Há doenças que, quando diagnosticadas a tempo, permitem esperança, tratamento e até cura. Mas há outras que, ignoradas por demasiado tempo, alastram-se silenciosas até que, quando finalmente notadas, já tomaram conta do corpo inteiro. Moçambique, no pós-eleições de 2024, assemelha-se a este doente negligenciado — um paciente com cancro em fase terminal, cujas dores já não se aliviam com analgésicos e a medicina convencional apenas adia o inevitável.
Durante anos, sinais claros apontavam para a existência deste “tumor”. Pequenos nódulos de injustiça, caroços de corrupção e manchas visíveis de falta de transparência foram surgindo no tecido social e político do país. As instituições do Estado — que deveriam ser os médicos atentos e zelosos — tornaram-se cúmplices do avanço da doença, preferindo o silêncio à acção, a conivência à responsabilidade. Em vez de defenderem a saúde da República, colapsaram uma a uma, incapazes de cumprir o seu papel de garantir justiça, equidade e ordem.
As eleições de 2024 não foram a causa do colapso, mas o momento em que o paciente já não conseguiu disfarçar a gravidade da sua condição. Quando o povo percebeu que o corpo da nação estava contaminado até à medula — com tribunais que já não julgam com isenção, uma polícia que protege interesses e não cidadãos, e uma administração pública que serve mais aos chefes do que ao povo —, surgiu a febre da desobediência civil. Foi uma resposta natural, quase como os espasmos de um organismo em agonia, lutando contra a falência múltipla dos seus órgãos vitais.
Mas, tal como num doente terminal, há uma fase em que já não se distingue onde termina a doença e onde começa o corpo saudável. A instabilidade que se arrasta há meses mostra isso. Já não é apenas uma questão de governação ou protestos; é a falência generalizada da confiança, da ordem e da legitimidade. Cada decisão governamental é como uma dose de morfina: alivia momentaneamente, mas não resolve. A repressão é o respirador artificial que mantém o sistema político ligado, mesmo quando o pulso da democracia é fraco e irregular.
A verdade, por mais dura que seja, é que Moçambique está a viver o prognóstico de quem sempre adiou enfrentar os males que o corroíam por dentro. Agora, discute-se se ainda há cura ou se resta apenas gerir a dor.
Mas o que seria, afinal, esse “tratamento radical”?
Não se trata de maquilhar instituições falidas ou de substituir rostos sem mudar práticas. O verdadeiro tratamento exige uma cirurgia profunda, onde se cortam privilégios enraizados, se extirpam as redes de corrupção e se reconstrói, do zero, a confiança entre o Estado e o cidadão.
É aceitar que não há democracia saudável sem uma justiça independente, sem uma Assembleia que represente verdadeiramente o povo, sem uma imprensa livre e sem forças de segurança ao serviço da lei, e não do poder.
O tratamento radical exige coragem para reformas constitucionais, para redefinir o equilíbrio de poderes e devolver aos moçambicanos o direito de serem governados com dignidade. Exige responsabilização real, onde os crimes contra o povo não sejam esquecidos em nome da estabilidade aparente.
Mais do que tudo, exige um pacto social honesto, onde se reconheça que o Estado é um servidor do povo, e não um feudo de interesses particulares. Este é o tipo de intervenção que dói, que gera resistência, porque mexe com estruturas que se habituaram a viver como parasitas do organismo nacional.
Enquanto isso, seguimos neste limbo, como o paciente que recusa aceitar o diagnóstico, agarrado à esperança vã de que amanhã a dor passe sozinha. Mas, tal como o cancro, os problemas de Moçambique não desaparecem por negação. Crescem, sufocam e, se nada for feito, acabarão por consumir o que resta de saudável.
Resta saber: teremos coragem para enfrentar o bisturi da mudança ou continuaremos a aplicar curativos em feridas profundas? Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas a sobrevivência do paciente, mas a dignidade com que escolhemos enfrentar o nosso destino.