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11 de Abril, 2025

O desmantelamento global da USAID – O colapso do Soft Power americano?

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Muito tem se discutido sobre o impacto global do desmantelamento da USAID na continuidade de programas essenciais em diversas regiões do mundo. Em países como Moçambique, Gana, Nigéria e África do Sul, há grande preocupação com a interrupção das iniciativas de saúde materno-infantil, combate à malária e ao HIV, que tem salvado milhões de vidas. No Mali, no Afeganistão e no Haiti, o futuro da educação e do suporte humanitário torna-se incerto. A assistência a refugiados na Colômbia, no Líbano e na Jordânia também corre risco, comprometendo a estabilidade regional. No Brasil, na Indonésia e no Peru, projectos de conservação da biodiversidade e de erradicação de drogas correm risco de ser drasticamente reduzidos. Enquanto isso, a continuidade da assistência humanitária em zonas de conflito como Sudão, Somália, Síria, Iémen e Ucrânia fica ameaçada, colocando milhões em situação de extrema vulnerabilidade.

Numa outra vertente, a decisão de desmantelamento da USAID representa uma mudança sísmica na estratégia de projecção internacional dos Estados Unidos, rompendo com uma tradição de décadas em que a assistência ao desenvolvimento se apresentava como um dos pilares basilares da influência americana no mundo. Criada em 1961 pelo presidente John F. Kennedy, a agência emergiu como uma resposta estratégica à disputa geopolítica da Guerra Fria, funcionando como um contrapeso à crescente influência soviética nos países em desenvolvimento. Desde então, a USAID consolidou-se como um instrumento diplomático imprescindível, promovendo desenvolvimento económico, assistência humanitária e estabilidade institucional, enquanto simultaneamente servia para reforçar os laços políticos e económicos dos Estados Unidos com nações emergentes. A decisão do seu desmantelamento, portanto, não é meramente administrativa, mas um marco de inflexão que poderá reconfigurar o tabuleiro geopolítico global e redefinir a posição dos EUA como potência hegemónica.

O soft power, conceito formulado por Joseph Nye em 1990, no livro “Bound to Lead: The Changing Nature of American Power” e consolidado em 2004, no livro “Soft Power: The Means to Success in World Politics, alicerça-se na capacidade de um país influenciar o comportamento de outros Estados sem recorrer ao uso da força ou coerção económica. Ao longo do século XX, os Estados Unidos consolidaram sua supremacia global combinando poder militar com uma influência cultural e diplomática inigualáveis, garantindo que sua presença internacional fosse tanto uma questão de dominação estratégica quanto de atracção ideológica. Por meio de investimentos em ajuda humanitária, promoção da democracia e parcerias académicas e económicas, os EUA posicionaram-se como líderes incontestáveis da ordem global. O pretendido fim da USAID representa uma abdicação desse modelo, lançando dúvidas sobre a capacidade de Washington de manter sua centralidade na definição dos rumos do mundo sem os mecanismos que historicamente sustentaram sua influência.

Em 2017, o renomado professor de economia, Jeffrey Sachs, destacou, no seu livro “Building the New American Economy: Smart, Fair, and Sustainable” que foi o soft power, muito mais do que o poder militar, que garantiu a liderança americana, transformando-a numa bússola moral global, efectivamente a “terra dos sonhos”. Alias, vitórias importantes, em termos de “soft power”, iniciaram com generoso Plano Marshall que ressuscitou a Europa das cinzas da II Guerra Mundial e incluíram a abertura com Cuba e o acordo com o Irão para neutralizar o seu poder nuclear.

Não obstante, a decisão da administração Trump de dissolver a USAID insere-se no contexto mais amplo de uma guinada isolacionista, impulsionada pela ideologia do “America First”, filosofia de política externa e económica cujo princípio central é priorizar os interesses e o bem-estar dos Estados Unidos acima de considerações internacionais ou globais. Assim, argumenta-se que os recursos canalizados para a assistência externa não geram benefícios directos para os cidadãos americanos e que o financiamento da agência se traduz em desperdício de capital em projectos que não promovem o interesse nacional. Elon Musk, que agora desempenha um papel preponderante no redesenho da burocracia federal, chegou a afirmar que a USAID opera como uma organização criminosa, desperdiçando bilhões em iniciativas de desenvolvimento que poderiam ser redireccionadas para prioridades domésticas. Contudo, o impacto da assistência externa transcende os cálculos orçamentários imediatos. O custo da USAID representa menos de 1% do orçamento federal americano, um valor insignificante quando comparado à magnitude da influência que proporciona, e sua extinção poderá privar os EUA de uma de suas mais valiosas ferramentas de projecção geopolítica.
Embora a administração Trump tenha declarado sua intenção de encerrar a USAID, a viabilidade dessa decisão vai enfrentar grandes barreiras institucionais. É que a USAID foi criada por meio de uma ordem executiva do presidente John F. Kennedy e foi, posteriormente, consolidada como uma agência independente, pelo Congresso norte-americano. Portanto, a USAID não pode ser extinta unilateralmente pelo Poder Executivo. Mesmo com a actual maioria republicana nas duas casas legislativas, espera-se considerável resistência a essa medida, especialmente entre parlamentares que enxergam a assistência externa como um componente essencial da segurança nacional e da influência global dos EUA.

Vale ressaltar que, embora menos drásticas e abrangentes que as actuais, houve tentativas anteriores de reduzir o orçamento ou reestruturar a USAID durante os governos de Obama (2009-2017) e Trump (2017-2021). No entanto, essas iniciativas enfrentaram forte resistência dentro do próprio Partido Republicano, evidenciando que a assistência externa ainda é considerada um pilar essencial da política externa dos EUA. Assim, a alternativa mais viável seria a fusão da USAID com o Departamento de Estado, subordinando suas operações à diplomacia americana, semelhante ao que ocorreu no Reino Unido com a fusão do Departamento para o Desenvolvimento Internacional (DFID) com o Ministério das Relações Exteriores em 2020, durante o governo de Boris Johnson. No entanto, essa mudança reduziria o carácter independente da USAID e reconfiguraria a forma como os EUA operam sua influência no exterior.

A pretendida dissolução da USAID não apenas reduziria a capacidade de intervenção diplomática dos Estados Unidos, mas, também, abrirá espaço para que potências concorrentes ampliassem suas esferas de influência. A China, por meio da Iniciativa Belt and Road, já vem consolidando sua presença em regiões tradicionalmente orbitadas pelos Estados Unidos, investindo bilhões em infra-estrutura e consolidando laços políticos e comerciais estratégicos. A Rússia, por sua vez, tem expandido sua presença militar e económica em nações vulneráveis, oferecendo suporte logístico e político a regimes que antes se alinhavam aos interesses americanos. Com o vácuo a ser deixado pelo encerramento da USAID, muitos países não terão alternativa senão buscar apoio dessas potências emergentes, realinhando suas políticas externas e diminuindo a influência de Washington.

O impacto dessa decisão será particularmente severo em países que historicamente dependeram da assistência americana para sustentar avanços sociais e económicos. Moçambique, por exemplo, recebeu mais de 664 milhões de dólares da USAID apenas em 2023, sendo o país lusófono mais beneficiado pela agência. Esse montante foi direccionado para áreas fundamentais como saúde, segurança alimentar, educação e resposta a desastres naturais. Desde sua instalação em Maputo, em 1984, a agência desempenhou um papel crucial na mitigação dos efeitos da pobreza e no fortalecimento das instituições moçambicanas. Seu desaparecimento, portanto, não apenas comprometeria projectos em andamento, mas, também ameaça retrocessos em sectores essenciais para a estabilidade do país.

Em última instância, o destino da USAID dependerá do equilíbrio de forças no Congresso e da disposição da sociedade americana em continuar investindo em assistência externa como ferramenta de poder global. Se a proposta de desmantelamento for adiante, os Estados Unidos estarão abandonando um dos pilares centrais de sua política externa, reconfigurando sua presença no mundo de forma ainda imprevisível. A grande questão que se coloca é se o país, ao abrir mão de um dos mais eficazes instrumentos de projecção de poder que já construiu, não estará, na realidade, tornando-se menos influente e mais vulnerável num cenário internacional cada vez mais competitivo.

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