Recebi uma chamada telefónica de alguém que me acompanhava no facebook, pelos vistos de forma muito particular, ele dizia que já não me via naquela plataforma, o quê que se passa, ilustre? O interlocutor que me abordava nem sequer teve tempo de se identificar e eu não me importei, não lhe perguntei quem era, achei isso supérfluo. É uma figura que fala de forma afável, com o nível mais alto de educação, sentia-se até certo ponto alguma angústia na forma como articulava as palavras. Era voz de um homem a quem eu fazia falta, e isso comoveu-me. Parecia que ele tinha falta de oxigénio, e o oxigénio sou eu. Então é preciso encontrar a melhor resposta para não decepcionar o meu seguidor.
Mais do que tudo, esta ligação renova-me, significa que estou sendo valorizado por um desconhecido, e é embaraçoso quando somos colocados numa situação destas. Vacilei várias vezes até encontrar aquilo que achei ser a resposta mais adequada, embora ambígua. Disse-lhe mais ou menos assim, a vida é inesperada, meu caro!
Depois houve um silêncio tanto do lado de lá, como do lado de cá, parecia que tudo estava sintentizado nesta expressão, “a vida é inesperada, meu caro”! Sim, a vida é inesperada! Ele percebeu esta verdade de modo que não restou outra coisa que não fosse agradecer os momentos agradáveis que lhe proporcionei durante uma temporada, e eu nem sabia que estava alimentando com as minhas intervenções, o coração de um ser humano que agora enconsta-me à parede, não segurando uma espada, mas um pequeno vaso cheio de flores. Aliás, antes de desligar o celular, eu ainda disse mais, talvez um dia volte, quem sabe!
Agora preencho uma grande parte do meu tempo descendo à pequena península que fica aqui perto da minha casa, onde outrora era o paraíso da juventude. Fico neste lugar desordenadamente ocupado por ávidas construções, quase todas elas frágeis, durante horas e horas assistindo ao mar que vai devorando aos poucos a terra incapaz de resistir. Sinto pena dos moradores que já perceberam tudo, ou seja, a destruição das suas casas é inevitável, isso vai acontecer mais dia, menos dia.
Chama-se Mabananeni este espaço que já foi um esplendor, presentemente cercado do lixo rejeitado pelo mar que canta a música do aplocalipse. Nas noites, em dias de marés enquinociais, as ondas, cansadas de se esbaterem nas margens, entram pelas habitações adentro molhando tudo e as próprias pessoas que serão fustigadas até ao interior do ser. Depois a maré vai vazar para esperar outros enquinócios que já se tornaram ferozmente cíclicas.
Já não tenho dúvida de que a minha pequena península um dia desaparerá, engolida pelo mar determinado, e eu acompanho esta dura realidade sem poder fazer nada. Resigno-me como estes poucos moradores trazidos pela desgraça. Assisto impotente, as ondas avançando de triunfo em triunfo, ao encontro da nossa derrota colectiva.
Para os que apreciam conversas de café sabem que é bem normal que apareçam por lá algumas figuras que são apelidadas de inconvenientes salvo melhor qualificação. Entre as várias categorias de inconvenientes falo dos da espécie que arrasta a conversa para a propria brasa, embaraçando o sossego dos demais ou de parte destes. A inconveniência reside no conteúdo e no tom alto da fala. Também sabem que uma das formas para debelar esta espécie passa por pedir ao garçom que o abasteça. A fórmula é simples: enquanto ele estiver convenientemente abastecido é o mesmo que abatido ou que no mínimo o conteúdo e o tom da fala passassem para o campo romântico.
Contudo, nem sempre a estratégia de abastecimento funciona para debelar um dito inconveniente dos salões de café, pois este, o dito inconveniente, pode até pertencer a uma estirpe resiliente e o efeito da estratégia sair pela culatra, ou seja: quanto mais abastecido, mas desprendido. Perante o aguçar da inconveniência, aos afectados restam apenas duas saídas: a mudança de café ou de estratégia. Tirei a dúvida este final de semana. Estava, entre amigos, num afamado café da cidade. E lá também estava um dito inconveniente e em plenas funções. Depois de algum tempo alguém pediu a um dos garçons que deixasse um cálice (de vinho amargo) na mesa dele. Uns minutos depois, e bem audível, ouviu-se: “Garçom, afasta de mim este cálice”. (já ouvi algures uma frase parecida).
Era o dito inconveniente. Em diante ele passou a ser conhecido por poeta, pois ocupava o seu dia em salões de café declamando poesias (decifráveis para poucos) que dizia, e com euforia, serem da sua autoria. E pelo jeito que as coisas andam - por conta da vaga de salões de café em tempos de pandemias – a previsão aponta ( e a História confirma) para a chegada de uma vaga de poetas. Oxalá, e para fechar, que esta vaga também não paute pela súbita ausência tal como a da pomposamente anunciada vaga de calor da passada quarta-feira.
Tudo o que ela diz parece uma renovação, pela maneira como dá sentido às palavras. Vibra em todo o ser quando diz, por exemplo, que a linha férrea passava por aqui. Aqui perto da minha casa. É como se ela própria fosse o comboio à vapor puxando em tempos de história e cumplicidades e amizades desinteressadas, longas carruagens repletas de gente em feliz algazarra. Rebusca passados esquecidos e transforma-os em fonte de água nos dias de canícula. Desdenha as muletas e o andarilho, mesmo sabendo que aquelas pernas precisam de ajuda.
Sumbi Mahenhane é a lembrança das frenéticas execuções de zorre, em noites vertiginosas nos subúrbios da cidade de Inhambane. Era a raínha sobre quem tudo gravitava, incluindo o batuque tocado por Mafanele, o “King”. Sumbi puxava os instrumentistas para o ritmo do seu corpo, desenhado pela Mão do próprio Deus para enlouquecer. E quando ela não estivesse nesse dia, as estrelas do Céu recusavam-se a brilhar. A lua também.
Hoje ficaram as palavras que lhe ressurgem da boca e do espírito. São elas – as palavras – que dançam debaixo do rufar imaginário dos tambores que outrora eram os fundamentos da vida desta mulher. Só a dança lhe dá o sentido da existência. O sonho só pode prevalecer com o som do ritmo. Nada é mais importante, senão a dança. E o amor. É por isso que continua a dançar, agora com as palavras. Retumbantes.
O que mais impressiona em Sumbi Mahenhane é a inabalável vontade de viver. Ela fala com esperança, como se o corpo esperasse nova oportunidade de pisar os palcos e balançar em liberdade. Espanta a memória deste pássaro. Ela lembra-se de todas as noites em que a luz era o seu corpo. E na verdade, Sumbi era o encanto da própria vida. Ou seja, o óleo derramado em Arone, desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, foi inoculado também sobre esta mulher que brilhava em todo a esfinge. E agora reluz em toda a alma que ainda mora neste corpo em derrocada.
O que move Sumbi Mahenhane não é o presente, mas o passado de glória. Passado do qual nunca recebeu medalhas. Nada! Ela nem sabe o que é isso. Bastam-lhe os ecos da alegria que dava ao povo. As galardões são as pessoas do vulgo, algumas das quais ainda demandam a sua casa para falar desse passado. Com a mesma verve com que o corpo se entregava à dança. É essa presença humana que a faz acreditar no futuro.
Completou noventa anos no dia 15 de Junho passado. Festejou com a família e amigos, num ambiente em que não faltaram batucadas leves, para celebrar o passado de alguém que continua a falar com alegria. Com esperança.
Parabéns, Sumbi Mahenhane!
Ser um saqueador de bois nas terras onde eles são maioria relativamente às pessoas que cuidam deles é uma certidão de óbito garantida; principalmente quando o larápio é um indivíduo que vem de uma família em conflito com algumas "bem influentes figuras" no seio das autoridades locais e da associação que protege os interesses dos grandes criadores dos bovinos.
Na boi-village não existe piedade e nem regras excepcionais na hora de pegar na matemática e acertar as contas. As autoridades atiram casos similares para o balde de lixo que estiver mais próximo. O estilo de vida e a actuação relembram os velhos tempos das cowboiadas americanas. A bala soa mais alto que a sensatez humana. Em caso de fuga do infractor, as sessões de tortura são activadas no estilo da "Cosa Nostra na Itália".
Em boi-village "matar é um acto profético". Lá onde o animal é tratado nos moldes indianos. Em caso de furto de um bovino, se o mesmo não for devolvido, o ladrão vê a sua caminhada na terra colocada um ponto final. Se a quantidade infinita de socos não resolve as longas horas de agonia, a bala ou o combustível são chamados ao terreno. É uma situação que, pelo modus operandi, revela uma protecção de alto nível aos locais; chegando mesmo a bófia a preferir que o infractor vá para os corredores da tortura e da morte das associações que numa esquadra.
É o que se verificou, recentemente, na "vila dos bois" quando duas famílias duelaram tendo deixado um rasto de mortes e de dores em ambos lados. Quatro homens jovens foram enterrados, sendo que dois eram irmãos e com muita energia e com projectos pela frente. A paixão excessiva pelos bovinos alheios fez um cair, com rapidez, na cova. Na hora de apurar-se a veracidade dos factos todos sabem contar, mas ninguém diz o certo. De tantas versões, o acto acaba virando uma equação inexplicável; no dia em que a vila dos bois caiu na tragédia que alimentou rumores, fofocas, conversas de barraca em tempos de pandemia, ressuscitou velhas feridas da busca pelo xibedjane e deixou a justiça pelas próprias mãos a imperar - provou-se que o ovo nasceu antes que a galinha/galo.
A cowboiada da boi-village ficou ardilosa e cataclísmica quando o povo viu um pai com o filho mortos por uma bala de ajustes de contas, correndo de um lado para o outro nas instituições locais pedindo justiça. Mas ninguém estava aí para ele... Frustrado e decepcionado pela inoperância das autoridades policiais e judiciais carregou o corpo para casa. Accionou os membros da associação e saíram a cavalgada à caça dos sapiens-sapiens que haviam regado a terra com o sangue real da localidade.
A família e a cowboiada partiram para a casa dos assassinos do filho "shot man". Chegado lá, pegou na mulher de um dos visados e começou um longo período de tortura e de interrogatório. A mulher resistiu, mas foi traída pelas constantes chamadas e mensagens que seu amado fugitivo fazia. Mas a resistência da jovem mulher acabou esgotando, sem alternativa, ela começou a cooperar e a revelar o local onde estava o seu cônjuge, até ser encontrado e levado para "a mata certa e da morte".
Não houve piedade e nem orações de pedido de perdão para o anjo da morte, o ajuste foi protagonizado. Os dois irmãos foram assassinados. A raiva havia sido amainada de um lado e instalada. O modus operandi das famílias provou que os cowboys existem também em Moçambique.
Nas margens das lindas terras de Marracuene um outro acto, hediondo, gelou as comunidades locais. Quando um homem foi linchado por ter roubado algumas cabeças de gado bovino. A ferocidade que os criadores usam para desincentivar o roubo de gado relembra as peripécias da saga "Django Libertado", interpretado por Jamie Fox, onde os caçadores de recompensa percorriam longas distâncias para deter ou matar os ladrões de gado.
Embora roubar seja um pecado no mundo religioso. Crime segundo as Leis de todos os Estados. É um peso moral e ético. Penso que os criadores deveriam ser mais pela legalidade e confiar nas autoridades policiais e judiciais, porque do modo como fazem as coisas demonstram ser os senhores da terra, dos bois, das vidas que tiram, da lei e do céu. Ou seja, sentem-se deuses na terra...(O.O)
As crianças que morrem à fome
de cólera, miséria, violência
abandono e selvajaria governamental;
Louvados sejam
Todos aqueles que sem condições
lutam
por mais um dia de felicidade
por mais uma refeição de verdade;
Louvados sejam
Os heróis anónimos que morrem
nas matas
montanhas e emboscadas
lutando por um ideal desconhecido;
Louvadas sejam
As mulheres da minha pátria
que com um bebê
nas costas cultivam a terra
produzem alimentos que poucas vezes consomem;
Louvados sejam
Os governantes do amanhã
que com a sabedoria
do passado e presente podem
combater os erros dos seus antecessores
suprirem as diferenças regionais
evitarem a miséria
da guerra, corrupção, misantropismo e neocolonização;
Louvados sejam
Os jovens íntegros
que diante da cólera do desemprego,
exclusão
Perseguição e até abate de cérebros pensantes
acreditam num futuro risonho
colorido de esperança, glórias e sem miséria;
Louvados sejam
Os sábios de ontem que alertaram
sobre
a maldade da ditadura
tirania, oligarquia e os vícios da democracia.
Que incompreendidos morreram
perante a intolerância dos seus
governantes
morreram afogados
Com seus pensamentos, conhecimentos e devaneios progressistas;
Louvados sejam
Os nossos inimigos criados
que
mesmo com a miséria do povo defendem
a podridão de um governo
incapaz, ineficaz e desculture da paz;
Louvadas sejam
As almas dos rapazes de Xitaxi, Matchedje, Bilibiza, Negomano, Vanduzi, Gorongosa, Morrumbala e Chiango
Louvados sejam
Os africanos e moçambicanos
do amanhã
que terão a oportunidade através
da educação, formação, da história antiga e actual
Perceber os malefícios da guerra e corrupção
Compreender que os países e o local de nascença viveram
durante anos condenados às ambições misantrópicas e endémicas
dos seus governantes e aliados
que o imperativo da paz foi sempre preterido
em favor do derramamento do sangue inocente e chacinas em troca da riqueza do povo e do silêncio dos capazes...
Louvada seja
A pátria que amamos e por ela labutamos, nos marimbamos, lacrimejamos e nos ensanguentamos...
Omardine Omar - Janeiro de 2021.
Na virada do ano pensei no Estado moçambicano em 2021, sobretudo na sobrevivência ou resiliência dos elementos que compõem um Estado: Território, Povo e Poder Político/Soberania. Cogitei sobre cada um deles e no final uma pergunta ficou no ar: o que será destes elementos na Pérola do Índico em finais de 2021?
Na esteira da cogitação lembrei-me que na primeira década do século em curso participei em vários tipos de eventos cujo objecto era o combate à pobreza ou mesmo o desenvolvimento do país. A dado momento não me revia nos propósitos dos planos em debate por achar que não eram os mais correctos para o que o país precisava. Entendia eu que o principal objectivo passava por “Organizar o Estado” e não o de reduzir/eliminar a pobreza ou o de crescer o país de x para y. Na altura partilhei esta ideia com uma amiga que tratou logo de discordar e no lugar propôs que “Organizar as pessoas” é que deveria ser o objectivo. Na defesa do seu argumento ainda alinhou uma série de altos dirigentes como exemplos de que antes de organizemos o Estado devíamos organizar as pessoas. Foi difícil não concordar.
Hoje, decorridos mais de 10 anos da conversa, acabei ligando para a citada amiga afim de partilhar a minha inquietação, a que ficara no ar acima. Mal eu terminara a contextualização e a decorrente inquietação, ela perguntou: “Já habemus pessoas?” Certamente uma outra pergunta que fica no ar. De toda maneira, e para terminar, tal como a maioria de nós recebeu um “votos de próspero 2021”, vai o meu “Próspero 2021 Estado Moçambicano”.