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24 de Março, 2025

Da Vida à Palavra: Um Convite à Leitura de “Crónicas, Memórias e Vivências”

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“A partir do momento em que tomei consciência que ressono alto, tenho vergonha e quase não durmo em transportes públicos para não incomodar os outros passageiros (…) Comecei a ter medo de dormir para não incomodar. Até agora, não sei dizer se eram vozes reais ou se eu estava a ficar paranóica” (p. 176-177)

Há livros que ultrapassam o território das palavras. Eles se tornam espelhos onde a sociedade revisita o seu passado, reflecte sobre as suas lutas e reencontra os sonhos que sobraram pelo caminho. “Crónicas, Memórias e Vivências”, de Irene Mendes, é uma dessas obras raras, que não apenas narram, mas também convocam. Este livro é, evidentemente, uma janela aberta para a alma de uma geração que ousou trocar os próprios sonhos por um ideal maior: o projecto, ainda inacabado, de construção do Estado moçambicano. Ele é, em essência, uma extensão da “Geração 8 de Março” – aquela que, como sementes lançadas ao vento, germinou no solo fértil e desafiador de Moçambique pós-independente.

Diz um célebre provérbio africano: “Até que os leões tenham os seus próprios historiadores, as histórias de caça glorificarão o caçador”. Neste livro, Irene Mendes dá voz ao leão. As suas crónicas falam do que foi vivido e do que ainda pulsa, das memórias que insistem em permanecer e do silêncio que, finalmente, se rompe. Não são apenas histórias; são testemunhos, fragmentos de uma vida e de uma sociedade que se entrelaçam, revelando a história colectiva de um país ainda em construção, tantas vezes adiado.
A autora, uma professora apaixonada pela língua portuguesa, mergulha de corpo e alma em cada palavra. Irene Mendes não escreve por escrever; ela constrói. As suas crónicas são a prova de que o género não apenas resiste, mas se afirma, desde sempre, como a base da literatura moçambicana. Tal como a mandioca, que demanda paciência para amadurecer e alimentar, as crónicas de Irene exigem tempo e reflexão. Mas, quando prontas, nutrem profundamente, trazendo a essência de um povo, as suas lutas, alegrias e dilemas.

Este livro, em particular, segue um roteiro como um filme de ficção que propicia momentos de pausa, emoção, comoção e indignação. Apresenta críticas sociais incisivas sobre o status quo da política moçambicana, ilustradas por episódios quotidianos que destacam hipocrisias e ineficiências institucionais. Exemplos incluem burocracias hospitalares, a corrupção endémica, e o distanciamento entre promessas e ações governamentais.

Traz homenagem a amigos e familiares falecidos, revelando o impacto de perdas pessoais e a importância das conexões humanas num mundo que crescentemente mergulha numa profunda e complexa crise de valores.

Evoca memórias sobre a relação da autora com os pais, destacando o amor, as vicissitudes da paternidade, e os desafios do envelhecimento e da perda.

Explora reflexões introspectivas sobre envelhecimento, solidão e mortalidade, incluindo episódios pessoais marcantes, expondo questões sociais e emocionais que passou.
O livro é, por conseguinte, uma coletânea de textos que vai além da crítica social – embora ela esteja sempre presente, de forma afiada, questionando as estruturas políticas, sociais e culturais de Moçambique. Ele é, também, uma meditação filosófica sobre a vida, a morte e os laços que nos unem. Irene reflecte, de modo introspectivo, sobre os amigos e familiares que partiram, sobre a sua família e sobre os dilemas existenciais que a atravessam como mulher, educadora e cidadã. Cada texto é um convite para revisitar épocas, entender contextos e, sobretudo, dialogar com os ecos do passado.

Gostaria de fazer menção a dois dos inúmeros textos que me deixaram incrivelmente impressionado. O primeiro, intitulado “Ressonanço”, aborda as experiências e reflexões da autora sobre o seu problema de ronco (ressonanço). Inicialmente, ela admira a despreocupação de um homem que ronca alto em público, contrastando-a com a sua própria vergonha. A sua percepção mudou após críticas da sua filha e de vizinhos, o que gerou ansiedade e uma busca incessante por soluções, desde métodos tradicionais a receitas caseiras. Apesar de várias tentativas frustradas, como dormir em diferentes quartos ou usar cebola como remédio, ela encontra alívio apenas ao viver em uma casa térrea. Este relato mistura humor, autocrítica e uma análise social, destacando a falta de privacidade e os tabus em torno do ronco. Espero que o problema tenha sido definitivamente resolvido!
“Num determinado dia do ano 2016, ouvi, entre o dormir e o acordar, os meus vizinhos a murmurarem por eu ter horários desregrados e por ressonar demasiado alto. Às vezes, devido a esses comentários, até penso que devo falar ou mesmo gritar ao dormir. Como dizia, ouvi, dentre vários murmúrios, frases como “ela é um xigono (feiticeira)”, “devíamos fazer um abaixo-assinado para ela sair daqui”, “ela vai morrer sozinha”. Quando ouvia esses comentários, ficava revoltada pela falta de privacidade que nós os moçambicanos temos: não se pode ter um sono profundo que se reflecte no ressonanço. Em África, mais especificamente em Moçambique, os nossos vizinhos, em vez de dormirem, estão atentos para ouvirem o que se passa na casa ao lado” (p. 180).

No segundo texto, intitulado “Sonhos”, a autora descreve uma série de sonhos carregados de simbolismo, envolvendo entes falecidos, especialmente a sua avó e o seu pai. Esses sonhos variam entre reencontros emocionantes, mensagens enigmáticas e situações estranhas. Ela interpreta alguns deles como visitas protectoras do seu pai e outros como mistérios que não consegue decifrar. Pesadelos ocasionais também aparecem, com figuras fantásticas e acontecimentos desconcertantes. Os relatos reflectem uma conexão emocional profunda com os familiares e um esforço constante para entender o significado dos sonhos.

“Encontrava-me numa zona rural, em Gaza, na companhia de outras pessoas. De repente, na nossa direcção, apareceu um grupo de pessoas, uma mulher tinha “apanhado” um homem em flagrante. Ele estava vestido em um uniforme verde-claro, como o de alguns guardas ou estivadores. A mulher segurava os pulsos do homem, ao mesmo tempo que lhos queria amarrar com uma corda. Aos gritos, ordenava-lhe que ele entregasse o que trazia nas mãos. O homem não reagia.

De repente, fez-se um círculo à volta do homem preso e da mulher que o aprisionara. Depois de algum esforço, a mulher vitoriosa dirigiu-se ao grupo onde eu e a minha mãe estávamos. Trazia nas mãos um embrulho de caqui, todo sujo e amarrotado que tinha algo escrito à esferográfica vermelha. Dirigiu-se directamente a mim e entregou-me o tal embrulho. Vi com alguma dificuldade que o papel tinha algo escrito. Depois de algum esforço, consegui ler: “Irene da Conceição Mendes”, o meu nome” (p. 221)

Prosseguindo, eu acredito que “Crónicas, Memórias e Vivências” não é apenas uma obra literária; é uma convocação. Um chamado àqueles que, como Irene, pertenceram àquela geração que carregou nos ombros o peso da construção nacional. Este livro exige que os segredos, as dores e as narrativas não sejam levados para os túmulos. Como dizia Sócrates, o célebre filósofo, “uma vida não examinada não merece ser vivida”. Irene Mendes examina, efectivamente, não apenas a sua própria vida, mas entrega aos leitores a chave para examinar as suas próprias trajectórias.

Nas páginas deste livro ecoa uma esperança: a de que Moçambique nunca esqueça as histórias que o fizeram. Cada crónica é um pequeno farol, iluminando o caminho para que as futuras gerações não se percam na escuridão do esquecimento. Como alguém, outrora, já afirmou: “Contar a nossa história é um acto de resistência”. Irene Mendes resiste e inspira. Ao registar e partilhar connosco as suas memórias, ela fortalece as raízes de um país que não pode – e não deve – ser compreendido sem a sua história.

Assim sendo, esta obra é como uma conversa ao redor da fogueira, onde a memória ancestral se encontra com a reflexão contemporânea. É um espaço onde as feridas do passado são revisitadas, e a força de uma geração é celebrada. Com este livro, Irene Mendes não apenas nos faz pensar; ela nos lembra que há muito ainda a ser contado. É exactamente por isso que este livro deveria instigar todos os outros – jovens de outrora, adultos de hoje – que viveram a mesma época, e os mesmos (dolorosos) desafios. Na verdade, existem segredos e narrativas que não podem ser levados para os túmulos.

Concluindo, “Crónicas, Memórias e Vivências” é mais que uma colecção de histórias. É um legado. Que ele inspire os leitores de hoje a se conectarem com as suas raízes e motive as gerações futuras a continuarem escrevendo a história de Moçambique. Que outros da “Geração 8 de Março” se juntem a Irene Mendes, transformando vivências em páginas, e páginas em pontes para o futuro. Tal como ensina um velho provérbio africano, “Se quiser ir rápido, vá sozinho. Se quiser ir longe, vá acompanhado”… Que caminhemos então, todos juntos, pela rica e enriquecedora jornada de memórias e de resistências em que a Irene nos conduz, neste livro.

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