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João Paulo Borges Coelho

João Paulo Borges Coelho

quinta-feira, 25 abril 2024 08:55

Moçambique e o 25 de Abril

Assinalam-se neste ano os cinquenta anos do golpe de Estado que pôs fim à ditadura em Portugal e acelerou a independência das antigas colónias portuguesas, incluindo Moçambique. É uma boa ocasião para reflectir sobre a importância desta data para os Moçambicanos.

 

Um bom ponto de partida é questionarmo-nos sobre a situação nas vésperas do golpe. Do ponto de vista do regime colonial português, a guerra aproximava-se velozmente dos limites do sustentável, em termos políticos, económicos e militares. Apesar de uma certa complacência norte-americana e europeia, típicas do contexto da Guerra Fria, desde o consulado de Kennedy, no início dos anos sessenta, que eram regulares nas Nações Unidas as censuras unânimes a Portugal. Em resultado, no início da década seguinte Portugal era um país isolado, enfrentando uma guerra intensa na Guiné, em Angola e em Moçambique.  Com uma pequena população e uma pequena economia, há alguns anos que atingira os limites da sua capacidade. A história está ainda em grande parte por fazer relativamente aos custos da guerra, em parte devido ao secretismo de que este tema se revestiu na altura, com a multiplicação de rubricas orçamentais confidenciais para impedir uma visão pública da gravidade da situação. Mas as dificuldades eram evidentes.  Basta citar uma carta do Ministro da Defesa Sá Viana Rebelo para o Ministro das Finanças, relativa ao fechamento das contas de 1972. O crédito confidencial estabelecido para complementar os custos de guerra, no montante de 1.100.000 contos, tinha sido ultrapassado por uma despesa que, nesse ano, rondou os 1.500.000 contos. Havia cerca de 440.000 contos a descoberto (175.000 relativos a Angola e 265.000 a Moçambique). O esforço para que as províncias participassem nas despesas de guerra havia produzido resultados muito modestos: apenas Moçambique conseguira contribuir com 40.000 contos. O Ministro da Defesa não sabia o que fazer para cobrir os 400.000 contos que faltavam, a não ser apelar desesperadamente para o Ministro das Finanças.

 

Além dos problemas financeiros, havia evidentemente a questão dos soldados. Em finais da década de sessenta Portugal era, depois de Israel, o país com mais elevada percentagem de homens mobilizados, que no início dos anos setenta chegavam aos 150.000. Ao mesmo tempo, a percentagem de desertores duplicava, chegando a atingir cerca de 20% do total. Este facto revelava uma recusa crescente de alistamento para a guerra, mas também, e sobretudo, o facto de Portugal ser à época um fornecedor crónico de mão-de-obra migratória para a Europa e as Américas. Durante um tempo, principalmente a partir de 1968, com a substituição de Salazar por Marcello Caetano, este problema foi torneado com uma mobilização crescente de forças locais, a ponto de em finais da guerra praticamente metade das forças coloniais serem africanas (no caso de Moçambique, bem mais de metade). Este processo, conhecido como africanização das forças armadas, permitia atenuar os problemas advenientes não só da escassez de homens, mas também dos custos e do impacto social da guerra na metrópole, além de ser solução prescrita nos modernos manuais da chamada contra-insurgência desde pelo menos as campanhas francesas da Indochina (com o chamado jeunissement) e inglesas da Malásia (com a same element theory). Uma carta do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, datada de 1973, fazia a curiosa proposta de, a partir de 1974, Portugal começar a reduzir em 10% ao ano os contingentes metropolitanos, transferindo os recursos poupados para as colónias, a fim de que estas acelerassem o recrutamento de forças locais. No fundo, tratava-se de descentralizar a guerra colonial, tentando transformá-la em três grandes conflitos civis.

 

Mas havia uma outra dimensão da escassez de homens que não podia ser resolvida desta maneira: a da falta de oficiais de carreira que conduzissem a guerra. Após uma rápida subida de oficiais saídos da academia militar, de 68 em 1962 para 146 em 1967, o número declinou para apenas 40 em 1973. Cada vez mais era necessário recorrer a oficiais milicianos e, se estivermos lembrados, foi o descontentamento dos oficiais de carreira em relação aos privilégios destes últimos que constituiu uma das causas próximas do golpe.

 

De qualquer maneira, se em Angola a situação ainda não parecia desesperada, na Guiné a guerra estava praticamente perdida para o regime, e em Moçambique era motivo de enorme preocupação. De facto, neste último teatro de operações os resultados da Operação Nó Górdio, a última grande tentativa de resolver militarmente o conflito, tinham-se revelado muito aquém do que esperava o seu comandante, o general Kaúlza de Arriaga. A concentração de tropas em Cabo Delgado, requerida pela operação, desguarneceu as outras frentes e os combatentes da Frelimo, dando a volta por Tete, atravessaram o Zambeze para sul, de onde ameaçavam a barragem de Cahora Bassa, e entraram na região central de Manica e Sofala em 1972, passando a ameaçar directamente zonas com grande concentração de população branca e o corredor da Beira, de importância fundamental para a Rodésia. A guerra revelava finalmente o seu impacto, quer para a sociedade colonial, quer para os regimes brancos do Sul. Além disso, as forças nacionalistas começavam a encarar directamente a travessia do rio Save e o avanço para sul, embora tivessem agora pela frente outro tipo de dificuldades na medida em que esse avanço as obrigava a esticar as linhas de abastecimento em território hostil e relativamente desconhecido, desta vez sem o apoio de países vizinhos e tendo ainda de deparar com forças portuguesas mais concentradas, em defesa da região sul da capital.

 

Os manuais militares diziam que as guerrilhas desta natureza eram muito difíceis de combater, e que o papel das forças armadas era de suster a situação até se chegar a um acordo político que resolvesse o conflito. Todavia, embora as forças armadas tivessem feito o possível por segurar a situação, a solução política mostrava-se sempre adiada. Em Portugal, os dirigentes políticos há muito que viviam imersos no seu mundo de fantasias próprias, recusando-se a reconhecer o óbvio. É neste quadro que se situa grande parte das causas profundas do Movimento dos Capitães: uma manifestação de mal-estar geral que só o fim da guerra, inextricavelmente ligado ao fim do regime, podia resolver.

 

Todavia, é um grande erro de perspectiva considerar que o regime colonial havia baixado os braços. A criação de mais de mil aldeamentos dotados de milícias de recrutamento local onde crescia a violência e a dissolução social, a incorporação crescente de moçambicanos nas forças regulares (que no final da guerra ultrapassavam largamente as tropas de recrutamento europeu), e a criação de forças especiais de base étnica como os GEs, os GEPs e, já em inícios de 1974, os Flechas, enraizavam o conflito colonial, incutindo nele características crescentes de conflito civil. Ao mesmo tempo, a cooperação político-militar cada vez mais estreita do regime colonial com a África do Sul e a Rodésia, no âmbito do projecto ALCORA e outros, trazia cada vez mais o centro de gravidade do conflito de Lisboa para a região, ao mesmo tempo que outras soluções obscuras eram procuradas por forças coloniais locais (por exemplo, por Jorge Jardim) tendo em vista uma solução do tipo rodesiano ou o desmembramento do país, com as graves e complexas consequências que isso traria no futuro.

 

Tudo isto torna evidentemente muito difícil prever quanto tempo mais duraria a guerra. Por um lado, o avanço resoluto das forças nacionalistas com apoio popular e, por outro, uma generalização da violência e dissolução sociais, a que se vinha juntar a regionalização do conflito com o envolvimento cada vez mais directo da África do Sul e da Rodésia.

 

Por isso, ao levar ao desmoronamento das forças coloniais, permitindo que se acelerasse a transição de um pântano violento onde predominavam grandes ameaças para um ciclo que, malgrado as dificuldades persistentes, era inteiramente novo – o ciclo do Moçambique independente – o golpe do 25 de Abril constitui sem dúvida uma data de grande importância na História de Moçambique.