Por: Nando Menete/Assis Macaé
Num texto recente (Por onde andas, Kalungano?) partilhei excertos de momentos interessantes de uma reunião com o poeta e político Marcelino dos Santos. Hoje, vou partilhar fragmentos de um dia - e outras circunstâncias – na companhia de José Craveirinha (ou Mário Vieira, José Cravo, JC, Abílio Cossa, Jesuíno Cravo e José G.Vetrinha), o nosso poeta-mor, falecido a 6 de Fevereiro de 2003. Um pequeno gesto para celebrar a data (28 de Maio de 2019) do seu nonagésimo sétimo aniversário natalício.
Para iniciar, uns parênteses: Sempre soube quem era Marcelino dos Santos, a pessoa e a figura pública. O mesmo não era com José Craveirinha: Via-o (pessoa) na cidade e não me passava pela cabeça ou não tinha a certeza de que era o nosso poeta-mor (figura pública).
Nos anos 80, ainda infanto-juvenil, tive os primeiros “contactos” com José Craveirinha em sessões espontâneas e caseiras de êxtase cultural. Nessas memoráveis sessões – composta por uma mescla de gerações de familiares e amigos - cada um mostrava o seu arcaboiço cultural e até científico. A declamação de poemas emblemáticos de José Craveirinha e de outros poetas, antigos e actuais da altura, era o auge das sessões e que nos deixava aos prantos, quiçá pelos dias cinzentos da época. À luz do tempo, e então em vésperas da democracia dos nossos dias, essas sessões foram, para os participantes, os primeiros acordes do associativismo e exercício livre de cidadania. E Craveirinha fez parte dessa aurora, um processo que – até hoje - se vai consolidando, entre sucessos e retrocessos.
Era frequente avista-lo – sempre de boina preta- no bairro da Mafalala quando a malta da “Zona dos Bombeiros” – a que eu pertencia – se deslocava ao famoso bairro para afazeres recreativos (jogar e assistir futebol) e turísticos (assistir sessões de canto, música e dança). A boina preta – sua marca - fez parte da indumentária identitária da “zona dos bombeiros”. Suspeito que tenha sido uma imitação do “style” de Craveirinha.
Outras vezes, no trajecto de ida e volta à Mafalala, cruzávamos com Craveirinha, no portão ou nas redondezas de sua casa, na zona da Munhuana. Desses momentos, retenho o seu ar urbano e contemplativo tal “caçador de clicks” para os seus poemas. Tenho dito, em brincadeira, que eu vi poemas de Craveirinha a serem feitos. Se não, pelo menos presenciei a safra dos ingredientes.
Um outro local de avistamento era no Grupo Desportivo de Maputo, seu clube de coração. Neste clube, e como todos sabem, calculo, Craveirinha, em tempos idos, foi um atleta ecléctico e até à morte adepto ferrenho. Ele era uma presença assídua nas instalações do Desportivo quer a acompanhar treinos e competições, quer em singelas cavaqueiras. Certo dia – o que inspira o título deste texto - realizou-se um torneio interno da escola de minibásquete do Desportivo. A minha equipa (Bola ao Cesto) foi uma das finalistas. Os jogos decorriam de manhã e a tarde e José Craveirinha presenciou-os desde a fase de grupos até a final.
Quando terminou o Jogo da final, Craveirinha veio ter comigo. Puxou-me para um canto e lá fez as habituais perguntas de adultos. Após o aturado inquérito passou para a sessão de conselhos, na verdade onde ele queria chegar. Entre outras coisas, recordo que me aconselhou a não só “chutar” - eu só apostava em lançamentos à distância e certeiros (risos) - mas que devia procurar e soltar mais a bola, aproximar e “brigar feio” no garrafão. Estava a ouvir Craveirinha pela milésima primeira vez. As outras mil foram nas sessões culturais dos nossos primeiros “contactos”.
“Faça isso, rapaz!”. Assim despediu-me Craveirinha. Depois de um “Tá bom, tio!” fui a casa e num ápice - já noite - voltei para assistir ao jogo dos seniores. Era o habitual duelo dos eternos rivais e vizinhos: Desportivo vs Maxaquene. À entrada do pavilhão do Desportivo, pelo portão lateral direito e no compasso para ver alguém conhecido ou localizar um bom lugar disponível, deparo-me com uma mão levantada. Era o meu “conselheiro” a sinalizar que tinha um para mim. José Craveirinha estava sentado na dobra da bancada e mais acima. Aproximei e ele afastou-se, abrindo uma brecha entre ele e um seu amigo. Sentei-me, bem apertadinho, entre os dois e pouco depois a partida iniciou.
O jogo não corria bem para o Desportivo e uma vaga de apupos era direccionada ao treinador, António Azevedo. A dada altura, o amigo de José Craveirinha levanta-se e toca a chamar nomes ao treinador, terminando com um sonoro “seu careca!”. Em seguida, o ilustre amigo de Craveirinha - enquanto procurava encaixar devidamente a bunda na bancada, tal era a enchente no pavilhão - veio-lhe à consciência, perdida por alguns instantes, que José Craveirinha (sempre sereno e tranquilo) também era careca.
Ultrapassado o tempo suficiente de espera, já composto e comportado, o amigo de Craveirinha desculpou-se e desprendeu um melódico: “Oh! Zé Craveirinha, tu és diferente. És um careca intelectual!”. No momento caiu-me a ficha. Afinal o meu “conselheiro” era nada mais nada menos que José João Craveirinha, o poeta-mor e nacionalista moçambicano.
Anos depois, numa entrevista, a propósito da sua “galardoação” com o Prémio Camões (1991), o mais prestigiante da literatura em língua portuguesa, Craveirinha lamentou que o valor monetário do prémio encontrou-lhe a “dobrar a esquina”, aludindo, creio, à idade que lhe fugia.
Infelizmente, nunca mais estive “cara-a-cara” com o poeta-mor e meu “conselheiro”, José Craveirinha. Acho que pesou o facto de eu ter passado para o outro lado da fronteira (Maxaquene) poucos dias depois do jogo a que assistimos, sentados, na dobra da bancada - à direita - do Pavilhão do Desportivo. Saravá, Mário Vieira!
Ele olhou para mim, aflito, como se me conhecesse. Eu estava atrasado nesse dia (minto, quase todos), por isso não lhe dei ouvidos quando num tom agudo vibrou:
- Psiu!, coloca-me ali.
Enquanto andava, apressadamente, descompassado, uma perna duas vezes a frente da outra, como que a pular galhos, voltei-me para trás a fim de testemunhar o tal lugar que o coitado ansiava se ver colocado. Vi, não fui contado: era uma verdadeira guerra matinal. Segundo contou o fulano há muito aquele cruzamento é palco de combate entre as tropas ferrenhas do General Alexandre dos Santos e egoístas do Major General Carlos Mondlane. Quase que nunca alcançam consensos. Já houve, inclusive – segundo conta – bombardeamentos e algo pior, sobretudo àquela hora: entre às seis e quase perto das sete horas.
Olhei para o sujeito, com um ar sarcástico, mas o meu pescoço declinou quando notei que jamais o alcançaria as fuças e, claro, temendo represálias disse apenas aos meus botões algo que ele exigiu ouvir sem reservas. Aí que chutei:
- Como dois generais terão mesmo que se entender? Como se faz isso, ora? – Já nem parecia estar carregado de pressa, deixei a trouxa da urgência cair ali mesmo, sem medir a gravidade, e olhei para onde a minha vista chegava no sujeito e descarreguei: - onde viste tu, em que parte do Globo, Generais baixarem a guarda. Viste como foi titânica a luta entre Guebuza e Dhlakama – zombei – aquilo é de gurus, gajos com patência, esses não dão tréguas.
Inclinado, quase a torcer a coluna para fixar seus olhos de três cores no meu metro e setenta, ouvia espevitado: - ah!... – retorquiu. Ganhei pujança: - com Chissano, um diplomata, não foi assim. Até o mecânico provou ser bom de lábia e tolerância. Já o tenente-general conhece as palavras da guerra: espingardas e granadas.
- Verdade… - consentiu, com um ar maculado.
Voltei a olhar para aquele rebuliço entre as tropas dos dois generais. Nós os civis, para atravessarmos aquele cruzamento precisamos, antes, orar. Alguns clamam a Deus, outros aos seus ancestrais para poder se verem noutra margem. Aquilo é um verdadeiro atentado à saúde do peão, que incansavelmente contribui para as contas do Estado com o seu sacrificado imposto. Mas, na hora de ir quer ao serviço ou à escola – pelo menos naquela parcela de Maputo não sabe dizer se vai chegar são noutra margem da estrada.
As balas passam mais depressa que o próprio vento. Atravessam o ar até assustar as folhas e os pássaros. Não há qualquer tranquilidade. Há, até, umas lombas por ali, uma espécie de barreira para as balas, mas de nada servem. Tanto as tropas de Carlos Mondlane (também conhecidas como Dona Alice) ou de Alexandre dos Santos (para quem vai às Mahotas) ficam entontecidas e muitos desconhecem as regras de trânsito naquele lugar. E que regras valem para gente que só pensa no seu próprio umbigo!?...
O mais grave nota-se quando os alunos querem se fazer a escola. Esperam horas a fio para poder ter a outra margem nos sapatos. E nos dias de testes ou exames? Os meninos ignoram os projéteis a eles apontados como se de criminosos se tratassem e tomam o trajecto que lhes é merecido ao encontro do futuro. Aí, uma manada de berros – à buzinadelas – fustiga a paz da manhã.
Vezes há que o trânsito é cortado, pois houve tombos, raspagens e outras infelicidades. E nem um polícia, aquele que acho que o meu bom amigo me confunde, está para apaziguar os ânimos.
Pensei tudo isso olhando para aquela lufa-lufa. E pensei mais: o maldito Simango, aquele que veio com esta boa ideia de alargar a cidade, criando vias de acesso e de escape, não pensou nestes dois generais astutos que não dão trégua mesmo quando já é depois das quinze? Claro que não pensou, resolvi-me. Como não pensou numa data de obrigações: eliminar de vez a lixeira de Hulene, que por sinal a Major General Carlos Mondlane dá para lá, ou terminar aquela estrada que vai dar a Praça dos Combatentes saindo da família Guebuza, no Albazine, ou mesmo retirar os vendedores ambulantes à sério [como tenta o fazer o economista (agora) de volta onde não deveria ter saído] e não colocando cães raivosos nos nacos dos nossos irmãos.
Ele (o meu bom Simango) não sabia mesmo que esta história de cruzar dois Generais não ia terminar com um final feliz? Um professor de Português que se preze (como ele) desconhece os desfechos dos enredos? Ah, sei: julgou que aquela rampazinha, tranquila, pudesse travar a sede das tropas belicistas em chegar ao centro da cidade à horas. Quanta ingenuidade!
- Hei! – cutucou-me o homem nas alturas.
Dei por mim o atraso já se tinha acelerado. O que vou responder a este coitado?, indaguei-me. Passo apenas por um cidadão inconformado, não tenho quaisquer truques de ali o deixar. Vi, de repente, um carro a piscar a minha esquerda. Reconheci aquele uniforme e lá fui abrir a porta pesada. Bem que queria o ter ajudado, mas a minha boleia não podia esperar eu inventar truques. Prometi resolver o seu desejo. Antes da viatura partir, embora as rodas já semeassem covas nos pavês, perguntei: - qual é o teu nome, amigo?
- Porquê? – já irritado.
- Hei-de falar com alguns amigos do Município. Tenho lá um tipo na Comunicação, também é escritor , quem sabe possa mexer algum pausinho.
Ficou cabisbaixo. Como se o Município não lhe confiasse esperança. Mas quando notou que já me distanciava, gritou com todas as letras, até seus três olhos acenderam ao mesmo tempo:
- Semáforo.
Conta outra, ó Julião! Você e o seu comparsa Gustavo foram os primeiros moçambicanos que defenderam as dívidas ocultas e combateram a Kroll em nome de uma pseudo-soberania. Você mesmo dizia que aceitar a auditoria da Kroll era o mesmo que deixar que alguém baixasse a calcinha da sua mãe e mostrasse o rabo dela ou lhe abrisse as pernas em público. Esqueceu ou "tá-sa-fazer"?! Espanta-me que hoje esteja a insinuar que malta Guebuza está a financiar os ataques terroristas de Cabo Delgado, os mesmos terroristas que até uns dias atrás você dizia que eram uma paranoia nossa. Ó Julião, pare de brincar de pensar! Pensar é coisa muita séria. Não se ache mais patriota que os outros... Não pense que você tem mais gema que nós.
Se Guebuza enganou o povo, foi graças a vocês puxa-sacos que o rodeiavam e o assessoravam. Se Guebuza era avesso à crítica, foi por causa de vocês lambe-botas que o aconselhavam desta forma e faziam uma cortina de ferro à sua volta. Se Guebuza propalou falsos discursos de combate contra a pobreza, foi graças a vocês aduladores que o ajudavam a difundir esses slogans. Se Guebuza enriqueceu ilicitamente, foi graças a vocês kiwistas que o ajudavam a comprar mais balalaikas com mais bolsos e fundos. Se Guebuza parecia inteligente, foi graças a vocês académicos-fosfóricos que o atribuíam "honoris-causa" em desenvolvimento de algo-que-só-vocês-sabem. Se Guebuza nos f*deu, foi graças a vocês culambistas que pegaram no mangalho do velhote e enfiaram-nos cú adentro. Se Guebuza está a financiar os Al-Shabaab, então aprendeu convosco... É que vocês foram o primeiro grupo terrorista que ele criou.
São vocês, membros do Gê-40, que repetiam o refrão de "visionário" e de "filho mais querido" até nos esgotos. São vocês que fizeram com que Guebuza pensasse que era o nado vivo mais esperto desta pátria. São vocês que tinham "privatizado" toda a imprensa estatal para promover o ódio e cantar aleluias ao Guebuza. Se Guebuza é um lesa-pátria, vocês o ajudaram nessa empreitada. Vocês são os padrinhos das dívidas ocultas e de outras falcatruas. Não venham hoje dizer que Guebuza deve pedir desculpas ao povo. Não! Quem deve pedir desculpas ao povo são vocês. O problema de Guebuza foi ter confiado em dementes.
Parem com esse cinismo esquizofrénico! Não adianta se fazerem de bonzinhos. Quando começamos a escrever sobre as dívidas ocultas, diziam que eramos lacaios do Ocidente. Quando começamos a escrever sobre os ataques em Cabo Delgado, diziam que eramos mercenários pagos para semear terror no nosso próprio país através das redes sociais. Quando chorávamos Cistac, vocês festejavam o abate de um "ingrato". Quando orávamos por Macuane e Salema, vocês alimentavam o discurso do "ajuste de contas". Aliás, muito recentemente o físico-nuclear veio dizer que "quem morreu com o ciclone IDAI quis morrer". É o mesmo que hoje está a celebrar o regresso do Chang sob resguardo de um interesse nacional selectivo e obscuro. Um mentecapto por vontade própria!
Chega de paspalhices! Não me venha com essa de "pede desculpas públicamente, para o povo mudar a opinião errada que tem a teu respeito!" (sic). ACORDA!!! Pare de fumar gonazololo ao mata-bicho! Não queremos desculpas de Guebuza nós. Dispensamos! Se você quer acertar as contas com ele, que não seja em nosso nome. Se existe alguém a quem Guebuza deve pedir desculpas é à vossa quadrilha que esperava "um-algum" vindo da Ponta Vermelha. Não se apoie em nós para cuspir suas frustrações. Isso é cobardia! É hipocrisia! E para seu governo, a opinião que temos a respeito de Guebuza não é errada. A nossa opinião é certa, muito bem certinha, e sempre dissemos que estávamos certos a respeito desse "visionário". A nossa opinião a seu respeito, ó Juliãozinho, também é certa: você é um lerdo que pensa que pensa.
Vá trabalhar! Chega de truques para comer de borla! A nós você não engana e nunca enganou. Não vamos cair nessa armadilha de missivas públicas ao seu parente adoptivo. Pare com essas orgias intelectuais! Reconcilie-se com o seu diploma!
- Co'licença!
O que nos faz acreditar em ti é o teu peito aberto permanentemente entregue às balas. Aos verdugos atentos à tua volta, prescrutando-te os pensamentos. E nós temos as baquetas preparadas para o rufar dos tambores, porque a certeza de que tu representas o amanhecer que ainda vem, assim nos diz. Se assim não fosse teríamos sabido. Sentiríamos isso nas palavras que dão luz à tua clarividência. À tua saga.
Há muito que esperávamos por uma mulher como tu, desafiando a fúria das orcas no meio da tempestade. E agora estás aqui sem a menor possibilidade de retrocederes. Estás exposta sem escafandro para te protegeres do fogo que te cerca, e nós estamos debaixo da terrível ansiedade. Sem a menor capacidade de libertar o tigre da nossa revolta. O nosso tigre és tu, FátimaI. Aliás, a única coisa que podemos fazer é seguir-te.
Eles estão com medo de ti. Tremem em todo o ser quando falas e olhas para arrogância deles de frente. Dizendo-lhes sem vacilar que o tempo “ruge” na luta da juventude que tu representas. És o nosso instrumento de medida. Cada vez que apareces na televisão, a nossa esperança aumenta. Concentramo-nos todos diante dos ecrãs porque a Fátima Mimbiri vai falar.
És o nosso depósito de géneros. O nosso arauto que corre seguro ao encontro da luz, nestas trevas implantadas despois das armas que anunciavam a liberdade na epopeia das matas. Recusas-te a ficar na popa deste imenso barco navegando à deriva no oceano Índico revolto. Estás na proa desmentindo todas as falácias. É a ti que cabe a descontrução das palavras dos manhosos, que urdem diariamente as naus do desespero para atravessarem o fosso que eles próprios construíram. E tu olhas para eles com desdém.
Na quinta-feira, na STV, só queremos ouvir a ti. Eles também ficam ansiosamente à espera desse dia. Sabem que o nosso combustível és tu. Tremem quando pensam em ti. Bóiam nas discussões que tentam manter contigo. E no lugar de serem eles a encurralar-te, tu é que os cercas com a rede de emalhar das tuas palavras. Lúcidas.
Esta carta é da lavra dos nossos sentimentos mais profundos. Representa a necessidade urgente de cura das nossas feridas dolorosas. E tu, Fátima, recebeste a missão de ser a nossa enfermeira. É a ti que recorreremos em todos os momentos para nos indicares o azimute que devemos seguir. E enquanto isso, continuaremos na longa espera com as orquídeas mais lindas para ti.
Vêem-me essa pergunta a propósito da homenagem pelos 90 anos de Marcelino dos Santos - o nacionalista histórico e temido membro fundador da FRELIMO - celebrados no passado dia 20 de Maio de 2019. Na verdade, não sei bem a razão da pergunta. Também não sei a razão por que escrevo estas linhas. Estarei a homenageá-lo? Não sei!
Na esteira da homenagem, e através dos diversos depoimentos e arquivos audiovisuais passados nos media, não me surpreende a dimensão da sua grandeza, mas fica sempre a interrogação ou a sede de se saber mais e cada vez mais sobre a trajectória política e cultural de Kalungano, Lilinho Micaia ou simplesmente Marcelino dos Santos.
Venho contando em privado os “meus encontros” com Marcelino dos Santos. Agora, tomo este momento para partilhar parte de um desses encontros como meu singelo contributo pelas suas “noventas rosas vermelhas”, palavras de Óscar Monteiro, membro sénior da FRELIMO, no tributo que presta ao seu mentor, que acabo de ler no Jornal Notícias do dia natalício de Kalungano, e que utilizo, como empréstimo, com sua suposta permissão.
Em meados de Dezembro de 2006 fui convocado para participar numa reunião na sede do Partido FRELIMO com Marcelino dos Santos. A convocatória era estendida a toda a equipe de trabalho que coordenou a realização em finais de Outubro de 2006 do primeiro evento do Fórum Social Moçambicano (FSMoç), um espaço alternativo e crítico de debate público organizado por um grupo de organizações da sociedade civil moçambicana. Confesso que, na altura, alguma carga de medo tomou conta de nós e que só foi aliviada por conta da proximidade com o pessoal encarregue de interagir connosco na preparação da reunião cuja agenda seria em torno do evento que organizámos.
Para efeitos do presente texto, não me irei debruçar sobre o conteúdo dessa reunião (ficará para uma outra ocasião, assim como outros episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos). Vou apenas partilhar algumas situações ou momentos especiais que me marcaram, nessa reunião. Adianto já que foi muito interessante e que houve direito, por solicitação de Marcelino, a uma segunda rodada, uma semana depois, e a um convite para o pessoal do FSMoç capacitar/interagir com os quadros do partido, no âmbito dos propósitos do FSMoç, que para Marcelino dos Santos eram os mesmos que guiaram a fundação da FRELIMO e que conduziram a luta de libertação nacional.
No dia programado (finais de Dezembro de 2006) e à hora marcada (9h) lá estávamos na sede da Frelimo. Qualquer coisa como estar na toca do lobo. Do lado da comitiva da Frelimo, chefiada por Marcelino dos Santos, prontificava o ora deputado Edson Macuacua, João Bias e Florentino Kassotche para citar alguns dos integrantes. Coube-me, na qualidade de Secretário Executivo, encabeçar a equipe que representava a estrutura de coordenação para a realização do FSMoç, e assinalo, também, as presenças de Ahmad Suca, Thomas Selemane e Silvestre Baessa, companheiros com notável contributo na elevação da cidadania no país.
Marcelino dos Santos tinha na mesa os documentos do FSMoç, destacando o Plano Nacional. Este estava excessivamente sublinhado e com diversas cores e anotações, evidenciando que o tinha lido, como também que vinha “chimoco”. Para a nossa satisfação, Marcelino começa a reunião elogiando a qualidade dos documentos, admitindo que não via há bom tempo algo parecido na pérola do Índico, o que o deixava contente, serenando os nossos corações e receios. Ele ainda perguntou se tínhamos lido os estatutos da fundação da FRELIMO, pois os nossos documentos tinham o mesmo espírito e que ele vislumbrava possíveis pontes que se podiam construir entre o Partido FRELIMO e o FSMoç.
A reunião foi repetidamente interrompida por intervalos de telefonemas de e para Marcelino dos Santos, desculpando-se em seguida pelos transtornos. Por volta das 12 horas e quando pensávamos que se estava prestes a encerrar, mais um telefonema, e Marcelino termina a chamada dizendo ao interlocutor que só teria tempo no final da tarde, pois a reunião que estava a orientar se estenderia até às 16/17 horas. Felizmente não foi um susto para nós, pois conhecíamos a fama das demoradas reuniões da FRELIMO e com a particularidade de entrarem zangados e saírem sempre coesos e unidos.
Num dos telefonemas, apercebemo-nos de que era o Presidente Guebuza ou alguém próximo a confirmar um encontro. Depois de desligar, Marcelino comentou que estava desapontado ou preocupado com a hostilização do Governo de Guebuza ao de Chissano, celebrizada na famosa expressão “combate ao deixa-andar”. Referiu, ainda, que tinha pedido um encontro, creio do Partido, pois era tempo para se pôr termo à situação que até embaraçava o Partido FRELIMO. Um tempinho depois, como se constatou: o combate ao deixa-andar saiu do discurso governamental.
A dado momento, debruçando-se sobre a reacção do povo por qualquer insatisfação, Marcelino recordou as escaramuças na então Cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, em Setembro de 1974, entre a FRELIMO e o Governo Português, que selou o processo para a independência de Moçambique. Ele contou que alguns colonos foram assassinados com alguma barbárie numa revolta popular em resposta a atitudes de alguns sectores coloniais que estavam em contramão. Aproveitei a ocasião e informei que tinha um livro (que foi) escrito nesse período e que retravava, em parte, o que ele acabara de contar. Nesse instante, Marcelino olhou-me e franziu a testa como quem estivesse a desconfiar da veracidade do que tinha acabado de ouvir.
Em outro momento, Marcelino dos Santos anotou que acabava de ler o livro “Memórias em Voo Rasante” de Jacinto Veloso, outro membro sénior da FRELIMO, lançado em 2006, e por coincidência eu e o Silvestre Baessa acrescentámos que também o tínhamos lido, por sinal, o mesmo exemplar. Da leitura do livro ou da conversa sobre o mesmo com Jacinto Veloso, Marcelino disse - embora os dois políticos fossem companheiros de jornadas há várias décadas - que se apercebeu de que um dos livros que influenciou o General Veloso foi o “Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que, também para ele, é uma referência e contribuiu grandemente para a sua consciência política.
Ainda sobre o livro de Zamora, Marcelino lamentou que nunca tenha visto o original e que apenas tenha lido fotocópias. Voltei a aproveitar o momento, e disse-lhe que eu tinha o original. Desta vez, interrompendo o gole de água, Marcelino dos Santos abriu mais os olhos, direccionando-me com intensidade. Em seguida, apontou-me o seu dedo indicador, e com o tom de voz mais ríspido e denotando um iminente sorriso exigiu veementemente: Eu quero ver a sua biblioteca!
Cá por mim, pensei: Agora é que me lixei. Desde então, fiquei com uma promessa oculta de passar-lhe o original do “Processo Histórico” de Juan Zamora, e eu ficar com uma fotocópia!
Por onde andas, Kalungano? Agora sei a razão da pergunta. De certeza que não lhe procuro para saldar a minha promessa oculta ou mostrar-lhe a minha biblioteca, mas apenas para beber mais do teu “Processo Histórico”. Acredito que não seja só do meu interesse. É um Imperativo Nacional.
Saravá, Lilinho Micaia!
Entre os recursos que Clifford Geertz usou para vincar o interpretativismo como corrente de reflexão e problematização antropológica, tomo de empréstimo a sua rearticulação de perspectivas ética e émica, através das quais aciona a possibilidade de compreensão, usando noções e conceitos próximos da nossa própria experiência e vivência para alinhavar paramentos de leituras e interpretação de noções e conceitos relativamente distantes da nossa experiência. O que vemos, lemos, ouvimos e/ou experienciamos é passível de ser objecto de apreensão e compreensão, com recurso a uma multiplicidade de lentes. O fascinante é que a consciência disso e a vigilância epistemológica que lhe deve acompanhar amplia a possibilidade de redução do enviesamento interpretativo.
O folclore da "revolução moçambicana" é povoado por expressões e jargões de significação estruturante e profunda densidade simbólica, reflexo de um alto investimento visando formatar, estabelecer fronteiras, vocalizar e dar sentido ao movimento de libertação, posteriormente autointitulado "guia do povo moçambicano", como plasmado naquele hino: " ...viva viva a Frelimo/ guia do povo moçambicano/ povo heroico de armas em punho/ o colonialismo derrubou...".
O celebrado povo de armas em punho, para os desavisados, vide a bandeira nacional que flutua armada e que talvez continue flutuando armada por algum tempo por ser um dos feitos em que muitos se identificam e se sentem representados, especialmente em conjuntura de negações, alheamentos e distanciamentos, alguns dos quais sintetizados em " #hastag's fulano e sicrano, isto e aquilo não me representa", como artifício de reivindicação de outras narrativas.
Em tempos de (des)encantamentos, e mesmo fora deles, é pertinente não usar, à esmo e acriticamente, expressões prenhes de significações, a maior parte das quais consideravelmente amargas sobre a história política de Moçambique. Sob pretexto de "purificação de fileira", os guardiões do socialismo aspirado científico embarcaram em excessos de verborragia descaracterizante e uso de violência extrema, traduzida em execuções quase sumárias, vilipêndio de desafetos em praça pública e até terrorismo paralisante em que muitas pessoas confrangiam-se no seu potencial criativo e produtivo, reduzindo-se à "mediocridade de massa", para não parecer afrontar o incisivo e escrutinador olhar dos vigilantes da "pureza ideológica" e de "estirpe", semeados nos bairros, aldeias e locais de trabalho.
O excessivo zelo em estabelecer e salvaguardar uma certa "pureza" de "linha ideológica", como parte do processo de definição da "razão da luta", objectivo de construção do quimérico "socialismo científico" e prossecução de "vitórias contra o subdesenvolvimento" foi tão visceralmente pontificado, tendo deixado indeléveis marcas e cicatrizes que caracterizam uma cultura política violenta e fraturante com potencial de ser usado e/ou alimentar os germes das múltiplas vertentes de dissidências e sustentação de argumentos fundacionais que viabilizaram bases ideológicas de contestação aos libertadores (independentemente de ter sido à prior ou posterior, no sempre controverso caso da Renamo, ou mais recentemente no misterioso caso do Podemos).
Pudera! A conversão de movimentos violentamente contestadores, particularmente os que tem experiências de algum tipo de triunfo na sua causa, não tem sido "líquido", e não raras vezes se pensam banhados de áureas de omnipotência acreditando (piamente até) em sinas e capacidades de triunfar sobre qualquer coisa ou agenda. A Frelimo incluso.
"Contra revolucionário", "reacionário", "traidor" e, posteriormente, "inimigo do povo", "xiconhoca", "açambarcador" (gosto desta), "candongueiro" e, mais recentemente, "partidariamente indisciplinado", "agente da mão" externa", "corrupto", "moçambicano da gema" em contraposição a um eventualmente "sem gema(!?)", são alguns dos palavrões que estiveram (estão) activamente presentes nas formas de leitura, classificação e interpretação das circunstâncias e eventos que caracterizam a progressão e o estabelecimento do movimento libertador como partido político e ator político central e com privilegiada posição de estruturação das características e rumos que o país assumiu (e assume), consciente e/ou inconscientemente dos virtuosos e/ou deploráveis resultados. Sem descurar que, in extremis, sociedade é um permanente constructo pelo que, nunca se saberá o desfecho de nada senão um perfilar cumulativo de eventos e tempos. Ainda bem que, como humanos desconfortáveis com o 'caos' inventamos marcos históricos e temporais como artifícios e recursos de apreensão e domesticação da existência.
O mais recorrente e significativo dos chavões é o que alude à "purificação das fileiras", pelo carácter maniqueísta e diádico (que reduz a estruturação da realidade entre pureza e perigo, ou bem e mal) ao mesmo tempo que imprime um sentido dinâmico, associado a ideia de vigilância contínua que, evidentemente denota um permanente alerta no interesse de salvaguarda do que se supõe ser fileiras impolutas, não obstante a transfiguração conjuntural do que isso signifique.
Em tempos, "fileiras puras" incluíam noções de incorrutibilidade, lealdades a presumíveis "interesses do povo", "primeiros nos sacrifícios, últimos nos benefícios" e outros, ainda que nunca tenham sido cuidadosamente esmiuçados. Premissas teleológicas, encorpadas em sentidos messiânicos, aparentemente autoexplicativos, funcionam assim mesmo. Aconchegam-se na força da repetição e na praxe que, sistematicamente esconjura o que não lhe parece abonatório ou conveniente sem precisar expor-se a qualquer desafio de razoabilidade e/ou enquadramento moral ou ético, fora dos limites da grelha totalitária que possibilita que se firme como expressão de consequências fenomenológicas.
Quando Mary Douglas dissertou sobre pureza e perigo, mais do que enunciar a coexistência cosmologicamente significativa de teses e antíteses, prenunciou as linearidades dualistas e multifacetadas da vida em sociedade, eventualmente aprisionados em quadros de maniqueísmos funcionalistas e de instrumentalização de noções e conceitos socialmente estruturantes.
Para além desse olhar cético e pouco complacente com o qual entretenho-vos, inclino-me a pensar que o "perigo" é tão maestro da orquestra da vida como a própria "pureza" e, nessas circunstâncias, importa sempre questionar e aferir a significação conjuntural dos jargões e palavrões da moda, levianamente adotados e/ou readaptados como chaves-mestras para abrir portões de duvidosos universos de imaginação sociopolítica e até totalitária.
Alinhamento, coesão e unidade são parte de um repertório político discursivo relativamente familiar no contexto moçambicano, especialmente quando a significação que pretendem emprestar alude à importância de convergência de ditames e prioridades político ideológico; agregação de esforços na prossecução de interesses político-partidários e promoção da integridade territorial em contexto de diversidade socio cultural.
Embora os jargões tenham sido cunhados, aplicados em outros contextos e circunstâncias, na conjuntura actual, quando tais jargões são forçados de empréstimo não transportam somente as eventuais virtudes de significação ou desejadas purezas mas também conteúdos subliminares e aparentes impurezas que os torna termos e expressões que pretendem representar e significar coisas que nos dizem respeito como sociedade.
Na domesticação das teses e antíteses que palavras politizadas veiculam, conjunturalmente falando, não se pode aludir ao alinhamento das fileiras sem perguntar-nos se estão a falar dos "nossos" ou daqueles que "não são nossos"; dos de "dentro ou de fora", não se pode falar de unidade sem se questionar se a discussão desemboca em criticismos de "alas", "regionalismos" ou "tribalismos". Dificilmente se pode entender coesão fora das possibilidades de fissuras e "caça às bruxas" potenciadas pelo extrapolar das capacidades de gestão partidarizada do Estado e do minguar de subterfúgios materiais, lúdicos e simbólicos que concorrem para a manutenção de lealdades grupais.
Não obstante as infindáveis possibilidades de significações que jargões politicamente instrumentalizados apesentam, o mote deste texto está nas diferentes formas de apropriação e instrumentalização político pragmática de termos e conceitos, aparentemente óbvios e inocentes, mas que prenunciam a introdução de zarabatanas novas que escamoteiam e, simultaneamente, evidenciam a persistência de tendências e posturas governativas de cunho totalitarista.
O esmero em demostrar a importância da "compactação" de fileiras, mais do que sinal de eventual bloqueio ou deficit lexiológico de ocasião da parte do emitente (quem não os tem!?), pode ser lido como um alarmante sinal de reafirmação da negação da diferenciação, numa conjuntura em que os sentidos identitários andam minados pelos escândalos financeiros de proporções mundiais e continuadas revelações de nichos de mal versasão da coisa pública.
Semanticamente falando, "compactar fileiras" significa passar um rolo compressor capaz de amalgamar as diferenças de ideias, perspectivas e abordagens dos dilemas e desafios que caracterizam o país, nivelando, literalmente, por baixo os diferentes actores (políticos, intelectuais, jornalistas, fazedores de opinião e outros) e, em última instância, a sociedade como um todo.
Antes de amarar e apertar sacos de laranjas ou batatas em que algumas estão podres, importa separar o que se salva e, das putrefactas, aproveitar as sementes com potencial germinativo e voltar a plantar. A revitalização política, assim como a regenerescência orgânica é um processo de selecção e não uma mera compactação constritiva que impede o fluxo construtivo e inovador da diversidade e do direito à diferença e divergência.
A "compactação das fileiras", enquanto sintoma da ebulição de um partido particular, mal nos diria respeito, não fosse pelo facto de tal partido também ser o que monopoliza o poder de Estado. Com palavras aparentemente inocentes e gestos fugazes estabelecem-se os déspotas e não tarda que seguidistas inebriados adotem o jargão e praxe intrínseca, numa cultura política que privilegia a premeia grandiloquentes gestos de lealdades incondicionais.
Há bem pouco tempo, em nome da "pureza ideológica" e de similares barbaridades, à esta distância histórica reavaliados sem nexo, ostracizamo-nos, aprisionamos uns aos outros em "campos de reeducação", combatemos nossas próprias culturas e línguas, apregoamos a forja do "homem novo", essa descaracterizada e irreconhecível figura que se esmera em tomar o lugar do tateante e quase sempre desengonçado "criador".
Ode à igualdade e diversidade e que não voltemos a sucumbir à homogeneização que destitui indivíduos e grupos das liberdades partilháveis, que nos são ou deveriam ser, igualmente caras.
Não à "compactação de fileiras" que prenunciam o recrudescer de apetites totalitaristas, onde já estivemos, e de cujos vestígios e implicações mal conseguimos desenvincilhar-nos.