O celular vibrou no bolso das calças e eu achei que podia atender noutra altura, depois de descer do barco. Eram oito horas da manhã de um sábado, e o meu destino era Linga-Linga, onde tenho ido amiúde ver a Fazilange, minha tia. Há dois caminhos para se chegar lá, a partir da Maxixe. O primeiro passa por Móngwè, e o outro por Murrombene. As duas vias têm o seu fascínio próprio, é por isso que me entrego a elas de forma aleatória. Mas existe ainda a esplendorosa estrada do mar, que nos leva ao êxtase da beleza, como se tudo aquilo fosse um paraíso.
Somos seis ocupantes da embarcação, incluindo dois tripulantes experientes, capazes de preverem a mudança dos ventos sem recorrerem ao barómetro, o barómetro são eles. Conhecem pelos nomes, cada lugar deste tapete azul que se estende entre os palmares da Maxixe e Murrombene, e outros palmares que ressurgem em Mucucune e Guidwane. Depois temos uma enorme vaga que nos deixa ver o Índico,por onde vão entrar os barcos de cabotagem que nunca mais apareceram por aqui.
Na verdade estamos no paraíso, e perante esta sumputuosidade da natureza, qualquer palavra será desnecessária. É como se nos prostrássemos a ouvir boa música, interepretada ao som das harpas. Não se fala quando é assim. Fica-se em silêncio, assim como nós estamos, deixando que as emoções triunfem. Também porque neste lugar quem manda são as gaivotas, que escolatam a nossa barcaça, susceptível dos sopros.
Mas eu vou a Linga-Linga ver a Fazilange. Providenciei um pequeno cabaz, que inclui duas garrafas de vinho, as quais vão proporcionar alegria a minha tia que me espera desde ontem, após uma ligação que fiz a dizer assim, Fazi, amanhã estou aí! É minha amiga. Ela gosta muito de mim na mesma proporção em que eu a admiro. Há uma afinidade entre nós. Falamos a mesma linguagem. De paródia.
Fazilange vive numa casa modesta virada eternamente para o mar. É uma mulher muthswa, levada para ali pelo marido, um bitonga pescador atacado e morto por um tubarão em plena faina. Então, a vida da minha tia, mesmo sem perder sentido, ficou profundamente abalada. Pior porque nunca teve filhos, nem ela, nem Khwambe Makwandra, e os dois eram felizes.
Agora vou a casa da minha amiga para matar saudade. Para lembrar momentos vibrantes que passamos juntos com Khwambe Makwandra, um homem jovial que vivia a vida profusamente. Quero ouvir a voz de soprano da Fazilange, tendo como catalizador o vinho que levo. Quero sentir o abraço profundo da minha tia. E já no auge, cantaremos canções dos nossos ídolos, onde não faltará Yimpi ya mafilista (guerra dos filisteus), do hinário da Igreja Metodista Unida.
Fazilange agora move-se com dificuldades, ela treme nas pernas, mas por dentro emana energia, testemunhada pela voz equalizada que canta versos antigos. É isso que me leva a visitá-la constantemente, como hoje, que vou passar aqui todo o sábado e todo o domingo, sem atender a nenhuma chamada do telefone que não pára de vibrar. Estou pouco me lixando para os que querem falar comigo, nem que seja para me comunicarem a última tragédia. Deixem-me ao menos desfrutar deste pedaço de paz, depois voltarei às azáfamas!
Os terroristas decapitaram o professor Damião Tangassi. O professor Tangassi era sobejamente conhecido em Muatide e Matambalale; nesta última aldeia leccionava numa escola devastada pelas bárbaras acções dos terroristas.
Damião Males Tangassi era um autêntico autodidata. De étnia makonde e marido dedicado, foi surpreendido junto com a sua família nas matas de Muatide, em Muidumbe quando em redor de uma lareira procuravam afugentar os ferozes animais e suportar o medo e fazer algo para comerem. No fatídico dia, os terroristas não olharam para aquilo que ele representava para milhares de crianças, jovens e pais de família que durante duas décadas passaram por suas mãos.
O professor Tangassi trabalhava abnegadamente na formação de uma geração diferente, mas que a guerra foi interromper este processo. Hoje, com todos seus alunos desperso, ele tinha a esperança de recomeçar, onde haviam parado. Infelizmente, os terroristas se apossaram dele e zombaram da sua dignidade com recursos a baionetas e diferentes tipos de tortura. Ode ao professor Tangassi. Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado e no mundo.
Em vida, o professor Tangassi, sonhava em um dia contar às crianças e seus netos o sofrimento que o seu povo está a ter hoje com os actos bárbaros dos terroristas. Conforme uma publicação sua feita numa canoa em Abril quando fugia a um dos maiores ataques aquele distrito. Tangassi escreveu na sua conta de Facebook "ainda tenho esperança de um dia contar aos mais novos sobre algumas das atrocidades deste ponto do país, na confiança de que tudo tem seu início mas também conhece o seu fim".
Infelizmente, depois de no passado dia 23 de Outubro, o governo distrital de Muidumbe, na província de Cabo Delgado, ter emitido uma circular a solicitar apresentação ao sector de trabalho de todos os funcionários e agentes do Estado até o dia 01 de Novembro, eis que os terroristas, que haviam atacado o distrito em Abril, regressaram àquele local onde destruíram propriedades e mataram civis e militares. Entre as vítimas estava um professor que em vida respondia por Damião Males Tangassi; foi assassinado com sua sobrinha que estava em gestação; a mesma foi feita cesariana a sangue frio pelos terroristas.
Os familiares do professor actualmente encontram-se em Pemba. Relata-se que a esposa foi obrigada a assistir ao acto macabro do assassinato do professor, seu marido. A mulher encontra-se em estado de choque e traumatizada. A família do professor Tangassi estava em segurança em Pemba desde Abril, mas o sentido de dever e patriotismo levou com que acatasse as ordens superiores.
Damião Males Tangassi, de 44 anos de idade, pai de quatro filhos e que em vida vivia numa união marital, nasceu em Muatide, no distrito de Muidumbe e começou a leccionar em 2001, na altura como contratado. Tangassi estava afecto a Escola Primária Completa de Matambalale, uma das onze atacadas pelos terroristas.
Entretanto, entre os dias 31 de Outubro a 01 de Novembro junto com a família e outras; algumas conseguiram escapulir-se e com a situação da sobrinha que não conseguimos apurar o nome foram encontrados nas matas pelos terroristas.
O professor Damião Males Tangassi foi decapitado em frente aos filhos, hoje nas mãos dos terroristas, a mulher e a sobrinha que estava em gestação. A morte do professor Tangassi demonstra uma outra faceta dos terroristas; pelas circunstâncias e para o poder do Estado em defesa dos seus agentes e funcionários...
Ode ao professor Tangassi!
Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado..!
Berlim, 12 de Junho de 1987. Nesta data e em plena Guerra-Fria, Ronald Reagan (1911-2004), então presidente norte-americano, fez um discurso histórico diante do portão de Brandemburgo, um símbolo na delimitação entre a Berlim oriental (socialista/comunista) e a Berlim ocidental (capitalista). Neste discurso, Ronald Reagan, dirigindo-se ao então líder da então União Soviética, Mikhail Gorbatchev, disse: “Secretário Geral Gorbachev, se você busca a paz, se você busca a prosperidade para a União Soviética e a Europa Oriental, se você busca a liberalização, venha aqui para este portão. Sr. Gorbachev, abra este portão. Sr. Gorbachev, derrube este muro!”
Matola, 09 de Novembro de 2020. Trinta e um anos depois da queda do muro de Berlim e na data consta que Ronald Reagan ressuscitara pela terras matolenses. Quem o viu conta que Reagan, diante da vedação da nova sede municipal, proferiu um discurso dirigido ao actual edil da Matola. No final disse: “Sr. edil da Matola, se você busca a prosperidade para a Matola, se você busca a democracia participativa e apregoa a presidência sem paredes, a vedação da nova sede municipal é uma oportunidade ímpar para o demonstrar. Sr. Edil da Matola, esta vedação não faz nenhum sentido. Sr. edil da Matola, remove esta vedação!”
O discurso de Ronald Reagan de Junho de 87 é apontado como um dos principais catalisadores para a queda do muro de Berlim o que veio a ocorrer dois anos mais tarde. Espero que o discurso de 09 de Novembro não leve tanto tempo a produzir resultados. E pelo o que me consta, para fechar, o edifício da nova sede municipal da Matola é, entre pares, o primeiro vedado a nível nacional. Nem a sede do Município de Maputo, a capital do país, está vedado. E aqui o munícipe e o turismo agradecem.
PS: O actual aparato de obras no novo edifício do Município da Matola é um indicador de que está para breve a inauguração. Provavelmente, e pela proximidade da efeméride, será no dia 05 de Fevereiro de 2021, a data de celebração de mais um aniversário da Matola. Até lá é possível remover a vedação e alocá-la para escolas com problemas de segurança e que certamente existam na Matola. Assim, na data de inauguração, inaugurasse-a também a vedação de escolas abrangidas. Também, e até lá, até que se podia fazer algumas alterações nos acessos e circulação pedonal em benefício de uma mobilidade mais segura. Mas isto é um outro texto.
Na área metropolitana do Grande Maputo quem assim responde está a comunicar que não vem ou que não tem hora para chegar, mas sempre tarde. O certo é de que não se encontra na portagem, o posto de cobrança pelo uso da estrada localizado na divisória entre as cidades de Maputo e Matola. Pensei nisto quando vi um trecho de uma entrevista do actual edil de Maputo a propósito dos 133 anos da cidade capital que foram celebrados no passado dia 10 de Novembro. Na entrevista, entre outras promessas, a de que em 2021 ter-se-á novidades do metro de superfície. Não é a primeira vez que ouço deste edil tal promessa. No seu primeiro consulado (2004-2008) prometera-o para o (suposto) mandato seguinte, mas tal, o mandato, fora barrado pelo seu partido, preterindo-o a favor da candidatura do anterior edil de Maputo que nos seus dois mandatos, reiterou copiosas vezes a promessa. E como um bom filho, a promessa está de regresso à casa.
Será desta o metro? Se eu fosse um dos assessores do actual edil, um guru e referência de exemplar gestor público, recomendá-lo-ia alguma prudência, a par da experiência anterior, a menos que não esteja interessado num segundo mandato, esperando assim despachar tudo num único, incluindo o metro de superfície. Aliás, na entrevista o edil deixa bem claro de que não é o tipo de político que promete e não cumpre. Contudo, e perante mais uma promessa do metro vir à superfície, um meu próximo e grande observador dos processos de governação do país, perguntaria: “Sobrinho! Esse tal de metro o que vem mesmo fazer? Complementar o caos?”. Para o meu saudoso tio a melhoria da mobilidade não parte do vazio e de que o primeiro passo seria o de acabar com o caos instalado, incluindo o das ideias. E quanto a este tipo de caos, temo que as ideias estejam também “a passar portagem”.
Por acaso, e a propósito de qualidade, salta-me à memória um treinador americano de basquetebol do Benfica de Portugal que em tempos, perante a falta de talentos, dissera de que antes da qualidade o objectivo era a quantidade. E assim o clube saiu às ruas de Lisboa a procura de potenciais jogadores tomando a altura como um critério-chave. Aposto que se o mesmo raciocínio fosse aplicado na melhoria da qualidade da mobilidade na área metropolitana do Grande Maputo o metro não só viria à superfície como complementaria a qualidade existente. Ou seja: que antes de pensarmos em trazer o melhor, começássemos pelo que se devia ser feito em prol da qualidade do que temos disponível (infra-estruturas, meios, políticas e serviços). É bem provável, e para fechar, que seja por aqui a razão da resposta dada pelo “Metro de Superfície” quando perguntado se ainda vinha (à Maputo).
Estávamos no ano de 2011. Acabava de admitir para o ensino superior, frequentando o 1º ano da licenciatura em ensino de Filosofia com habilitação em História na sala 02.7 na Universidade Pedagógica – Sede. No fundo da sala sentava um senhor, franzino, calmo e dedicado. Chamava-se Miguel Vicente, nascido no planalto dos makondes, no distrito de Mueda, província de Cabo Delgado. Miguel Vicente era um visionário humilde e que só revelou os seus tentáculos nos meados de 2014 durante o pleito eleitoral!
Dedicado aos estudos e com notas agressivas que arrepiavam os mais novos. Miguel Vicente tinha uma carta na manga que ninguém imaginava! Já em 2012 ele já havia previsto que o seu "amigo-irmão" da infância, de lá das matas da aldeia Namau, seria o futuro presidente da República de Moçambique. Militante apaixonado pelo batuque e pela maçaroca, sonhava em terminar a licenciatura, mestrado e doutoramento e abrir espaço para os mais novos em Cabo Delgado; terra hoje martirizada pelo terrorismo.
Durante horas, Miguel Vicente reflectia como tornar a sua bela terra, num local de referência local, nacional e internacional onde a juventude e não só teriam oportunidades sociais, políticas e económicas. Miguel Vicente sonhava com uma vida, onde as condições básicas de vida seriam facilmente suprimidas através da educação e emprego. Embora professor de formação e em exercício, Miguel Vicente pensava num Cabo Delgado e Moçambique diferente.
Miguel Vicente, bolseiro do sector da educação em Cabo Delgado, seguia um percurso académico invejável até que no quarto ano do curso foi encavilhado por um docente fazendo-o reprovar a uma disciplina, História de Moçambique. Excluído naquela disciplina nuclear e com uma nomeação a Inspector Provincial do Sector de Educação à espera, Miguel Vicente caiu doente, com o corpo paralítico e sem forças; foi transportado de Maputo para a 3ª maior baía do mundo, Pemba. Recuperou da doença e veio fazer a disciplina em falta, com sequelas da doença. Terminou a disciplina curricular e voltou a ter uma nova recaída. Teve que voltar para casa, com sinais de melhoria, quando faltavam dois dias para a defesa da monografia científica teve mais uma recaída (parece que o diabo não o queria largar). No dia da sua defesa Miguel Vicente perdeu a vida.
Sepultado no planalto dos Makondes, Miguel Vicente era um amigo sonhador do Presidente e foi enterrado no primeiro ano de mandato do seu grande irmão. Os sonhos de Miguel Vicente rebatiam a tese de que alguns estudos sobre as causas do terrorismo apregoam, infelizmente ele perdeu a vida dois anos antes dos terroristas destruírem sonhos e projectos de vidas como aqueles que o amigo do presidente sonhava: um Cabo Delgado próspero e diferente.
Os contornos da vida de Miguel Vicente parecem terem partido junto com ele no túmulo e que homens iguais têm uma característica comum: partir cedo! Miguel Vicente, caso estivesse em vida seria um lutador incansável para estabilidade e a triste realidade que o povo que lhe viu nascer vive, hoje. Miguel Vicente deve estar a revivar-se no túmulo por tudo que está passar! O amigo do presidente que morreu com a vontade de fazer mais pelo povo…
A primeira experiência que tive foi terrível, eu tinha apenas catorze anos. A minha mãe sofria de uma doença desconhecida. Estranha. Rastejava como um grande lagarto humano. Por vezes contorcia-se lembrando as serpentes em desespero. Na nossa casa o silêncio era por demais aterrador, e os meus dois irmãos mais novos chegaram a um ponto em que já não falavam. De fome. Parecia que estavam num funeral sem fim, assistindo aos seus próprios corpos descendo ao abismo. Vezes sem conta acercavam-se da mamã, abraçando-a sem se importarem com o mau cheiro que exalava. Eles também, como eu, cheiravam mal por falta de banho.
Não tinhamos nada. O papá foi-se embora para onde até hoje ninguém sabe, numa altura em que ainda não podiamos perceber as coisas, e a minha mãe nunca nos explicou sobre o desaparecimento do nosso projenitor porque ela perdeu a fala. Fomos crescendo como filhotes de uma fêmea abandonada. Incapaz. Sem provento. Pior do que isso, uma fêmea decepada por dentro, que vai passar a vida inteira sem poder caminhar na vertical. Era arrepiante ver minha mãe erguendo o corpo como uma grande salamandra e ir a casa de banho para a satisfação das necessidades. E regressava sem se lavar adquadamente porque não tinhamos sabão. Não tinhamos nada. Absolutamente nada. Não sabendo, até hoje, como é que chegamos vivos até àquele limite.
Mas eu já não podia suportar mais uma situação que superava as nossas capacidades de sofrimento. Era um castigo que queimava mais que o fogo do vale de Guehena. Então, precisa urgentemente de fazer qualquer coisa. Tinha que me mover, não como a salamandra encarnada na minha mãe, mas como alguém capaz de abdicar do corpo e entregar-se aos sabujos. Era mais fácil assim, segundo o que eu pensava, do que procurar trabalho com a idade que tinha. Por isso decidi vender-me para alimentar meus irmãos e tentar mudar a vida da minha mãe.
Apesar de criança, eu possuía corpo de mulher. Era bonita, e já tinha consciência de que nenhum homem resistiria aos encantos da minha fisionomia. Era portador de um activo valioso, que podia ser colocado na mesa das negociações com alguma arrogância. Aliás, antes de entrar nesse carreiro do diabo, já conversava com as minhas vizinhas que tinham uma longa carreira de prostituição e elas falavam-me das manhas que era preciso ter se quisesse fazer aquele trabalho catalogado no patamar do abominável. Até porque fui relutante, porém cheguei ao ponto em que já não aguentava assistir a minha família sucumbindo.
Expus-me resolutamente na montra da noite, preparada para o pior, vestindo saia curta, comprada com dinheiro que pedi emprestado a uma daquelas que viriam a ser minhas companheiras do infortúnio.. Sabia que estava entrando para o inferno, porém nas circunstâncias em que vivia com a minha mãe e meus irmãos, eu precisa entrar no inferno, para dar o Céu aos meus irmãos. À minha família. Não era o prazer que me chamava, mas o dinheiro, esse metal do diabo, que sem ele não haverá pão em casa.
Parou ao meu lado um carro de luxo, e o homem que ia ao volante convidou-me gentilmente a entrar. Já me tinham dito, as minhas amigas, que eu valia ouro, por isso não devia brincar em serviço, ou seja, tinha que cobrar de acordo com o meu estatuto. E foi isso que fiz. Sem saber, todavia, que a experiência seria amarga.
Eu era virgem, e o homem, ao aperceber-se disso, despejou sobre mim todo o seu sadismo. Estuprou-me com violência, e ainda revirou-me como carne no espeto sobre o fogo, sem se importar com o sangue que molhava os lençóis da pensão. Eu gemia de dor, e ele castigava-me mais a cada gemido.
Voltei para casa de madrugada. Esfarrapada no corpo e na alma. Revoltada. Decidida a nunca mais voltar a entregar-me às noites. Mas era mentira. Nesse dia a luz materializou-se na nossa casa. Comemos pão com salada e peixe frito, como nunca o tinhamos feito. Os meus irmãos tomaram banho com sabão. E a minha mãe, sem me dizer nada, chorou por perceber tudo. E comeu a comida da ignomínia. Mas tinha que comer para sobreviver.
Tornei-me profissional depois de todas as dores. Depois de toda a vergonha. A minha ferramente era o corpo. Usado e abusado, mas era uma importante jazida de rubis esgotáveis. Comprei um apartamento. Levei minha mãe ao tratramento médico na África do Sul, de onde regressou curada. Os meus irmãos estão formados, com a universidade paga pelo meu corpo subjugado. Mesmo assim, continuo a ser uma cobra, apesar das vestes de púrpura que me cobrem.