É pela terceira vez que os cabos que alimentam a iluminação que sinaliza a pista de aterragem do Aeroporto Internacional de Nacala (AIN) foram sabotados, desde a inauguração daquele “elefante branco”, em 2014. O dado foi confirmado pelos funcionários da empresa pública Aeroportos de Moçambique (AdM) e agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) afectos àquela cidade portuária, da província de Nampula.
De acordo com as fontes, nos primeiros dois actos de vandalismo, os meliantes terão cortado cabos das luzes de sinalização da pista, numa extensão de 500 a 3.000 metros, “longe” dos radares das duas unidades de segurança ali afectas: da PRM e da segurança privada.
Porém, a terceira foi de vez: quando “meliantes” voltaram a vandalizar os cabos de iluminação daquela infra-estrutura aeroportuária, numa extensão de 200 metros, a AdM conseguiu captar as imagens dos indivíduos envolvidos, tendo-se constatado que se tratava de agentes da PRM afectos àquele aeroporto.
Entretanto, fontes que avançaram o caso à “Carta” dizem que, devido às ligações existentes entre os agentes e os respectivos “chefes”, a nível de Nacala, o processo não vem andando. De acordo com as fontes, a acção visa sabotar a aterragem dos voos nocturnos, habitualmente usada pelos mercenários russos do Grupo Wagner, que desembarcam naquele local à noite, para fugir dos “holofotes”.
À “Carta”, a fonte garantiu que os agentes da Polícia envolvidos na sabotagem devem ter recebido orientações superiores, mas sem avançar os reais motivos. Sublinha que foi graças às camaras instaladas em alguns “pontos estratégicos”, que permitiram a identificação dos “vândalos”, porém, o processo não tem demonstrado avanços.
“Carta” procurou ouvir Emmanuel Chaves, PCA da empresa Aeroportos de Moçambique, porém, todos os esforços redundaram em fracasso. (Carta)
A União Africana (UA) está finalmente sentando-se e tomando conta oficial da crescente e brutal insurgência “jihadista” na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Na cimeira da UA que terminou ontem em Adis Abeba, o Comissário da Paz e Segurança da UA, Smail Chergui, disse na segunda-feira que a UA deveria ajudar Moçambique, fornecendo equipamento e formação e também ajudar a resolver o problema de forma holística.
"Temos que entender por que esse terrorismo está acontecendo lá e por que houve um nível de violência sem precedentes contra civis", disse ele, referindo-se à extrema brutalidade dos ataques do grupo jihadista, geralmente chamado Al-Sunnah wa Jamaah (ASWJ ), embora alguns residentes locais também o chamem de Al-Shabaab. O Estado Islâmico afirmou que o grupo local é afiliado da sua Província da África Central
Desde a erupção em Outubro de 2017, os “jihadistas” da ASWJ realizaram dezenas de ataques e mataram cerca de 600 civis e pessoal de segurança, geralmente decapitando e mutilando. Em Adis Abeba, Smail Chergui disse: “É bom que estejamos todos juntos com Moçambique para resolver, limitar e eliminar esse fenômeno muito rapidamente. Haverá uma troca permanente de informações com as autoridades de Moçambique. Esperamos que, em breve, a estabilidade e a segurança naquela parte de Moçambique - que tem implicações na fronteira com a Tanzânia - estejam totalmente sob controle”.
A nova atenção a Moçambique está a acontecer à medida que a UA intensifica os seus esforços para resolver conflitos em todo o continente, de acordo com o seu lema para 2020, que é “Silenciar as armas”. Esse lema foi escrito há algum tempo e originalmente incluído "em 2020". (Carta)
Sensivelmente quatro meses após a realização das VI Eleições Gerais de 15 de Outubro de 2019, a Missão de Observação Eleitoral da União Europeia tornou público o seu relatório final sobre o processo, que teve como vencedores “absolutos” o partido Frelimo e o seu candidato presidencial, Filipe Nyusi.
A divulgação do relatório teve lugar esta quarta-feira, na capital do país, Maputo, em que numa das linhas aponta: "Uma análise das mudanças dos padrões de voto nas eleições presidenciais entre 2014 e 2019 revela o sucesso de uma estratégia centralizada com o objectivo de aumentar os votos a favor do partido no poder nos distritos da oposição”. O processo eleitoral decorreu, tal como refere o documento, num clima tenso, de intimidação da oposição e de desconfiança em relação aos órgãos eleitorais.
Concretamente, o extenso documento não difere, na substância, do relatório preliminar apresentado em Novembro último. Nas constatações, que começam desde o recenseamento eleitoral até à validação e proclamação dos resultados, destacam-se: o enchimento de urnas; voto múltiplo; invalidação intencional do voto da oposição; alteração de resultados de Mesas de Assembleia de Voto com adição fraudulenta de votos; e, membros de Mesa, funcionários públicos e eleitores encontrados com boletins de voto fora das assembleias de voto.
Consta, igualmente, que nos 51 distritos observados, em boa parte deles, a recepção do material foi desorganizada, tendo-se observado o preenchimento dos editais por parte dos membros das mesas, enquanto esperavam na fila para entregar os materiais; centenas de casos em que Presidentes das Mesas de Votação expulsaram delegados de candidatura dos partidos da oposição; o envolvimento da Polícia na expulsão dos delegados de candidatura da oposição; somas de voto que excedem o número de votos na urna ou ao número de eleitores.
Aponta ainda que em oito, de 69 mesas de assembleias de voto observadas, um número considerável de votos foi considerado inválido mesmo sendo clara a intenção de voto; números do recenseamento eleitoral em Gaza; detenção de Delegados de candidatura do partido Nova Democracia também em Gaza; Desembolso tardio dos fundos para os partidos da oposição; e cobertura desigual dos meios de comunicação social em relação aos candidatos da posição. Estas são algumas das constatações da Missão de Observação Eleitoral da União Europeia.
A Missão de Observação Eleitoral da UE iniciou a sua actividade a 31 de Agosto de 2019, destacando 170 observadores para o dia da votação. Visitou, ao todo, 807 mesas de votação em todo o país. Analisou a campanha eleitoral, o quadro jurídico, o desempenho dos órgãos eleitorais, a qualidade do recenseamento eleitoral, a apresentação de candidaturas, o papel dos meios de comunicação, a participação das mulheres no processo eleitoral e o processo de votação.
Perante este quadro, a Missão de Observação Eleitoral deixou um total de vinte recomendações “prioritárias” que devem ser tidas em conta para a melhoria dos processos eleitorais no país.
Enquadramento Institucional
-“As instituições públicas, nomeadamente a CNE, deverão assumir a sua responsabilidade pela integridade do processo eleitoral, através da adopção de medidas que diminuam as consequências e o impacto nos resultados eleitorais do ilícito eleitoral e de más práticas cometidos durante a votação, contagem e apuramento”.
-“Adoptar e reforçar políticas para uma actuação imparcial e livre de influência política das forças policiais a todos os níveis, assegurando que aqueles que cometem violações da lei e de direitos humanos, nomeadamente durante o período eleitoral, são responsabilizados”.
Enquadramento Legal
-“Devem ser evitadas alterações à legislação eleitoral no período de seis meses antes das eleições, de modo a dar oportunidade aos intervenientes no processo para se familiarizarem com o quadro normativo”.
-“Para garantir a coerência, constitucionalidade e viabilidade de implementação da legislação eleitoral, as propostas de lei eleitoral deverão ser submetidas sistematicamente ao Conselho Constitucional para fiscalização antes da sua aprovação”.
-“Harmonização das leis eleitorais através da adopção de um código eleitoral e processual em conformidade com a recomendação contida no Acórdão 21/CC/2014 do Conselho Constitucional para garantir certeza legal e eliminar contradições legais”.
-“Alargar a definição sobre a validade de cada voto baseada na intenção do eleitor, especificando outras marcas aceitáveis para além do 'X' ou da impressão digital”.
-“Reintroduzir um segundo nível de controlo dos votos considerados inválidos com a requalificação destes a ser feita pelas comissões de eleições distritais, dada a discrepância existente nas interpretações sobre o que constitui um voto válido.
Administração Eleitoral
-“Garantir a independência orçamental da CNE através de uma linha de acesso directo e atempado aos fundos aprovados no Orçamento Geral do Estado, evitando que o desembolso dos fundos para a realização de eleições, incluindo o financiamento público da campanha eleitoral, esteja dependente do governo”.
-“Clarificar na lei a subordinação hierárquica entre os níveis central e mais baixos da administração eleitoral para garantir o respeito por directivas e instruções superiores”.
-“Implementar uma estratégia de comunicação pública eficaz, incluindo a publicação imediata e completa de todas as decisões, organização de reuniões consultivas com os partidos políticos de forma regular, e a contínua divulgação de informação aos intervenientes no processo, especialmente no período pré e pós-eleitoral”.
-“Aumentar a transparência e a confiança no processo eleitoral através da publicação de cópias originais dos resultados das mesas de assembleia de voto na página de Internet da CNE para consulta pública”.
Recenseamento Eleitoral
-“Criar e manter, através de actualizações nos anos eleitorais, um recenseamento eleitoral credível e permanente que goze de confiança pública e que reflicta com mais rigor o número de eleitores em cada província”.
-“Realizar uma auditoria independente dos dados provisórios do recenseamento eleitoral antes da aprovação dos dados finais do recenseamento”.
Campanha Eleitoral
-“Implementar a existente proibição do uso de recursos do estado para assegurar que as autoridades não abusam da sua posição para utilizar os bens públicos e mobilizar os funcionários públicos para fins de campanha eleitoral”.
-“As autoridades estatais deverão assumir responsabilidade na protecção das liberdades fundamentais dos candidatos, nomeadamente o direito à liberdade de reunião e de realizar campanha eleitoral num ambiente seguro, livre de violência contra membros e apoiantes dos partidos políticos. Os partidos políticos deverão também dissuadir os seus membros e apoiantes de interferir nas actividades de campanha de outros partidos”.
Meios de Comunicação Social
-“Converter o Conselho Superior de Comunicação Social (CSCS) num órgão regulador verdadeiramente independente, protegido contra interferência do governo, e em condições de actuar de forma transparente e de ser responsabilizado pelas suas acções, com um conselho de administração e membros recrutados através de um sistema inclusivo e competitivo”.
-“Melhoria da legislação para assegurar que os meios de serviço público são administrados por um conselho de administração independente e responsável perante o parlamento e não perante o governo”.
-“Revisão do Código Penal, Lei de Imprensa e outra legislação para eliminar as disposições desfavoráveis às liberdades de expressão e de imprensa, em particular abolir penas de prisão para casos de difamação de acordo com princípios internacionais”.
Observação Eleitoral e Delegados dos Partidos Políticos
-“A CNE deve assegurar a credenciação atempada de delegados dos partidos e de observadores”.
-“Criar um ambiente seguro e livre de intimidação para a participação de observadores eleitorais e representantes dos partidos em assuntos políticos e eleitorais”. (Carta)
O Director Nacional dos Hidrocarbonetos e Combustíveis, no Ministério dos Recursos Minerais e Energia, Moisés Paulino, diz haver “crime organizado” no transporte de combustível com destino aos países do hinterland. Como consequência, a autoridade afirmou que o crime tem lesado o Estado em cerca de 2.5 biliões de Meticais por ano.
Em entrevista, ontem, à “Carta”, Paulino explicou que a descoberta da existência de esquemas de contrabando de combustível em trânsito no país é resultado da marcação de combustíveis, uma actividade iniciada, em Agosto, de 2018, com a finalidade de combater e prevenir a adulteração daqueles produtos, bem como minimizar as perdas de receitas fiscais com seu contrabando.
“Estamos a dizer que temos entre 30% a 40% de combustível em trânsito que ainda não controlamos. Isso equivale a uma perda de cerca de 2.5 biliões de Meticais aos cofres do Estado. É muito dinheiro que vai para as mãos de pessoas desonestas”, afirmou Paulino.
Dada a gravidade do crime, aquele gestor disse que a Direcção de Hidrocarbonetos e Combustíveis e a Autoridade Tributária de Moçambique que junto à empresa suíça SICPA implementam a marcação de combustíveis, vêem-se obrigados a redobrar esforços para estancar o problema.
“Queremos controlar o combustível em trânsito que, vezes sem conta, porque a sua carga fiscal é fraca, os operadores de má-fé, em crime organizado, introduzem de novo no sistema interno e isso lesa o Estado”.
Como forma de estancar o crime, Paulino apontou melhor fiscalização do combustível em trânsito nos armazéns aduaneiros nacionais. “É aqui nos armazéns aduaneiros que temos de melhorar a coordenação, o controlo, para percebermos o que nos faz perder esta receita. Se nós formos firmes nos armazéns aduaneiros, meio caminho teremos andado para controlar o combustível em trânsito”, frisou a fonte.
Além do projecto de marcação de combustíveis, o nosso interlocutor indicou que, para o combate do crime, as instituições contam com reforço e auxílio do novo Decreto n. 89/2019, de 18 de Novembro, que aprova o Regulamento sobre os Produtos Petrolíferos. (Evaristo Chilingue)
Depois da sua breve visita a Maputo, entre os dias 8 e 11 de Fevereiro, Tao Zhang, Subdiretor-Geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), diz que o fundo “está pronto para fortalecer ainda mais sua colaboração com as autoridades moçambicanas e ajudá-las a executar sua agenda de reformas”. Mas Tao Zhang não diz nem como nem quando. Entretanto, enfatizou a necessidade da boa governação e da transparência.
Em parco comunicado distribuído ontem, Zang disse: “Foi um grande privilégio visitar Moçambique pela primeira vez e conhecer em primeira mão as oportunidades e os desafios enfrentados pelo país. Foi uma honra especial conhecer o Presidente Nyusi e ouvir sua visão para o país”.
E acrescentou: “Estou satisfeito que a economia moçambicana esteja a se recuperar dos efeitos dos ciclones tropicais Idai e Kenneth no ano passado”.
Mas, disse ele, para que o crescimento acelere ainda mais e se torne mais inclusivo, é importante que as políticas económicas permaneçam prudentes e as reformas continuem. Isso incluiria ações para o fortalecimento da governação e transparência, enfrentar vulnerabilidades climáticas, e alcançar as metas do desenvolvimento sustentável”.
Fez também uma referência ao gás do Rovuma: “O sector do GNL em desenvolvimento no norte de Moçambique tem um potencial elevado e, dadas políticas e salvaguardas apropriadas, pode tirar milhões de pessoas da pobreza. Também ajudará a reduzir gases de efeito estufa, embora combustíveis com emissão zero ainda serão necessários na luta contra as mudanças climáticas”.
Durante a sua visita, Zhang também reuniu-se com os Ministros Maleiane, Tonela e Mondlane, mais o Governador do Banco de Moçambique Rogério Zandamela, para além de outros funcionários seniores e representantes do sector privado, da sociedade civil e da comunidade internacional. (Carta)
Marcelino dos Santos redigiu, de Portugal, onde se encontrava a estudar desde 1947, uma carta que seria publicada no prestigiadíssimo O Brado Africano, onde anuncia, com irredimível convicção, a sua combatividade, aos 20 anos. Isto nos finais dos anos 40. Permanecerá quatro intensos anos na antiga capital do Império. Estuda e conspira, milita clandestinamente. Envolvido numa organização dos estudantes das colónias, sairá para Paris, em 1951, onde prossegue a sua actividade política com premência, a par dos seus estudos. Abandonado o curso de engenharia, estuda ciências económicas e sociologia.
Reúne, no seu quarto, a 100 metros da Sorbonne, futuros lutadores pela liberdade. Intentava fazer um movimento anti-colonial, que precede a formação da frente – no caso de Moçambique - que irá concretizar o objectivo da luta. Participa em importantes encontros internacionais, como os festivais da juventude. Em 1959 é expulso de França. Razões? A sua intensíssima actividade política. Bélgica e Inglaterra inscrevem-se nos territórios de exílio.
Em 1961 (18 e 19 de Abril) participa na fundação da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas). O PAIGC, que nascera em 1956, representa a Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA (igualmente fundado em 1956) representa Angola, o MLSTP (nasceria em 1960) participa em nome de S. Tomé e Príncipe, e a UDENAMO (também de 1960, que será substituída pela ulterior FRELIMO na organização) defende o nome de Moçambique. Marcelino dos Santos é eleito secretário-geral da CONCP e secretário das Relações Exteriores da UDENAMO. Seria, em 1962, fundador da FRELIMO, da qual chegará a ser vice-presidente.
Em Setembro de 1990, quarenta anos depois daquela imprescritível carta, quis saber, numa longa entrevista que lhe fiz em dois dias, no seu gabinete de Presidente da Assembleia Popular, de onde herdara essa costela nacionalista.
Marcelino dos Santos: «O porquê de arvorar, de brandir essas ideias? É preciso considerar a realidade vivida: vários aspectos, seguramente. Mas o primeiro é que, quando eu deixo Maputo, nos anos anteriores, os mais velhos falavam sempre da “causa”, “a causa africana”. Muitas vezes só diziam: “a causa”. Alguns, na altura, com a idade do meu pai. Quando souberam que ia partir, se me encontrassem na rua diziam: “Vem cá, ó miúdo. Tu vais para Lisboa, não é?” “Sim”. “Então, vai lá e volta formado para vires defender a nossa causa”.»
O Brado Africano titula, numa breve e ilustrada coluna, “Dr. Marcelino dos Santos: Por notícias recebidas de Paris, soube-se, nesta cidade, que um moçambicano acaba de concluir a sua formatura em Ciências Económicas e Sociologia na Universidade de Sorbonne. Trata-se de Marcelino dos Santos, ex-aluno da Escola Técnica Sá da Bandeira, que cedo deixou a sua terra a caminho da Mãe-Pátria, seguindo depois para Paris, onde prosseguiu os seus estudos. Formou-se agora em Ciências Económicas e Sociologia, concretizando o seu ambicionado sonho. Marcelino dos Santos, nosso distinto colaborador, a quem sinceramente felicitamos, é filho do sr. Firmino dos Santos, ex-administrador deste jornal, e de sua esposa sra. D. Teresa Sabina dos Santos, a quem endereçamos os nossos parabéns.”
Como se atesta acima, Marcelino dos Santos foi e formou-se. A despeito, não voltou de imediato. A “causa” reteve-o perto de três décadas. Quando voltou trazia consigo “a nova árvore/ da Independência Nacional”, como escreveu num dos seus mais belos e célebres poemas - “É preciso plantar”.
Marcelino dos Santos: “É preciso plantar/ mamã/ é preciso plantar// é preciso plantar/ nas estrelas/ e sobre o mar// nos teus pés nus/ e pelos caminhos// é preciso plantar// nas esperanças proibidas/ e sobre as nossas mãos abertas// na noite presente/ e no futuro a criar/ por toda a parte/ mamã// é preciso plantar// a razão/ dos corpos destruídos/ e da terra ensanguentada/ da voz que agoniza/ e do couro de braços que se erguem// por toda a parte/ por toda a parte/ por toda a parte// por toda a parte/ é preciso plantar/ a certeza/ do amanhã feliz/ nas carícias do teu coração/ onde os olhos de cada menino/ renovam a esperança// sim mamã/ é preciso/ é preciso plantar// pelos caminhos da liberdade// a nova árvore/ da Independência Nacional”.
A mãe Teresa viu-o plantar essa árvore. Aliás, a poesia do filho elucida o amor incorruptível pela pátria através da figura da mãe. Não só no poema que citei, mas num conjunto significativo de textos. A mãe é a metáfora dessa terra que é preciso libertar e pela qual se luta. O pai, antigo operário dos Caminhos de Ferro, não o viu chegar, na condição de herói e mito da velha “causa”. Morreu em 1965 aos 67 anos. Para além dos Caminhos de Ferro, onde trabalhara, fora da direcção do jornal fundado por João Albasini e onde avultaram nomes como os de Estácio Dias, pai de João Dias, escritor prematuramente desaparecido.
Marcelino não acompanha aqui a florescente actividade literária e a consagração de nomes como José Craveirinha (1922-2003), Noémia de Sousa (1926-2002), Rui Knopfli (1932-1997), Rui Nogar (1932-1993) ou Luís Bernardo Honwana (1942). Noémia segue o caminho do exílio e vai para Lisboa em 1951. Quando o cerco aperta em Portugal, salta a fronteira, com a filha às costas, em 1964. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos em Paris. Noémia, cujo nome se tornou, por alguma razão estranha, disjuntivo neste percurso, está na primeira linha da luta anticolonial e participa desta geração de libertários. Não obstante, ela falou-me sempre com ênfase e empatia dos seus companheiros: o guineense Amílcar Cabral (1924-1973); os angolanos Agostinho Neto (1922-1979), Lúcio Lara (1929-2016), Viriato da Cruz (1928-1973) ou Mário Pinto de Andrade (1928-1990); o moçambicano Marcelino dos Santos (1929). Foi com a Noémia que eu obtive o retrato humano e apaixonante de Marcelino, longe da retórica dissimulada da revolução.
Eduardo Mondlane, impedido de continuar os seus estudos na Universidade de Witswatersand, na África do Sul, permanece um ano em Lisboa, no início da década de 50, enquanto aguarda a oportunidade para ir para os Estados Unidos. Está também em Lisboa Fernando Vaz, médico, envolvido, como muitos dos estudantes, na Casa dos Estudantes do império. Não se estabelece ainda entre eles uma forte ligação: Mondlane vai para os Estados Unidos e Marcelino para Paris. Terá, na capital francesa, uma frenética actividade política. Participa no Festival Mundial da Juventude em Bucareste, em 1953, com Agostinho Neto, Guilherme Espírito Santo, de S. Tomé e Príncipe, e Vasco Cabral, da Guiné-Bissau. Foram para lá enquadrados no MUD-Juvenil (Movimento de Unidade Democrática, de oposição ao regime de Salazar), mas apresentam-se como representantes de cada um dos seus países, com tabuletas indicando Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe. Mais tarde irão representar os seus países nos festivais de Varsóvia (1955) e Moscovo (1957).
Marcelino dos Santos começa por estudar em Grenoble, mas muda-se para Paris. Em Grenoble leram Franz Fanon (1925-1961). O seu Pele Negra, Máscaras Brancas surgiu em 1952 e esteve na origem de debates. O Orfeu Negro, de Jean-Paul Sartre, fora publicado em 1948. A questão da raça inflamava os contraditórios. Discutiram estes e outros livros. Organizaram palestras denunciando aquilo que pareciam ser aspectos menos positivos na obra de Fanon. Isto ainda em Grenoble, onde estava com Aquino de Bragança (1924-1986). Partem para Paris em 1953. Aquino de Bragança acompanha-o. Mário Pinto de Andrade transfere-se de Lisboa para Paris em 54 e desenvolve sobretudo uma importante actividade cultural, da qual avulta a sua colaboração na Presence Africaine. O Congresso dos Homens Negros é um dos eventos realizados pela Presence Africaine.
Paris é também uma capital cultural indeclinável e Marcelino convive com grandes figuras do mundo cultural africano ou com o ideário próximo dele: Aimé Cesaire (1913-2008, poeta, dramaturgo, ensaísta e político, ligado ao movimento surrealista e fundador da Negritude, nascido na Martinica); Alioune Diop (1910-1980, senegalês, escritor e editor, fundador da Presence Africaine, talvez a maior figura intelectual negra da primeira metade do século XX, o primeiro preto editor em França); Léon-Gontran Damas (1912-1978, escritor e político francês, nascido na Guiana francesa); David Diop (1927-1960, poeta senegalês, morreu cedo, um dos poetas promissores de língua francesa, ligado à negritude, de quem Marcelino foi muito próximo); René Depestre (poeta do Haiti, tem hoje 91 anos); Edouard Glissant (1928-2011, poeta e romancista francês, oriundo da Martinica); entre outros.
Conviviam, embora o olhassem com alguma desconfiança, com Leopold Senghor (1906-2001, escritor e político, foi presidente do Senegal entre 1960 e 80, e foi, com Aimé Cesaire, um dos ideólogos da Negritude). Conviveu ainda com W. E.B. Du Bois (1868-1963), historiador, sociólogo, nascido nos EUA e autor e figura célebre. Também conviveu com Jacques Rabemananjara (1913-2005), político e intelectual malgaxe. Ou com Jean Price-Mars (1876-1969), do Haiti, escritor, médico e diplomata.
Mário Pinto de Andrade contou-me certa ocasião que Marcelino dos Santos cedeu parte dos direitos autorais de um livro seu publicado na antiga União Soviética que permitiu a edição do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Há quase trinta anos confirmei com o próprio Marcelino dos Santos esta informação. O Caderno foi importante iniciativa editorial de Mário Pinto de Andrade e de Francisco José Tenreiro (1921-1963, poeta santomense, autor de Ilha de Nome Santo, desaparecido prematuramente). Este caderno é dedicado a Nicolás Guillén, poeta cubano. Tem poemas de Noémia de Sousa.
Marcelino dos Santos: “Verde carmin azul e violeta/ e nós / marchando no planalto.” Estes belos versos foram escritos em 1968 durante a marcha pela liberdade: “e sempre nos nossos olhos/ as cores suaves e doces/ de verde carmin azul e violeta/ na paisagem quente/ da terra livre de Moçambique”. O poema “Nampiali” é um dos mais belos textos deste poeta-guerrilheiro. Em 1953, escrevera, ainda em Paris, “Canto do amor natural”, que será muitos anos depois o título do seu livro em Moçambique, em 1987. “No lento balancear/ Das palmeiras/ Torcendo-se em movimentos melancólicos/ eu canto-te o meu amor.”
Marcelino dos Santos: “Mãe negra/ Embala o seu filho/ E na sua cabeça negra/ Coberta de cabelos negros/ Ela guarda sonhos maravilhosos”. A figura da mãe, no sentido denotativo, mas também a metáfora: a terra. O sonho intransigente da liberdade. A luta, a razão da luta. Pátria, Moçambique: “fonte do meu querer/ e razão do meu viver”, escreverá em “À minha Pátria”. “Terra mãe” será título de um dos seus poemas.
Poeta da revolução, combate, através das palavras, de seus versos, alguns, muitos, panfletários, como assumirá, no texto “Para uma moral”, de 1967. Poema-panfleto, poema-comunicado, documento, didáctico e moralista. Texto destinado a jovens que preferiam seguir seus estudos em vez de empregar os seus conhecimentos ao serviço do povo nas zonas libertadas: “Continuar ou não a estudar/ não é problema teu nem meu// é nosso”. “Somos soldados da FRELIMO”, dirá no “Primeiro panfleto”. No “Segundo panfleto”: “O importante não é o que EU quero/ o que Tu queres// mas o que NÓS queremos/ A Revolução é assim”.
A minha geração, quando, nos anos 80, intentou um caminho, fez o percurso literário adverso. Não tenho pruridos em considerar e relevar a importância histórica e, talvez sociológica, daquela produção literária, designada de combate, mas tinha e tenho reservas de cariz estético. Discuti muito com o Rui Nogar a este respeito. Discutimos fraternalmente. Mas o Rui tinha o condão de acreditar que a causa era de ordem suprema na literatura e, mesmo assim, não enjeitar outras possibilidades. Foi o Nogar, aliás, que acolheu a nossa geração, que era uma geração rebelde, que era uma geração crítica, na Associação dos Escritores. Foi ele quem lhe criou espaço para a afirmação. Não é por acaso que a nossa geração se afirma com uma poesia lírica contraditando esta – a do Rui Nogar ou Marcelino dos Santos, designadamente.
Marcelino dos Santos, que também foi Kalungano ou Lilinho Micaia, publicou o seu único livro em Moçambique há 30 anos – Canto do Amor Natural - pela Associação dos Escritores. Foi, por assim dizer, um acontecimento literário. A densidade histórica da sua poesia merecia um novo acolhimento e enquadramento editorial. Mas vivemos num país onde nem sequer os seus heróis – Marcelino dos Santos é indubitavelmente um deles – merecem a atenção e o cuidado dos poderes públicos na área da cultura para que a sua obra seja reenviada para o trânsito dos leitores, lida, estudada e reconhecida. O poeta-revolucionário merece essa láurea em vida. A sua produção recente, alguma dela que integrou as antologias que organizei ou co-organizei, ou outras, devia ser resgatada. Fica o repto para quem de direito. Marcelino dos Santos é um dos poetas mais importantes da chamada poesia de combate e a sua poesia confunde-se não só com a sua vida mas com parte relevante da nossa história. Por outro lado, não é possível discernir sobre a sua poesia sem pensar e entender o seu percurso de vida, de militante e de combatente. A sua utopia. A utopia da sua geração.
Primeiro na Associação dos Escritores que ele frequentou assumindo-se como poeta e despojado do poder – e é interessante isso e é aparentemente paradoxal -, depois em inúmeras circunstâncias, convivi, ao longo dos últimos 30 anos, com Marcelino dos Santos, e, não obstante as contradições que marcaram e marcam o seu trajecto pessoal, aprendi a admirá-lo e respeitá-lo sem sujeitar o meu juízo a nenhuma espécie de rigor moral ou de outra ordem. Quem seria eu para o fazer? Mais do que isso, reputo como um dos mais coerentes da sua geração. Não o vi transfigurado nem camaleónico. Podemos não concordar com ele, mas temos que respeitar a sua coerente obstinação.
Releio os seus poemas, relembro a sua longa e bela trajectória, recordo-me das imensas ocasiões em que falámos, discutimos fraternalmente, das vezes que o visitei em casa, do seu olhar penetrante, da sua voz poderosa, dos tempos em que ele era um tribuno audaz, um dos grandes tribunos moçambicanos, relembro o elogio fúnebre a Samora, a sua voz embargada, que a todos nós comoveu, das lágrimas de Marcelino diante do féretro de Machel, de outros momentos, tantos outros momentos, hoje e sempre, numa relação sempre fraterna do poeta e meu camarada de letras. Marcelino dos Santos morreu ontem, em Maputo.
Texto de Nelson Saúte, já publicado originalmente no jornal "O País". Recolhe elementos biográficos relevantes. O titulo é da responsabilidade de "Carta"