É manchete um pouco por todo lado e é inclusivamente o tema mais candente do momento, e com maior incidência nas nossas redes sociais que com velocidade da luz espalham tudo o que é considerado matéria para internautas e consumidores e difusores acríticos de informação – o caso Matalane.
Foi noticiado que instruendas do curso de formação de polícias, terão sido abusadas sexualmente pelos respectivos instrutores e que pelo menos 15 delas se encontram grávidas. Este facto gerou uma onda enorme de consternação entre os mais sensíveis a questão do género, ética e deontologia e direitos humanos. Dois grupos de opiniões dominam os debates na imprensa, nas redes sociais e noutros fóruns: uns condenam veementemente as instruendas acusando-as de falta de carácter e de cultura, de ganho fácil e menor esforço durante os treinos. Outros atacam os instrutores considerando-os monstros que envergonham a corporação e o Estado moçambicano.
Nisto muita tinta corre e ainda não chegamos ao cerne da questão. As 15 instruendas não devem ser tratadas como números e na verdade não são números, mas entram na grande lista oculta de vítimas de forma silenciosa cede aos prazeres de quem acha que detém poder para atropelar a dignidade humana e subjugar os ditos fracos. A nossa indagação deve buscar as raízes destes comportamentos e tentar perceber o seu caminho para que se tenham fixado como parte da cultura institucional.
Este triste caso veio desvelar uma realidade ignorada por muitos. Irei chamar a essa realidade de promoção da mediocridade. Promoção da mediocridade colide com os esforços que há anos temos estado a lutar para construir instituições fortes, de direito, capazes e transparentes, instituições de respeito e de referência, mas que paradoxalmente caminham para uma gritante desumanização do Homem – no caso vertente este Homem é a mulher que ainda é vista como inferior e objecto de deleite e saciedade de prazer.
Não se pode ter instituições fortes quando existem homens fracos e medíocres que promovem o caos. São homens que colocam as relações de poder como base para tirar vantagem de outrem. Julgam-se acima da lei e dos princípios e que impelem a sociedade a aplaudir imoralidade, a coadunar com coisas erradas e a prostrar-se diante de actos abomináveis. As instituições que temos estado a construir são baseadas em leis e protocolos - essas leis e protocolos devem ser cumpridas por cada um de nós. Não se trata de falta de protocolos, nem de leis e muito menos de instrumentos reguladores. Trata-se de uma legitimação tácita e um atropelo sistemático acobertado por um grupo de pessoas que pretende perpetuar tais práticas e minar a imparcialidade a fortificação das instituições.
Numa organização que em princípio se guia por leis e procedimentos burocráticos torna a sua administração mais eficiente e eficaz e isso garante racionalidade no trabalho. É consabido que numa organização pública ou privada, o cumprimento normal e continuado dos deveres bem como o exercício de direitos correspondentes é assegurado por um sistema de normas e somente podem prestar serviços aquelas pessoas que segundo as regras gerais estão qualificadas para tal.
Estes traços remetem-nos as principais características da teoria da burocracia, cujo fundador foi Max Weber. De acordo com Weber a administração segue princípios baseados em documentos escritos como por exemplo a hierarquia de cargos, as competências de cada funcionário bem como a situação do funcionário de escalão inferior (subordinado). Os funcionários inferiores são controlados pelos funcionários superiores sem que isso constitua “chance” para os superiores se aproveitarem da situação do funcionário de escalão inferior. Max Weber defende ainda que as actividades exercidas pelo subordinado são garantidas por normas estabelecidas num Código de Penal que o defende dentre várias infrações os insultos, maus tratos, assédio sexual e etc.
A nossa indignação não pode se cingir apenas a Matalane, Munguine ou a outros centros de formação, mas sim a vários outros sectores da nossa sociedade como ministérios, escolas, universidades, bancos, e outras instituições públicas e privadas. Os abusos perpetrados pelos instrutores são uma réplica dos abusos que são igualmente praticados contra centenas de mulheres e raparigas nas escolas e universidades apenas a título de exemplo. O pretenso poder que o formador, instrutor e professor tem sobre os formandos faz com que se crie a cultura sexista na nossa sociedade – uma cultura que oprime, humilha e retira valor a mulher e a rapariga.
Mais preocupante ainda nessa relação de falso poder e falsa supremacia é a falta de cultura de denúncia e de responsabilização acompanhadas pelo medo exacerbado. Quando essa lucidez e coragem existe, os prevaricadores são protegidos pelos sistemas e em escala a impunidade cresce e a descrença sobre o real aumenta enfraquecendo assim o poder e valor das instituições. Não se trata de falta de aporte legal, muito menos de falta de instrumentos reguladores. Trata-se sim de uma mentalidade promíscua, pequena e oportunista que cria pequenos monstros que criam horrores contra inocentes.
Como sociedade somos chamados a reflectir sobre o valor e lugar da moralidade, da ética e da deontologia e sobre limites da concupiscência. Somos chamados a demandar por justiça e exemplar postura das instituições de justiça.
Hoje de viva voz, por um lado condenamos e por outro aplaudimos aquilo que julgamos ser politicamente correcto e socialmente aceitável. Sequer nos demos tempo para ficar no lugar do outro e tentar sentir a dor do outro, a dor daquela mulher que procurou formação e foi abusada por aqueles a quem confiou sua formação; a dor daquela mulher que depois de grávida a sociedade lhe chama nomes, isola e exclui. É preciso pensar e agir para que isto não aconteça de novo e que não levemos ao de leve algo tão profundo.
Na construção daquilo que queremos como sociedade, estamos a permitir que práticas condenáveis e desprezíveis entrem no nosso modus operandi. O nosso silêncio e consentimento pelo atropelo a lei é uma arma que mata milhares de mulheres e raparigas no nosso país e deixa marcas psicológicas que se manifestarão nas gerações que estão por vir.
O Moçambique do amanhã é e está dependente do que fazemos hoje. As mães abusadas, os filhos renegados e as mulheres violadas são a expressão mais sublime daquilo que consentimos com as 15 mulheres de Matalane e com os milhares de raparigas e mulheres espalhadas por todo o país que por conta da realidade adversa não dão rosto aos abusos sofridos.
Hélio Guiliche (Filósofo)
Depois de esgotadas as três prorrogações previstas na Constituição, o debate em torno da possibilidade ou não da decretação de um novo Estado de Emergência (EE) fez-me lembrar, e em tempos do presidente Chissano, o debate sobre a segunda reeleição. Decorre que estava escrito, na anterior Constituição, que um presidente podia ser sucessivamente reeleito duas vezes o que outorgava ao presidente Chissano o suporte constitucional para concorrer nas eleições de 2004. Lembrar de que ele fora eleito em 1994 e reeleito em 1999. O debate foi dado por encerrado quando Marcelino dos Santos, falecido membro-fundador da FRELIMO e presidente do Parlamento que aprovara a Constituição em referência, veio a terreiro afirmar que houve um “lapso de redacção”, pois a ideia era a de um limite de dois mandatos. Suponho que o tal lapso tenha derivado da certeza de que Chissano, então presidente em exercício, concorreria às eleições de 1994, as primeiras multipartidárias, e tal induzido ao entendimento de que seria uma candidatura à própria reeleição. Nesse sentido, em 1994, seria a primeira reeleição e, em 1999, a segunda reeleição.
À luz do intróito, e uma vez decretado um novo EE, presumo de que se tenha aberto a possibilidade – sem alterar a Constituição -, para uma nova eleição de um Presidente da República (PR) que já tenha esgotado o limite constitucional de uma reeleição. Sobrevém que do mesmo jeito que fora possível decretar um novo EE, apenas e prorrogado por 3 vezes, é possível que um PR em exercício (e já reeleito uma vez) volte “legal e sucessivamente” à presidência. Para o efeito, tal como com o fim da última prorrogação do EE, baste que o país observe a transição denominada de “Estado de Dúvida/Espera. Este momento poderá acontecer, por exemplo, antes do pleito eleitoral seguinte desde que o PR em exercício, e sucessivamente, apresente a sua demissão e submeta a sua candidatura à nova eleição, decorrendo assim, entre o acto de demissão e o de tomada de posse do novo/mesmo PR, o tal período de transição. São ideias (risos).
Voltando ao debate sobre a segunda reeleição, referir que o entendimento de Marcelino dos Santos de que tal possibilidade constitucional – a da segunda reeleição – fora de facto “lapso de redacção” foi atendida e até o potencial beneficiário, Joaquim Chissano, veio à público, na altura, afirmar que não concorreria à segunda reeleição. Agora, no quadro da Constituição em vigor e para o futuro eleitoral, e não necessariamente para as próximas eleições, coloco à mesa do debate o tema sobre as possibilidades de elegibilidade de quem já tenha sido reeleito - a única reeleição prevista constitucionalmente -, e queira concorrer no pleito seguinte. Quid Juris?
Por enquanto, e tal como foi possível decretar um novo EE, avanço a hipótese de um “colapso de redacção e/ou de interpretação” caso proceda a ideia de quem tenha esgotado o limite constitucional da reeleição possa concorrer na eleição seguinte. Já oiço explicações do tipo: “A Constituição em vigor apenas limita para uma vez a reeleição e duas vezes consecutivas a eleição o que não é o mesmo que ser eleito, reeleito e em seguida eleito”. É tanta criatividade que não me admira, em tempos de prevenção da pandemia da Covid-19, que a Lei-mãe, tal rigor materno, esteja a seguir estritamente o “Fica em Casa”.
*Versão actualizada (11.08.2020)
Fomos colegas de escola entre 1965 e 1974, altura em que, movido pelos ventos que sopravam do norte, com Samora Machel na batuta rugindo no centro dos palanques, abandonei o ensino. Queria fazer parte dos cachos de jovens que vinham das matas gritando, Independência ou morte! Venceremos! Eu era um fedelho com apenas 17 anitos, mas já lia romances da coleção “seis balas”, e assistia a filmes classificados para maiores de 18 anos, onde aprendi a ter os meus próprios ídolos como Clint Eastwood, Sidney Poitier, Marlon Brando, entre outros, então senti que essa leitura que ia fazendo de forma profusa, impulsionava-me agora a seguir novos caminhos com uma arma a tiracolo.
Estou na fase da puberdade, e a minha frente já ressurgem rios que devo atravessar, com todos os riscos de ficar entalado em mandímbulas dos lagartos aquáticos mais ferozes da terra, sem a possibilidade de ser salvo pelos hipotéticos hipopótamos, que andam por ali, a ilharga do perigo e da morte. Mas esse terrível cenário que se aflora nos meus pensamentos não me demove, nem o amor da Jimaraida, que pode ser puxada para a teia de outro sabujo como eu. Na verdade sou um sabujo, se não o fosse não abandonaria uma esmeralda. E essa esmeralda chama-se Jimaraida, nome corrompido de Esmeralda.
Despedi-me dela e ela perguntou-me, vais para onde? Na verdade eu não sabia para onde ia, nem quanto tempo ia ficar lá onde vou, pior do que isso, não sabia se havia de voltar. Porém o entusiasmo de outros companheiros que também se predispunham a avançar, era tão envolvente que se tornava impossível recusar o chamamento. Aliás trespassou-me a memória uma passagem bíblica que diz, muitos serão chamados e poucos escolhidos. Ora, eu podia ser um dos escolhidos.
Jimaraida fustigou-me com o olhar, era a única coisa que podia fazer porque eu já estava na rampa de lançamento com os motores lançados, deixando para trás uma donzela que já fazia parte de mim, não propriamente como minha namorada, mas uma amiga, uma confidente que vai merecer todo o meu respeito. Lembro-me ainda do silêncio fulminante do olhar de uma linda tigreza impotente, incapaz de me dissuadir, mesmo com as lágrimas escorrendo pelo rosto macio que eu beijava sempre como um furtivo.
Era um dia de chuva branda, e no derradeiro adeus Jimaraida recusou que eu a beijasse. Ainda tentei uma, duas, três vezes, mas ela esquivava, e logo percebi que não valia a pena. O beijo não se arranca a ferros, ele acontece em mútua cedência ao impulso que vem de dentro. Então ajeitei a pasta de costas, ao mesmo tempo que sentia duas forças antagónicas atuando sobre mim. Uma força puxava-me para o interior do autocarro que já tinha os motores ligados. Outra força, mais forte, puxava-me para trás onde estava Jimaraida. Chorando. Eu também chorei muito ao longo da viagem, pensando sem parar na Jimaraida. Derrotada por um incompetente. Sem dignididade de merecer o verdadeiro amor!
Passam pouco mais de quatro décadas desde que nos separamos. E hoje, já no fim da estrada, estamos novamente apaixonados!
Um amigo - depois da sua licenciatura na área de ciências sociais - teve a sorte de responder positivamente a uma vaga de emprego numa organização da Sociedade Civil. E já com uma semana de trabalho, ele procurou-me com ares de preocupadíssimo e com alguma estupefacção à mistura. Na conversa confessou-me que bastara uma semana de trabalho para presenciar a queda de uma das lições da Faculdade, sobretudo a referente ao conceito de Sociedade Civil. Segundo ele, num piscar de olhos a definição de que a Sociedade Civil é o espaço entre a Família e o Estado foi contrariada pelo corpo dirigente da organização que era formado por membros da mesma família, nomeadamente o marido, a mulher e a filha, nas posições de director, financeira e gestora de programas e projectos, respectivamente.
Este episódio foi há dez anos. Relembro-o a propósito de uma nova conversa com o mesmo amigo. Foi no Domingo passado e num café da cidade. Desta vez a preocupação foi um outro fenómeno que amiúde ocorre em algumas instituições do sector público, o seu novo campo de emprego. o amigo não compreendia como é que o preenchimento de vagas, em algumas instituições do Estado moçambicano - que ele chama de “Instituições Públicas Monárquicas” - ainda obedecia a critérios monárquicos. E tal como na definição de Sociedade Civil, na sua primeira experiência profissional, nesta nova o amigo quase que deitava abaixo toda a sua trajectória académica. Acontece que ele aprendera de que o ao fim da última monarquia em Moçambique foi em 1895 com a prisão de Gungunhana, o Imperador de Gaza, à mando da Coroa portuguesa. E que Portugal, a potência colonizadora de Moçambique, já em 1910, instaurara a República (que diz respeito a todos os cidadãos) na sequência do derrube da monarquia. Além disso, e mais recente, o Estado moçambicano, desde a sua independência em 1975, que é também uma República.
“Isto é inconstitucional” dizia ele. Um companheiro da mesa ao lado, que acompanhava de soslaio a conversa, juntou ao “Jus Sanguinis” (do mesmo sangue), o “Jus Solis” (da mesma terra), terminando com a sugestão de que na verdade o que acontece - e por défice de efectivos de cada critério -, é a ocorrência de um sistema híbrido. O amigo, vendo de que não respondia a nenhum dos critérios, e na procura incessante de alguma brecha legislativa, levantou a possibilidade de ver provincializada o conceito de naturalização, mormente a adaptação dos critérios usados na aquisição da nacionalidade. Infelizmente, por falta de tempo, uma outra e dominical tertúlia de café sediará a discussão.
De toda maneira, para terminar, fica a deixa do amigo: incorporar a “Provincialidade Adquirida” no leque da elegibilidade para o preenchimento de cargos nas “Instituições Públicas Monárquicas” (IPM). Agora imagina, caro leitor, que as instituições do Estado, que adoptam esse tipo de filosofia, passassem a usar, na sua denominação, a sigla IPM no lugar de EP (Empresa Pública).
Hoje, prestes a findar a 3ª prorrogação do estado de emergência, decretado por conta da pandemia da Covid-19, defendo que caso não se regresse às aulas imediatamente que se adie o ano lectivo. É melhor que o país concentre as suas energias e use o tempo necessário a preparar o regresso às aulas e nas condições que existirem com ou sem pandemia. A razão deste posicionamento é simples: por falta de condições sanitárias nas escolas a sociedade teme que o regresso às aulas é patrocinar o contágio descontrolado. Em resposta, o Governo, mormente o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, procurou criar tais condições e até marcara o passado dia 27 de Julho como a data de regresso. Uma pretensão colocada de lado pelo mais alto magistrado da nação, alegando que se estava ainda em estado de emergência e não, necessariamente, porque não existiam as condições sanitárias para o regresso. E finda a 3ª prorrogação do estado de emergência versus a criação de condições sanitárias, Quid Juris?
Uma nova e ordinária prorrogação legal do estado de emergência está fora de questão. Por outro lado, a criação de condições sanitárias é uma incógnita e demanda a seguinte pergunta: estará o país em condições de criar as condições sanitárias em menos de meio ano? Em caso afirmativo – sim, é possível – não se estará a passar um certificado de incompetência aos governos que precederam o actual, atendendo que em menos de seis meses o Estado consegue criar condições que não foram possíveis em 45 anos? Isto não significa deitar por terra todo o esforço empreendido até agora. Apenas, e a título de alerta, questiono até que ponto ponderar o regresso às aulas à satisfação plena das condições sanitárias é válida? Estas nunca existiram em 45 anos e nem por isso foram usadas como braço de ferro para o início, por exemplo, de qualquer ano lectivo no passado.
Ademais, sendo as condições sanitárias a base para o suporte da decisão pelo regresso ou não às aulas, não me parece que proceda. Aliás, quando foi da instauração do estado de emergência o argumento-base foi o de atrasar o pico da pandemia, enquanto o sector da Saúde criava as condições de resposta, e a Saúde, se não me falha a memória, já veio a terreiro afirmar que já está à altura, significando que uma vez acautelada a razão-mor, não há razões para o país continuar a manter fechados os outros sectores, em particular o da educação. Além disso, é compreensível, e por conta do défice de condições sanitárias, que se receie o contágio no regresso às aulas, mas o argumento também não cola, pois em países com melhores condições sanitárias o contágio foi uma realidade, e muitos deles, assim como não hesitaram em reabrir o ensino, voltaram a fechar. Todavia, a situação dos outros não outorga ao país o direito de deixar de lutar porque estes países, e até mais desenvolvidos, falharam.
De momento, avaliando a hesitação pelo regresso, o que me parece em pauta não são as condições quer sanitárias quer de resposta do sector da Saúde à pandemia, mas sim, e simplesmente, a falta de coragem. E a coragem, em algum momento, deve prevalecer sobre as condições necessárias (de luta). Foi assim em 1962/64, quando foi do início da luta armada para a libertação do país. (Cont.)`
No dia 7 de Novembro de 1917, Max Weber proferiu uma palestra, em Munique, sobre “A ciência como profissão-vocação” [ou referenciado em alemão Wissenschaft als Beruf et Politik als Beruf], numa plateia largamente composta por estudantes. O texto resultante, publicado dois anos depois, ainda é comentado e minuciosamente analisado até hoje. Embora lide principalmente com a situação alemã, colocando-a nas primeiras páginas o espelho dos Estados Unidos, Weber evoca problemas que podem ser generalizados para outros países. Além da “neutralidade axiológica”, Weber nos convida a pensar sobre os vínculos entre Universidade e política.
De forma concreta, Weber defendeu a necessidade de uma clara separação entre política e ciência. Além de tratar sobre a acção política, seu funcionamento, sua legitimação e a célebre definição sobre Estado, Weber fala igualmente da epistemologia da ciência, do julgamento e da relação com os valores em dois momentos: (1) julgamentos subjectivos de valor devem ser excluídos de toda pesquisa científica; (2) a relação com os valores implica que a análise de um facto social não pode ignorar os valores da sociedade em que o facto é estudado.
O campo de estudos relacionados às relações entre ciência e política é particularmente abundante. Segundo Lamy (2007), é possível distinguir cinco questões essenciais: (1) a primeira diz respeito a reflexões sobre as condições e os quadros políticos (isto é, democracia ou totalitarismo) que permitem, impedem ou influenciam a actividade científica; (2) a segunda área de trabalho sobre a relação entre ciência e política está organizada em torno das acções do governo em favor da actividade científica ou de um segmento específico dessa actividade; (3) a monitoria dos compromissos políticos, aderência e activismo de certos pesquisadores constitui um terceiro corpus de questões históricas e sociológicas; (4) uma quarta constelação de trabalhos recentes e especialmente sociológicos considera a ligação entre ciência e política através dos usos que os governos ou tomadores de decisão públicos fazem da pesquisa científica; e (5) o quinto conjunto de obras refere-se a construções teóricas gerais que, nos últimos vinte anos, tentaram delinear os métodos de organização e estruturação das relações entre ciência e sociedade.
Bréchet (2018) mostra-nos que uma acção política baseia-se em duas fontes: a legitimidade política do poder em si e a legitimidade racional da verificação empírica. É a partir da experiência de especialistas mandatados politicamente que garante-se, em princípio, que as decisões do político sejam justificadas do ponto de vista da racionalidade científica. A experiência não é suficiente, mas não pode ser descartada. Parece natural para todos que, para definir a política económica de um país, é desejável mobilizar o melhor dos analistas económicos e que a ciência do direito deve estar subjacente a qualquer tendência legislativa. A questão não é se essa experiência é mobilizada ou não, mas simplesmente que parece anormal que não seja.
A evidência actual de como a ciência se entrelaça com a política está assente no que a pandemia da COVID-19 nos ilustra, onde temos especialistas de várias áreas que defendem algumas posições que para a sua efectivação (ou não) devem passar pelo crivo ou beneplácito político. Diríamos de outra forma, com a crise sanitária, os cientistas têm um poder e uma visibilidade que eles não tinham antes. Os políticos agem de acordo com uma temporalidade completamente diferente. Mas então, entre os dois, quem decide? Podemos, se quisermos, trazer igualmente a problemática das mudanças climáticas, onde os alertas que a ciência transmite só serão efectivos com uma acção política real e de acordo com os interesses de cada país face à exposição geográfica de tal impacto.
Teoricamente, existem vários modelos que podem ser invocados na relação a se estabelecer (ou não) entre o poder político e a Universidade. Por exemplo, citemos o modelo francês e italiano, onde a gestão centralizada dos cargos universitários é assegurada dentro dos órgãos disciplinares permanentes, sem qualquer outra autoridade externa ou não disciplinar, com posse antecipada de professores-pesquisadores.
Em segundo temos o modelo alemão, que caracteriza-se pela descentralização na gestão dos estabelecimentos universitários, intimamente ligado à gestão de pessoas, e por um mercado científico estruturado por três parceiros: o professor, os estabelecimentos universitários em si e as autoridades (locais) que funcionam como supervisores desses mesmos estabelecimentos.
Por fim, o modelo americano, marcado pela ausência de regulamentação por uma supervisão corporativa ou administrativa, onde é assegurada a gestão de cargos e pessoas no nível de cada estabelecimento universitário. O ‘’mercado científico’’ é então estruturado, por um lado, pela hierarquia dos estabelecimentos (com mercados paralelos, uma vez que todos os estabelecimentos não competem na mesma divisão) e, por outro lado, por associações profissionais que mediam o reconhecimento científico de cada disciplina (revisão por pares).
Em África, a Universidade foi primeiramente estabelecida para enraizar e perpetuar a dominação colonial, sendo que com o surgimento dos movimentos nacionalistas a escola tornou-se um espaço de integração e ascensão social e, por conseguinte, as Universidades como espaços de formação da elite burocrática que tinha por responsabilidade assegurar o funcionamento da máquina Estatal. Nesse contexto, Mama (2006) sublinha que uma variedade de centros e redes independentes nacionais, regionais e não-governamentais começou a oferecer contribuições para a produção de conhecimento em África, embora muitas vezes de forma limitada pela lógica do Estado ou do mercado, o que faz com que tais centros de pesquisa sejam altamente vulneráveis à condição política de cada país, sem mencionar os caprichos da captação de recursos.
No nosso país, o debate sobre a relação que se pode estabelecer entre a Universidade e a política parece ter ascendido apenas com as recentes nomeações de Reitores (Universidade Zambeze e Universidade Lúrio). Contudo, é preciso aqui destacar que em muitos países o poder político sempre esteve presente na propositura dos dirigentes máximos das Universidades, sendo que a única diferença é que nesses países o poder político serve apenas como confirmante de um acto que obedeceu a escolha interna entre os pares.
Voltando para Moçambique, basta apenas recordar o episódio que foi a nomeação do Prof. Doutor Filipe Couto, em 2007, ou ainda da tensão criada no início dos anos 90, na Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais – UFICS UEM, durante a gestão do Professor Catedrático Brazão Mazula. Estes são os casos que se tornaram públicos, mas internamente não faltam cenas de crispação na eleição – escolha – de Chefes dos Departamentos ou mesmo de Directores das Faculdades. Aliás, o mesmo sucede vezes sem conta na eleição para dirigir o Núcleo de Estudantes ou ainda para a Associação de Estudantes Universitários (AEU-UEM).
Colocados os elementos acima, parece ficar claro que sofremos de um problema que reside na forma como são escolhidos ou indicados os dirigentes para diversos órgãos ou cargos das Universidades Públicas. Pode ser, mas recuso-me a pensar que esse seja o problema central sobre o que muitos já vieram chamar de esgotamento da autonomia, liberdade e objectividade na produção do conhecimento científico.
Por exemplo, neste momento a França debate-se com uma crise nas suas Universidades que não é em relação a interferência poder político em si, mas a adopção de uma lei/reforma que é vista como o esquartejar da capacidade financeira que as Universidades terão para produzir conhecimento e atrair novos pesquisadores. Trouxe o caso da França porque quero aqui inaugurar uma hipótese que, no meu ponto de vista, pode nos ajudar na discussão sobre o que está a suceder em Moçambique: falamos do investimento público e financeiro que deve ser feito para que realmente a produção do almejado conhecimento suceda. Um verdadeiro engajamento político com a Universidade Pública.
Pensamos que, por mais que nomeações sejam em obediência ao colégio universitário (em respeito ao estipulado na Constituição da República), sem investimento sério na pesquisa, as nossas Universidades Públicas manter-se-ão apenas como edifícios imponentes, mas sem produção científica de base. Entenda-se investimento como dotar as Universidades Públicas de capacidade financeira para produzir pesquisa variada, seja em campo ou laboratório.
Embora sem estatísticas ao nosso dispor, se considerarmos as publicações científicas e existência de revistas científicas (com revisão cega/dupla de pares) como elemento de avaliação de qualidade, poderemos observar com clareza o quão distantes estamos, e isso não é consequência da indicação política dos Reitores. Podemos ainda tomar em conta a nossa reduzida capacidade formativa em produzir Doutores (ou mesmo Mestres) para a actividade lectiva.
Assim dito, reduzir o debate no quesito das nomeações é escamotear um problema maior pelo qual padecem as nossas Universidades Públicas, sendo que poderá manter-se a desculpa que não produzimos conhecimento científico porque o poder político nos impede, esquecendo que o barómetro qualitativo dos pesquisadores e investigadores não se faz pela indicação do Reitor, mas sim pela produção ao longo da carreira dentro dessa mesma Universidade. Sublinhe-se, pensamos que a equação é dupla, por um lado as nomeações em si, mas igualmente a incapacidade política de prover meios para que tais Universidades labutem, mesmo que sejam dirigidas por Reitores politicamente nomeados, o que não é propriamente mau.
Referências
Bréchet Yves, « Science et politique », Commentaire, 161/1, | 2018, 13-18.
Jérôme Lamy, « Penser les rapports entre sciences et politique : enjeux historiographiques récents », Cahiers d’histoire. Revue d’histoire critique, 102 | 2007, 9-32.
Mama Amina, « Towards Academic Freedom for Africa in the 21st Century », Council for the Development of Social Science Research in Africa, 4/3 | 2006.