“O que me preocupa não é o grito em torno do que será feito com o Fundo Soberano (FS), mas sim o silêncio sobre as suas fontes de financiamento”. Volto a esta frase, mas antes um lembrete: na novela brasileira “O Bem Amado”, o perfeito Odorico Paraguaçu atribuía ao poeta Rui Barbosa algumas das suas eloquentes frases. Questionado sobre a autenticidade de uma delas, o Odorico respondeu: “Se o Rui Barbosa não disse, devia ter dito”. O mesmo com a frase acima: se Martin Luther King ou uma outra figura mundial não disse, devia ter dito”.
A citação é a propósito da auscultação em curso sobre o FS. Ao que parece, o FS é uma resposta para alojar e distribuir a (excedente) verba do gás de Palma e não só (rubis, grafite, etc), tendo a diversidade das fontes sido até teor de uma recente observação do presidente da República na cidade da Beira, aquando da inauguração do edifício do Banco de Moçambique, a instituição na liderança da proposta e debate sobre o FS. E ainda a propósito: “Por acaso já houve uma auscultação sobre as fontes de financiamento do FS? Quiçá, por aqui fosse um caminho a considerar, lembrando, à luz da citação, que não é só o ponto de chegada (destino) do dinheiro que preocupa, mas sim, e sobretudo, o seu ponto de partida (origem) e este pode até não ser soberano, atendendo que o país não controle o negócio, e nem saudável, atendendo, por exemplo, a certas circunstâncias do processo de exploração/produção como as de guerras e de violação dos direitos humanos, tal o caso do mundialmente famoso “diamantes de sangue”, e ainda de políticas (fiscais, laborais, etc) prejudiciais ao país.
E longe de qualquer analogia (tipo “gás de sangue”), e bem para concluir, urge que se traga à mesa do debate as fontes de financiamento do FS, e do desenvolvimento em geral, e ainda, e é imprescindível, a necessidade de aferir quão soberanas e saudáveis elas são sob pena do FS ser, a partida, um fundo com um fundo falso e problemático. De contráio, e também dizia o citado perfeito: “Em cavalo manso todo o mundo monta”. E já agora: caso o perfeito Odorico Paraguaçu não tenha o dito, que tivesse dito.
O demonstrativo desse sentimento é a minha obsessão por lugares abertos com pouca gente, como aqui onde me encontro, na Praia da Barra, testemunhando a derrocada do próprio fascínio. Vejo o Índico avançando devagar, porém resoluto, ao encontro das dunas ocupadas pelos homens, e parece já não haver nada a fazer perante a fúria do mar. Que vai destruir tudo isto.
Tenho o celular no dispositivo do silêncio, pois não quero ser interrompido nesta audição à música do oceano e dos pequenos montes de areia que vão sendo deluidos pelas ondas. Eu oiço esses montículos cantando dentro de mim a melodia da dor, composta pela ganância e estupidez. E nós mesmos não quisemos perceber os limites da nossa liberdade, indo até onde não deviamos, tocando em obras da natureza feitas apenas para a contemplação.
Eu também faço parte desta praia que vai sendo demolida pelas águas, pedaço a pedaço. Estou aqui há muitas horas e ainda não vi ninguém passando ou chegando, a não ser as aves marinhas voando rasante por sobre as ondas, outras passando perto de mim, saudando-me, ou simplesmente para admirarem alguém que ousa estar sozinho num sítio em decomposição. Sem medo de nada, nem da imensidão assustadora do mar determinado na devastação da terra.
Na verdade não tenho medo de estar aqui, e isso pode significar que estou no zénite, e a solidão, como se sabe, é o ponto mais alto da vida, e eu já estou lá, onde posso delirar livremente nas minhas alucinações provocadas pela incenssante imaginação. Aliás a minha vinda à Barra revela isso, mas no fundo é mentira, nunca estou sozinho. Tenho o mar como almofada, as dunas ruindo, as aves planando, e a presença magnética do silêncio que me faz viver como nunca.
Se há uma ave por estas bandas, arrebatada e desfrutando deste encanto sem limites, eu sou! Não me importam os ponteiros do relógio, nem as chamadas dos amigos que ligam ao meu telefone activado para o silêncio, esses podem esperar, contrariamente a esta consonância entre mim, o Índico, as dunas, os ventos, e o próprio silêncio. Até porque cheguei a pensar que a praia estivesse vazia, ela está repleta desta poção mágica vertida por sobre a minha alma.
A praia da Barra dói-me na música que ela canta, composta no conservatório do fundo dos mares. Ninguém a quer escutar, pois cada vibração é uma facada na esperança. A Barra pende num fio frágil que vai rebentar daqui a pouco, e eu estou aqui assistindo a esse momento dramático, com o celular no silêncio. E como o sol já está a cair no horizonte, por hoje basta, vou-me embora, entristecido, desolado como todo este espaço esplendoroso. Se calhar volte outro dia, sem expectativa, quem sabe!
Brava juventude
Defenda virtude
Pátria condenada
Bandeira armada
Cabo Delgado
Vive medo
Juventude condenada
Guerra intensificada
Todos choram
Riqueza roubada
População escorraçada
Ninguém reclama
Alma esquecida
Xitaxi apagado
Dor profunda
Militar corrompido
Cabo abençoado
Guerra porquê
Povo sofrendo
Terror Moçambique
Moçambique viva!
Sangue derramado
Maldito bandido
Saqueando iva
Omardine Omar - Maputo, Dezembro de 2020
M´saho é essa grande festa dos chopes, organizada anualmente para esconjurar os espíritos que têm trazido ventos infaustos por aqui. O próprio mwenje, árvore de onde se vai extrair a madeira para produção da timbila, está sendo varrido por poeiras invisíveis que se instalaram em mãos humanas para destruir. De ano para ano a sensação que nos fica é de que o remoinho provocado pelo toque e dança e canto desta tribo do sul de Moçambique está a desvanecer. E para agravar o cenário sombrio, veio a COVID-19 impedir a realização – que teria sido em Agosto – do festival cujo palco entra em consonância com as Lagoas de Quissico.
Warethwa! (Cuidado!). Na verdade quando a xipalapala retumba, é preciso ter-se cuidado com o que vem das mãos e do corpo inteiro dos chopes. Da alma deles. Inabalável. Revolta. Insaciável. Quer dizer, Quissico - o vilarejo eleito - ressurge. Engrandece-se. Embevece. E é projectado para o mundo inteiro, de onde depois traz as pessoas do planeta para este lugar insignificante na sua geografia. Todos querem estar aqui para se embebedarem com a loucura da timbila. Delirarem com as diabruras esvoaçantes da mathchatchulani, que vai parecer uma gazela dançando livre nas savanas, nas manhãs, agradecendo à Deus pelo sol que raia com esplendor no crepúsculo..
Mas hoje em dia eu não sei se o M´saho ainda tem verve. Não sei se esta festa continua a resguardar o unguento dos tempos para amassajar as almas sedentas da secular música vertiginosa dos chopes. Não sei! Tenho as minhas dúvidas. Parece ser urgente e inadiável que se tenha em grande consideração o facto de estarmos perante um Património Cultural da Humanidade. Não que não haja esse respeito, mas a sensação que tenho é de que está-se a fazer pouco, começando pelo palco que acolhe as orquestras. Ou seja, para quem chega antes de começar o M´saho, e antes de chegarem as pessoas da assistência, regra geral o que se vê são pequenos sinais como dísticos apelativos com pouca chama em termos de imagem. E pior do que isso, olhando-se para o palco, a pergunta que vai surgir imediatamente será: é aqui onde vamos assistir às loucuras dos chopes? Na verdade o palco instalado não é de forma alguma digno de receber uma manifestação de tão elevado porte cultural.
É aqui provavelmente onde começa, ou se agudiza a contrariedade. Talvez a decepção. Os executantes são acolhidos naquilo que tende mais para um alpendre carrancudo, do que propriamente para um palco. Quem construiu aquilo provavelmente não tem sensibilidade sobre o que é um festival desta dimensão, sobre a grandeza da timbila no mundo. Não só temos na obra os irritantes pilares múltiplos, como também o tecto atarracado, sufocando os artistas e aqueles que estão sentados nas bancadas.
Em conversa oportuna com Filimone Meigos (director do ISARC) e Rufas Maculuve, músico e professor de música na mesma instituição, eles também indignaram-se com o palco que deve ser repensado urgentemente para os próximos festivais. O lugar tem um tesouro invejável que são as Lagoas de Quissico, esplendorosas, algo que não pode passar despercebido durante o evento. As Lagoas de Quissico devem fazer parte do Festival. E fazer com que aquela paisagem seja pertença do M´saho, passa necessariamente por repensar o palco.
É imperioso e urgente levar as coisas mais a sério, porque aqueles que vão à Quissico pelas alturas do M´saho, querem ver a beleza em si estampada em todo o lado. Os estrangeiros em particular, vão para ali porque já ouviram falar desta manifestação cultural e sabem que é Património Cultural da Humanidade. Sabem que a festa da timbila é elevada, então os organizadores precisam de corresponder à todas as expectativas, tornando o festival num importante eixo que deve passar também pela capacidade de fazer a comunicação e imagem. O Marketing. E espreitar aquilo que se faz noutros eventos pelo mundo fora, porque o M´saho tem dimesão mundial. E em tendo uma dimensão universal, é preciso fazer algo que justifique isso.