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11 de Março, 2025

As Utopias e as Realidades da Descolonização e do Pós-independência – Uma Breve Retrospectiva

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O processo de descolonização continua ambíguo, controverso e inconclusivo, numa temática que divide escritores, analistas e até historiadores. Nesse contexto, parece premente resgatar “O ano do adeus ao Ultramar”, do escritor Adelino Timóteo que, muitas vezes, se situa entre a fronteira da literatura, do jornalismo e da narração histórica.

O escritor Adelino Timóteo, multifacetado, talentoso e que, por vezes, divide opiniões, fez questão de recordar, recentemente, sobre a existência de obras e escritores divididos entre eleitos e não eleitos. Em abono da verdade, a nossa literatura continua imersa de critérios ideológicos e demasiado subjectivos, que geram divisões eleitorais e eleitoralistas sobre quem deve ser eleito e quem não deve ser eleito, retomando um debate dos anos 90, entre Eugénio Lisboa e Alfredo Margarido. Ao reler estas reflexões do escritor, no momento em que termino esta tentativa de súmula do seu livro, declino designar estas linhas como sendo uma crítica ao seu livro.

Obviamente, não resisti em estabelecer um paralelismo entre o texto de Adelino Timóteo e o ciclo vicioso sobre obras publicadas que devem ou não ser lidas, comentadas, debatidas, pois a crítica, preconceituosa, faz, ou desfaz, o favor de estratificar aquilo que terá visibilidade, ou que tem de ser ignorado e colocado na prateleira do pecado. A semelhança de Timóteo, também, cito Eugénio Lisboa, quando defendia que “nenhum regime ama os bons intelectuais”.

À medida que nos aproximamos, de forma mais calorosa, ou turbulenta, do jubileu de ouro da nossa independência nacional, glorificada pela conquista da liberdade, torna-se evidente a necessidade de revisitar e reescrever o período da descolonização e do pós-independência. Esse processo não deve ser visto, apenas, como resgate simbólico do passado, porém como imperativo nacional e de consciência. Entender os fundamentos que determinaram a criação do Estado Moçambicano é essencial, primeiro, para entender as nuances e, igualmente, os desafios enfrentados ao longo desse meio século. Em segundo lugar, serve para projectarmos esse futuro que respeite e valorize a unidade (e a diversidade), a identidade, as aspirações dos moçambicanos, nesse quadro de democracia participativa, nesta época de tecnologia digital.

Nesse desiderato, e para resgatarmos algumas luzes do nosso devir como Estado e como nação, impõe-se um breve recuo histórico, especialmente, no período imediatamente anterior à independência. A obra “O ano do adeus ao Ultramar” induz-nos a rever as políticas económicas e sociais de Portugal, enquanto país colonizador, que sempre enfrentou desafios colossais no que concerne à administração e a delimitação das fronteiras modernas de Moçambique.

Com efeito, apesar da sua longa presença em África, Portugal nunca possuiu recursos militares e económicos suficientes para exercer controle efectivo sobre Moçambique e sobre as restantes colónias. Tais limitações resultaram, invariavelmente, na adopção de medidas de curto prazo para governar as suas possessões ao menor custo possível, enquanto, tornava as colónias economicamente viáveis para sustentar a economia metropolitana.

Por conseguinte, este livro do escritor Adelino Timóteo resgata, não só a ausência de uma estratégia coerente para a administração colonial, mas, e sobretudo, as alternativas que foram definidas em Portugal e em Moçambique pelas elites existentes. Escreve o autor que, enquanto alguns defendiam a colonização directa como um incentivo para imigração de portugueses, outros viam as colónias, apenas como fonte de lucro financeiro imediato.

Como solução, Portugal adoptou, inicialmente, o modelo de concessões privadas, dividindo Moçambique em diferentes regiões administrativas fiscais e de segurança. Moçambique, consequentemente, para além de ser uma espécie de colónia britânica, teve que adoptar o que ficou designado como Estado Novo de Salazar, declarado como Estado único, a partir de 1930. Neste contexto, Moçambique passa a ser uma província ultramarina de Portugal, porém, a cidadania plena era garantida apenas a poucos.

Foi a partir desse período que Portugal buscou, activamente, o desenvolvimento das economias das suas colónias africanas. No caso específico de Moçambique, Portugal alocou, através do processo de implementação desse programa de desenvolvimento, por um lado, investimentos em diversos projectos de infra-estrutura – de onde se destacam, por exemplo, a construção de portos, ferrovias e barragens – e, por outro, um plano de emigração de portugueses para a África e a construção de colonatos. Socialmente, a maioria da população moçambicana era composta por agricultores rurais – que eram obrigados a pagar impostos e cumprir trabalho forçado – e a economia dinamizava-se pela prática de agricultura comercial e pelo trabalho migrante desenvolvido interna e externamente.

No mesmo período, centenas de milhares de portugueses foram chegando a Moçambique, atraídos pela economia em expansão, que oferecia boas oportunidades de trabalho. Rapidamente, a crescente imigração portuguesa fez emergir uma classe política muito influente e crescentemente autónoma do governo colonial português. Essa geração, que parecia articular os sentimentos da população imigrante portuguesa – e cujas preocupações nem sempre eram sempre escutadas em Lisboa.

Não é por acaso que, como bem assevera Malyn Newitt em “A Short History of Mozambique” (2017), os colonos brancos em Moçambique nunca tiveram instituições ou forças armadas sob seu controle e com as quais pudessem resistir tanto a Lisboa, quanto aos nacionalistas moçambicanos sobre a liderança da Frente de Libertação de Moçambique, quando Portugal decidiu se retirar de Moçambique.

II

Na realidade, a obra de Adelino Timóteo é um extraordinário relato das mundividências de um dos mais proeminentes filhos do projecto colonial português em Moçambique, personificado na figura de Jorge Jardim. Mas, quem, afinal, era Jorge Jardim? Por que é que suscitou tantos debates e diferentes interpretações? O que é que pretendia em Moçambique? Porque se envolveu com Kamuzu Banda do Malawi e Kenneth Kaunda da Zâmbia? Quais eram os seus reais planos para Moçambique.

Jorge Jardim era tanto um cidadão português quanto moçambicano; talvez mais moçambicano do que português, sobretudo, após se ter amargamente, convencido da inevitabilidade do processo de descolonização. Como parte dos colonos portugueses permanentemente no limbo entre o sentido de pertença gentílica à Metrópole e o sentido de identidade simbólica ao Ultramar, ele assumiu, sem reservas, a sua identidade moçambicana e, presume-se, nutriu um profundo apreço por ela à sua maneira.

Jorge Jardim foi, inicialmente, um fervoroso defensor do Estado Novo e da sua política ultramarina. No entanto, a partir da década de 1970, distanciou-se dessa posição, passando a admitir a possibilidade de Moçambique se desvincular de Portugal. Exploremos este ponto com um breve detalhe, que, certamente, traz de volta uma memória que tende a desaparecer. Formado em Engenharia Agrónoma, Jorge Jardim – que também era, simultaneamente, diplomata, piloto-aviador, jornalista e “agente secreto”, dentre outras ocupações e profissões conhecidas e ocultas – rapidamente destacou-se no meio empresarial e político do Estado Novo, regime ditatorial português liderado por António de Oliveira Salazar.

O seu envolvimento em Moçambique ganhou projecção a partir da década de 1950, quando assumiu a coordenação de grandes projectos de infra-estrutura e desenvolvimento económico localmente. Diferentemente de muitos administradores coloniais, Jardim não se limitava ao papel de burocrata; via-se, com certa arrogância, como um estrategista e modernizador, determinado a transformar a colónia moçambicana num pilar essencial da economia portuguesa.

Convicto de que Portugal poderia preservar a sua presença, em Moçambique, sem recorrer exclusivamente à guerra, Jardim propôs um conjunto de reformas políticas e económicas de onde se destacavam, dentre outras, a concessão limitada de autonomia, o estímulo à participação de elites africanas no sistema colonial e a criação de um “Estado moçambicano” que, embora, formalmente independente, permanecesse atrelado a Portugal. No entanto, as suas propostas não encontraram respaldo, nem no Governo português, muito menos, entre os movimentos de libertação africanos, e até outros partidos criados no pré-independência, que viam qualquer forma de autonomia dentro do sistema colonial como uma perpetuação da dominação estrangeira.

Durante os anos de 1960, e à medida que a guerra de libertação se intensificava, Jorge Jardim buscou soluções políticas para evitar um conflito prolongado. Não obstante, as suas iniciativas foram, gradualmente, minadas pelo endurecimento da repressão militar portuguesa e pela radicalização do movimento nacionalista da Frente de Libertação de Moçambique. Embora tenha estabelecido contactos informais com algumas lideranças nacionalistas, a sua posição tornou-se cada vez mais frágil, sobretudo, com a queda do regime salazarista e a Revolução dos Cravos em 1974.

Mais dramaticamente, com a independência de Moçambique, em 1975, os projectos de Jorge Jardim para Moçambique foram definitivamente enterrados. O novo Governo da FRELIMO, liderado por Samora Machel, rompeu por completo os vínculos coloniais e adoptou políticas socialistas. Diante desse cenário, Jardim exilou-se e passou a transitar por diversos países, mantendo ligações com sectores conservadores – ditos reaccionários – que se opunham ao regime moçambicano.

Em suma, ao se analisar a história colonial de Moçambique, a figura de Jorge Jardim – hoje entusiasticamente revisitada por Adelino Timóteo – permanece envolta num mar de controvérsias. Para alguns, ele foi um visionário que tentou encontrar soluções alternativas para a crise colonial, evitando o derramamento de sangue e apostando num desenvolvimento político, económico e social endógeno. Para outros, Jorge Jardim foi apenas um arquitecto da manutenção do domínio português, utilizando estratégias mais subtis do que a repressão militar, mas, igualmente, voltadas à preservação dos interesses coloniais.

III

Considero extremamente importante não perder de vista que o modelo de modernização colonial de Jorge Jardim carregava, mesmo com todos os seus méritos, um viés paternalista que não reconhecia plenamente o direito dos moçambicanos à autodeterminação. O seu legado, portanto, reflecte as complexidades tanto da descolonização portuguesa quanto das relações entre Portugal e as suas ex-colónias. Se, por um lado, o seu projecto político pode ser visto como uma tentativa pragmática de adaptação colonial à febre anticolonial – então em voga por toda a África –, por outro lado, o seu fracasso simboliza a inevitabilidade do colapso do colonialismo português em África.

Tomando tudo isso em consideração, não deixa de ser interessante (re)analisá-lo por alguns dos seus engenhos. Na obra “Moçambique – Terra Queimada” (1976), Jorge Jardim expõe uma outra leitura do que significaria o processo de descolonização, não só para os nativos africanos mas, particularmente, para as centenas de milhares de portugueses que Portugal mostrava-se incapaz de (re)acolher, com as independências. Muitos deles queriam ou permanecer, ou regressar – e até morrer – nas ex-colónias portuguesas em que nasceram ou cresceram, porque não (re)conheciam outra pátria.

Outros partilhavam do intragável ressentimento pelo, segundo as próprias palavras de Jorge Jardim, “triste e covarde abandono de Moçambique” por parte de Portugal. Jardim fala, igualmente, de uma “descolonização honrosa” para os nativos, de um “expresso respeito pela posição de Portugal”, de uma garantia de que “o novo Moçambique não se converteria em satélite africano das potências comunistas” e de um “carácter autenticamente multirracial da sociedade moçambicana” após a independência.

Traduzido no infame “Programa de Lusaka” (1973), desenhado em conluio com os regimes de Kamuzu Banda e Kenneth Kaunda, Jorge Jardim idealizava uma independência gradual de Moçambique, na qual o país tornar-se-ia formalmente autónomo, mas permaneceria alinhado aos interesses portugueses – num projecto inicialmente similar ao de Ian Smith, na Rodésia (actual Zimbabwe), consumado através de uma declaração unilateral de independência liderado pela minoria branca e, mais tarde, associado a uma elite nativa estrategicamente escolhida a dedo, mas, invariavelmente, assente na ruptura política com a desleixada e sempre ausente Metrópole.

Para esta última opção, propunha a criação de uma estrutura política liderada por sectores moçambicanos próximos ao Governo colonial, em oposição directa à FRELIMO. A sua estratégia incluía, ardilosamente, a formação de alianças com grupos nacionalistas que não estivessem vinculados à ideologia marxista, buscando assim enfraquecer a influência da FRELIMO e consolidar uma alternativa política capaz de conter a sua ascensão ao poder.

Geopoliticamente, Jardim mobilizaria apoio militar e económico de regimes estrangeiros, como a Rodésia e a África do Sul, ambos diligentemente empenhados em combater os movimentos de libertação na região. Nesse contexto, havia negociações para garantir financiamento e suporte militar a um possível governo moçambicano alternativo, que pudesse servir como barreira contra a influência comunista. Assim sendo, o seu plano visava, sobretudo, impedir que Moçambique se transformasse num Estado socialista sob a liderança de Samora Machel, criando, em vez disso, um Estado tampão que mantivesse a presença de interesses ocidentais na região.

Muito ao contrário das suas mais pessimistas projecções, o Programa de Lusaka fracassou diante de uma série de factores. A Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, transformou completamente o cenário político português e levou à decisão de conceder independência total às colónias portuguesas. Ao mesmo tempo, a FRELIMO já exercia amplo controle sobre o território e a população em Moçambique, consolidando-se como a única força legítima para negociar a transição do poder. Outrossim, a pressão internacional inviabilizou qualquer tentativa de manter Moçambique sob influência colonial, condenando a visão e estratégia política de Jorge Jardim a um colossal insucesso, concluiu Adelino Timóteo, no seu livro “O ano do adeus ao Ultramar”.
IV
No quadro da reflexão sobre os 50 anos da nossa independência, que ilações se podem tirar deste pequeno, mas impactante episódio da nossa história recente? Evidentemente, que a história política de Moçambique antes da independência foi marcada por uma diversidade de forças e projectos políticos que, de diferentes formas, ou contestaram o domínio colonial português ou propuseram projectos alternativos para a autodeterminação do território. Tal diversidade tem sido recorrente ao longo destes 50 anos de independência, de uma ou de outra forma.

Inicialmente, esses movimentos alternativos foram impulsionados por intelectuais conservadores, lideranças tradicionais e militantes nacionalistas, cujas acções se tornaram alvo de perseguição e repressão tanto pelo regime colonial quanto pelo projecto hegemónico da FRELIMO, que se consolidaria como a força política dominante após a independência. Ademais, esses projectos políticos alternativos – tanto ao colonialismo português como ao projecto marxista-leninista da FRELIMO — com todos os seus méritos e deméritos, foram respondidos com forte repressão ou silenciamento, muito por conta das especificidades históricas de então, e os seus proponentes neutralizados ou obrigados a se exilar no exterior, onde buscaram alianças com sectores conservadores e com regimes contrários à orientação socialista do movimento. Portanto, com a independência de Moçambique, em 1975, a FRELIMO assumiu o poder e transformou-se em partido único, consolidando um regime de inspiração marxista-leninista a partir de 1977, excluindo qualquer forma de pluralismo político.

Naturalmente, os rumos e as escolhas políticas derivadas do nosso processo revolucionário, no período imediatamente antes e imediatamente depois da independência, foi feito tanto de celebrações e hosanas para uns, como de desilusões e ressentimentos para outros. Recuperando a obra “O Fim da História e o Último Homem” (1992), de Francis Fukuyama, vislumbro, de forma retroactiva, uma antítese deveras interessante. Se Fukuyama argumentou que, com a queda do comunismo e a ascensão da democracia liberal, a humanidade teria chegado ao estágio final da evolução política, eliminando a necessidade de ideologias concorrentes, em Moçambique um fenómeno semelhante ocorreu, mas num sentido inverso: a história política plural encerrou-se com a vitória da FRELIMO, e todas as outras ideologias ou projectos concorrentes foram suprimidos.

O fim da luta política plural em Moçambique criou uma sociedade onde a participação política era reduzida à obediência ao partido único, sem grandes espaços para debate ou questionamento, quiçá justificando a repressão política e originando movimentos contra-revolucionários como, por exemplo, o conflito armado desencadeado pela RENAMO. A FRELIMO acreditava ter alcançado uma “vitória final” sobre os seus opositores ou concorrentes, com a instauração do socialismo. Não obstante, o nosso “fim da história” não foi definitivo, pois o modelo socialista colapsou nos anos 1980 e o país foi obrigado a adoptar o multipartidarismo em 1990.

Com efeito, 50 anos depois da nossa independência, continuamos a testemunhar desafios à hegemonia da FRELIMO e aos seus sucessivos projectos políticos para Moçambique, fenómeno manifestamente natural em processos políticos vibrantes como o nosso. Portanto, tal desdobramento mostra (e demonstra) que a história política nunca termina completamente, de tal forma que até o próprio Fukuyama revisou, já mais tarde, a sua tese, reconhecendo que os desafios à democracia liberal continuariam (e tem continuado) a surgir pelo mundo. Para nós, interessante é – e será, num futuro não muito distante – saber como é que Moçambique irá dialogar com os mais ou menos Jorge Jardins do seu presente (que já existem) e do seu futuro (que sempre existirão).

Sir Motors

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