Já não me ocorre quem foi, mas alguém escreveu, falando sobre a paz, que ela era o intervalo entre duas guerras, justificando, por isso, a necessidade de uma autoridade de Defesa Nacional. Este tipo de instituição é importante, porque em termos de segurança, os Estados nunca estão completamente em paz, e nem devem dar-se ao luxo de acreditar numa ilusão deste tipo. A paz, não passa, afinal, de um período de tréguas ou de mera amizade. Aliás, abrindo parênteses, ela é uma espécie de adultério da guerra, facto que não passa despercebido em documentos oficiais, incluindo os das Nações Unidas, na referência aos protagonistas da paz de “amantes da paz” e não de “cônjuges da paz”. E reflectir, continuamente, e de forma larga sobre a Defesa (da paz) Nacional, é pertinente e devia ser parte da estratégia de defesa de qualquer Estado, que se preze, sob o risco de ser uma isca à deriva no alto mar.
Ora, em linha com a pertinência da reflexão, inicio a minha com o ponto sobre o tamanho das Forças Armadas, uma pendência do AGP (Acordo Geral de Paz) de 1992 (e ainda das subsequentes tréguas) que, em tempos de multipartidarismo, impunha a formação de novas Forças Armadas. Aqui, chamo à colação Severino Ngoenha, professor e filósofo moçambicano, que, preocupado com o cerne da discussão sobre o tamanho, trouxe-o para o debate numa sessão de docência. A conclusão foi a de que, tal discussão, só faria sentido se se soubesse de que tipo de Forças Armadas, afinal, se tratava. E nada se sabia sobre isso, mas ficara a deixa, por exemplo, de que um território tão vasto e com as características geográficas de Moçambique, a sua primeira linha de defesa não devia ser o Exército (forças terrestres).
Um outro ângulo de reflexão diz respeito a definição do anel (imaginário) de segurança fronteiriço. Para melhor entendimento, recorro a dois exemplos da sessão com Ngoenha. Nela, foi dito que o anel de segurança sul-africano, do lado da fronteira com Moçambique, sobre o qual decorriam simulações de defesa, prolongava-se até ao distrito de Vilanculos (Inhambane), mormente o Oceano Índico. Mais ainda, que o então e agora falecido Presidente francês Jacques Chirac, alertara, às autoridades moçambicanas, de que a fronteira de Moçambique à leste, era a França e não o Oceano Índico. Dois exemplos, uma pergunta: as fronteiras de defesa estratégica de Moçambique são, porventura, coincidentes ou não com as dos respectivos limites geográficos?
Portugal, o país colonizador, passou o poder, às novas autoridades de Moçambique independente, sem que antes tivesse ocupado todo o território. Depois da independência, não faço ideia de que se tenha constado, no processo de afirmação da soberania e de integridade territorial, a imperativa necessidade da sua ocupação efectiva. Terá a conquista da independência, total e completa, sido materializada na posse e controle de cada centímetro de Moçambique? Conferir as estratégias de ordem militar e civil que o poder colonial desenvolvia ou previa é crucial e um bom começo para uma frutífera reflexão.
É expectável que as Forças Armadas tenham o devido preparo, prontidão e que estejam sempre em plantão. E nesta linha, fora as simulações e operações reais de guerra, é que se justifica que as Forças Armadas de um dado país saem em socorro, fora de fronteiras, em situações de calamidades naturais, operações de paz e similares. No fundo, uma oportunidade de demonstração de força e de dissuasão. Decerto, um ponto de reflexão, começando pela capacidade de operação doméstica das Forças Armadas moçambicanas cujos desafios e do país, em geral, deviam combinar e impulsionar, como estratégia e prioridade de desenvolvimento, o crescimento de uma robusta indústria nacional, porquanto as Forças Armadas demandam uma série de produtos e serviços e com proveitos significativos para a economia.
Um outro ponto e decorrente das linhas precedentes é o interesse nacional sobre o qual as Forças Armadas constituem uma das guardiãs, sobretudo, no concerto das nações. Não sei eu, até que ponto existe um consenso ou mesmo conhecimento, incluindo no seio dos principais órgãos de gestão do Estado, sobre o interesse nacional, enquanto conceito e também enquanto conteúdo para Moçambique. A reflexão deste ponto impõe-se ainda por ser de natureza estratégica e um factor de mobilização da sociedade para os objectivos de desenvolvimento e de defesa do Estado.
Os programas de ajustamento estrutural, no quadro da ajuda externa, foram, em tempos recentes, a ovelha negra para que a Defesa Nacional não fosse uma prioridade e hoje, diante de uma nova, complexa e difusa conjuntura interna e do sistema internacional, tal já não faz sentido, se é que algum dia o fez. Aliás, à distância dos tempos do debate público na elaboração das duas gerações do PARPA (Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta) e ainda dos que correm, em relação às expectativas da indústria extractiva, questiono: do que vale o esforço nacional e internacional se as conquistas, de um dia para o outro, desmoronam num piscar de olhos. Obviamente, uma outra reflexão.
Chegados aqui, sem que tenha esgotado, espero ter arrolado algumas notas susceptíveis de reflexão e passíveis de enriquecimento, entre elas, com as notas dos propósitos da fundamentação que nortearam a contratação das chamadas “dívidas ocultas”. Se agora, no final da leitura, o leitor concorda que urge um debate contínuo, abrangente e profundo sobre os assuntos de defesa do Estado constitui um bom ponto de partida cuja participação consubstancia uma sagrada e honrosa forma de cidadania.
A terminar, em jeito de despedida, uma deixa: as boas ideias/intenções sobre a defesa da soberania nacional e a integridade territorial devem ser traduzidas em discurso e pulso (militar). A metade – apenas o discurso – é inútil. Isto eu li algures, alguém debruçando sobre a necessidade imperativa e contínua do desenvolvimento da capacidade das Forças Armadas na afirmação da Defesa (da paz) Nacional e de sobrevivência do próprio Estado.