “Emprego, Produtividade e Competitividade”; em 2020 subiu para 44,5%, mas em 2022 caiu novamente para 15,8%. Essa instabilidade revela a ausência de uma estratégia industrial consistente. Projecções recentes do Banco Mundial (2024) alertam ainda para os efeitos da desaceleração económica global, o que exige mais previsibilidade e eficácia na alocação da despesa pública.
Além disso, a componente de investimento do Orçamento do Estado que é essencial para a industrialização tem sido sistematicamente baixa, mantendo-se abaixo dos 25% da despesa total, e com forte dependência de financiamento externo. Em 2021, apenas 22,7% da despesa foi destinada ao investimento, e apenas 1,3% chegou às autarquias, onde há maior potencial para dinamizar pequenas indústrias locais. Essa centralização limita a capacidade de actuação territorial, sobretudo em zonas rurais, onde persistem baixos níveis de conectividade digital e fraca presença institucional.
Importa, no entanto, reconhecer que esta não é uma proposta idealista. A utilização das compras públicas como alavanca para a industrialização envolve riscos bem conhecidos, tais como corrupção, ineficiência, sobrepreço, sobrefacturação e captura do Estado por interesses privados. Por esta razão, qualquer política de conteúdo local deve ser acompanhada de mecanismos robustos de verificação da qualidade, auditoria independente, cláusulas de performance e participação activa da sociedade civil. É igualmente fundamental reconhecer os actuais limites institucionais, incluindo a fragmentação de responsabilidades entre ministérios, a burocracia excessiva e a escassa capacitação técnica nas UGEAs.
Outra crítica necessária recai sobre a confiança excessiva no e-SISTAFE como solução isolada. Embora seja uma ferramenta importante, o sistema está longe de ser suficiente. A sua actual configuração não mede o impacto económico da despesa, não distingue fornecedores nacionais de importadores, não gera inteligência estratégica, nem oferece transparência ao cidadão comum. Em suma: controla o fluxo de dinheiro, mas não orienta a sua utilização com base em objectivos de transformação. Além disso, a proposta de modernização ignora desafios operacionais como a fraca infra-estrutura digital em zonas periféricas e a falta de interoperabilidade com outros sistemas governamentais.
Ainda assim, o e-SISTAFE pode ser parte da solução. Com reformas bem orientadas como a introdução de indicadores de desempenho económico (KPIs), painéis sectoriais, simulações orçamentais e integração com plataformas de compras públicas, o sistema pode evoluir de uma mera calculadora fiscal para um verdadeiro radar de desenvolvimento. A experiência internacional oferece referências úteis: no Brasil, o Programa Nacional de Apoio às Microempresas impulsionou o fornecimento local por meio de cláusulas contratuais específicas; na África do Sul, políticas de aquisição preferencial beneficiaram PMEs negras, contribuindo para a inclusão económica.
É igualmente necessário reconhecer os erros do passado. As Zonas Económicas Especiais (ZEEs), criadas com grandes expectativas, falharam em gerar encadeamentos produtivos relevantes, devido à ausência de estratégias locais, à fraca ligação com as PMEs e à limitada governança institucional. Aprender com esses fracassos é indispensável para garantir que novas políticas não repitam os mesmos erros.
Por fim, importa definir metas realistas e graduais. Um exemplo seria o compromisso de aumentar, em 10% ao ano, a percentagem de compras públicas destinadas a empresas nacionais com produção local, com base em dados verificados e metas sectoriais claras. A academia e as escolas de gestão e negócios nacionais devem contribuir com investigação aplicada e formação de gestores públicos em compras estratégicas. O sector privado deve exigir mais transparência e previsibilidade. E os doadores, por sua vez, devem alinhar os seus recursos a objectivos estruturais de industrialização inclusiva.
Moçambique não precisa reinventar a roda. Precisa alinhar melhor os seus instrumentos, integrar tecnologia com política pública e substituir decisões administrativas por escolhas estratégicas. Para que cada metical gasto pelo Estado se transforme em mais produção nacional, mais emprego, mais justiça social e mais futuro.