Que o país precisa de reconciliação é um dado adquirido e também, é um dado adquirido de que existe uma gama de perspectivas sobre a reconciliação, em particular sobre o ponto de partida para o efeito. De onde partir? Eis a questão. Isto a propósito de uma intervenção recente do presidente da Renamo na qual defende a criação de uma comissão para a reconciliação nacional como instrumento crucial para uma paz efectiva.
Na fala do presidente da Renamo subentende-se que ele circunscreve a reconciliação na esfera dos 16 anos de guerra travados entre o seu partido, então movimento de guerrilha, e o então regime marxista-leninista dirigido pelo partido Frelimo. A priori, um ponto de partida para a reconciliação, e também (mais) um assunto exclusivo entre os dois protagonistas-mor da história recente na decisão sobre os destinos da governação do país: a dupla Frelimo/Governo-Renamo. Por outro lado, há quem defenda um outro ponto de partida que - embora fora dos “direitos de exclusividade” da dupla citada - é bem anterior e com várias nuances, incluindo a dos 16 anos, e que decorre, por coincidência, de outros (e genuínos) “direitos de exclusividade” na governação de Moçambique independente e ao que parece, a sina da governação na Pérola do Índico.
A meu ver, é por aqui (“direitos de exclusividade”), um outro ponto (e prévio) de partida para a reconciliação nacional: o da guerra contra os “direitos de exclusividade” na governação do país. E aqui tomo, para fechar, a proposta do presidente da Renamo como parte, e que urge, de um debate sobre a reconciliação nacional. De toda a maneira: Alea jacta est!
Em finais de 2020, nas margens da bela praia do Wimbe, em Pemba, província de Cabo Delgado, um jantar magno e inesquecível foi realizado com os escribas. Numa terra assolada pela maldosa guerra e milhões de almas famintas, os escribas foram coagidos a não reportar com profundidade a triste realidade que a população enfrentava. Um jantar que serviu de entulho para calar as bocas dos escribas.
No encontro onde também foram atribuídos certificados de honra aos alinhados ao silêncio, os escribas tiveram que acompanhar um longo discurso xavequeiro e desprazimento para os outros órgãos de comunicação social que reportam sem ocultar a situação dramática que a população encontra-se a viver.
Não houve piedade e nem vergonha, o que contava para os organizadores da grande ceia era convencer aos escribas de que a guerra não era tão má e que o foco não deveria ser reportar as atrocidades, mas sim encontrar beleza, poesia e felicidade nas matas de Mocímboa, Macomia, Nangade, Palma, Quissanga e Muidumbe.
Os escribas ficaram alegres por jantar ao lado de nobres chefes, não se janta todos dias com direito a uma sobremesa de técnicas de tratar a informação. Os escribas, palitando dentes com a língua, concordaram que o pedido era legítimo e que os problemas do povo da província não seriam a prioridade e que tudo que fosse noticiado sobre a situação da província não teria anuência dos escribas locais.
Entre brindes foi dito que os directores, editores e jornalistas da Capital não faziam jornalismo, mas sim punham pregos à Pátria e traiam a soberania nacional. Os escribas locais foram, neste jantar, administrados uma vacina para sempre desmentir tudo que fosse pelo rebanho de investigadores da Capital. Morria-se em Cabo Delgado, mas no jantar morria a fome com lagostas, polvo guisado, nhede, arroz legume, camarão e outros pratos maravilhosos. Uma mesa repleta de whiskies, vinhos, cervejas e refrigerantes caros e raros aos olhos dos escribas que tanto trabalham e pouco ganham; o acordo já tinha sido selado: minimizar o drama humanitário que a população vive.
Desta vez, não foram moedas que atraíram os seguidores da seita de Judas Iscariotes, mas sim descompromisso com a missão do escriba, talvez para não seguirem as pegadas de Mbaruco, Abubacar, Adriano, Valoi ou outros que a "media intriguista" não reportou.
Na grande ceia, escribas como Mosse, Guente, Omar, Nhantumbo, Lima, Tom, Nhamire, Beula e os analistas de plantão foram julgados e condenados sem direito a um advogado; afinal era a grande ceia. As epístolas emanadas não eram passíveis de contestações e muito menos de questionamentos.
Nunca falei com esta mulher, jamais ousei aproximar-me de um vulto tão profundo e tão desconhecido e tão vulcânico. Na verdade já estive variadíssimas vezes perto dela, no mercado, onde quase todos os dias nos cruzamos e quase nos roçagamos, mas é só assim, sem nenhuma palavra. Eu sempre senti-me pequeno demais para um empreendimento que de longe supera todas as minhas capacidades. Não porque a desejasse, no fundo o que eu almejava era ser um simples conhecido de alguém que parece um felino, uma bela gata.
Pode ter ultrapassado o limite dos sessenta, e nessa idade o corpo, todo ele por inteiro, começa a secar e sobram poucos fios capazes de nos atrair e lembrar-nos de que estamos vivos. Porém, apesar dessa tragédia inevitável provocada pelo tempo, esta obra do Altíssimo ainda reverbera. Tudo nela parece intacto, incluindo o olhar fugidio, frequente em donzelas que transportam nos gestos as tenazes armadilhas da paixão.
Chama-se Genoveva Chacassane, um nome que parece resumir toda a estrutura de uma criatura que em si só já é um vendaval que não pára de criar o caos no seu percurso. Anda invariavelmente vestida de capulana e lenço de cabeça e chinelos e um cesto pendurado no braço, tudo novo, o que me leva a pensar que ela tem um baú interminável. Aliás o outro pormenor que a destingue é o colar de ouro que dança no peito farto, e as várias pulseiras, também de ouro, adornando os braços. Nos dedos não tem nenhum anel.
Há dias em que vou ao mercado só para ver a Genoveva Nhacassane, que brilha para além dos diamantes. Conheço a hora dela, não falha. Por vezes saio decidido a dizer-lhe qualquer coisa, nem que seja um disparate, mas quando chega a hora da verdade, vacilo como os mabecos humilhados pelos grandes predadores. Tremo de alto a baixo e volto para casa envergonhado pela minha incapacidade. Tento de novo outro dia e... nada! Bebo uns copos para ver se o álcool ajuda-me..... também nada!
Genoveva Nhacassane se calhar nem sabe que eu existo. Pior do que isso, provavelmente sabe e não me vê como nada. E na verdade pode ser este caso onde sou um personagem secundário, dispensavel, porque sempre que chego perto dela, sinto-me um nenhumano. Fico com medo perante tanta beleza chocante.
Genoveva Nhacassane é uma jazida de vários metais preciosos, já me apeteceu dizer isso para ela ouvir, mas as palavras nunca foram para além dos meus sentimentos, até ao dia em que tudo se revelou como o dia clareando a favor da nossa liberdade.
Partilhamos pela primeira vez o mesmo autocarro, num trajecto de cerca de dez quilómetros, de Guiúa (onde tinhamos ido fazer compras na feira agrícola das sextas-feiras) à cidade de Inhambane onde moramos. Estamos sentados lado a lado no mesmo banco, e eu pensar que seria aquele o momento para pelo menos dizer qualquer coisa, talvez um bom dia... qual! Encolhi-me na concha da minha derrota.
Genoveva significa “mulher branca como a espuma do mar”, e eu preparei-me várias vezes para dizer isso a ver se ao menos vai passar a conhecer-me, e nem isso consegui. Não tenho coragem. Agora não vejo outro caminho senão continuar a ir ao mercado, apenas para contemplá-la. Para contemplar esta linda gata que me mata aos pedaços.
Não sabemos se foi em wuhan, se foi por algum alimento, que isto começou. Primeiro julgamos o profeta por não ter previsto e sequer conhecer a cura; seguimos pensando que era falsidade dos governos, querendo apoio; exigimos além da idade do caso confirmado, o nome e a localização, precisávamos ver para crer; a seguir julgamos a medicina mundial por não descobrir a cura ou vacina contra isto antes das mortes; pensamos que a máscara irritava, apertava a respiração; lavar as mãos não tinha nada a ver, fechar barracas não era a solução porque vivemos disto.
Agora tudo está desorganizado!
O polícia agora anda nas ruas da cidade a controlar as pessoas para não se comportarem mal. Banalizamos tudo no começo, mas custa acreditar que a meta para 2021 é acordar vivo no dia seguinte. Isto está nos conseguindo! Nunca a morte esteve próximo de nós como está hoje. Nos falta até o tempo de prestar as devidas condolências, enquanto lamentamos esta, aí vem outra morte.
Essa sucessão de mortes quebrou em nós um ritual africano. Cá entre nós, quando se morre sempre se sabe quem é o culpado. Agora estamos a ser civilizados à força, acreditamos nos relatórios médicos sobre a morte dos nossos parentes, o que nunca foi cultura. COVID-19 está quebrando com a nossa cultura de chorar as mortes, o feitiço do tio mais invejoso, da vizinha complicada, daquele subordinado que quer a "cadeira", por esses dias ignoramos. Covid-19 ganhou o espaço de destaque, já não há feiticeiro entre nós, até que há, pode estar atrelado a isto, mas não mais interessa falar dele.
Se há uma coisa que a vida tinha que reduzir é a própria velocidade, se há alguma coisa que devia se adiar é a morte, nem que fosse injustiça aos já tombados que não se beneficiariam desta proclamação, ao menos daqui para frente eu e tu não passaríamos pelos murais com a legenda RIP! RIP/DEP, os telefones de alta correcção na grafia já sabem bem dessas três letras, pressiona o R, logo sai RIP, estamos no segundo mês de 2021, em termos de mortes já estamos longe, se a morte continuar flutuando de certo que encontrará a mim e você também...
Faltam ainda 10 meses para o ano acabar. Iremos na lógica de Berthold Brecht no seu raciocínio indutivo no intertexto sobre os negros levados. Hoje corona levou a elite, amanhã o vizinho, e isso não te toca porque a ti resta apenas o recurso de te vestires de preto (como dizia caveirinha), mas amanhã, quando ficarmos sozinha corona vai levar a nós. Nas eleições fazemos campanha e a propaganda ganha espaço desde a indumentária, mídias e em tudo, hoje estamos na campanha da morte, partilhamos o corro da desgraça, o obituário, necrologia é o texto mais partilhado por esses dias, é doloroso morrer assim.
E agora, se nós dois estamos aqui e no meio temos este texto?
Lavemos as mãos, usemos a máscara, distanciemo-nos socialmente, desinfectemos os nossos espaços. Não seremos imortais por isso, mas teremos feito a nossa parte.
“Os militares (Forças Armadas), os sindicalistas e os estudantes constituem activos vitais em processos de transformação/mudanças. Estes, e cada um com o seu papel na sociedade, é que mudam o curso da história”. Este pronunciamento, de alguém póstumo e de quem eu era muito próximo, foi feito há uns 15 anos numa conversa corriqueira. No mínimo, e fazendo jus ao pronunciamento, é crucial que a qualidade dos “activos de mudanças” esteja à altura dos problemas e desafios para a transformação ou alcance das contínuas mudanças requeridas no processo de desenvolvimento de qualquer Estado.
Na Pérola do Índico, infelizmente a qualidade dos “activos de mudanças” deixa a desejar. Esta manhã, por coincidência, e a razão do texto, acompanhei uma notícia na qual o Ministro das Defesa de Moçambique afirmava de que a fraqueza das forças armadas moçambicanas resulta, entre outros, e sobretudo, do desinvestimento no sector e que tal decorre ou inicia com o Acordo Geral de Paz de Roma, que ditara o fim da Guerra dos 16 anos em Moçambique. Na mesma linha de fraqueza, outro dia ouvira de que em Moçambique o sindicato é fraco ou quase que inexistente porque não existe um sector privado industrializado (tipo “não se fazem omeletes sem ovos”). Por ora, e também na mesma linha de fraqueza, não me ocorre um exemplo sobre os estudantes, mas, e pelo histórico acrítico, é notável que não diferem, em género e número, da situação dos anteriormente citados.
Neste diapasão (com “activos de mudanças” deficitários), e para terminar, é bem provável que “Desse mato não sai coelho”, a menos que, e de quem quer que seja, a intenção seja essa, a de crónico défice, e tal (e dói), infelizmente não abona por melhores dias para Moçambique.
Mais do que sentir-me feliz por estar novamente em liberdade, após superar o flagelo do Corona-Virus sobre o meu corpo, invade-me agora uma indescritível sensação de júbilo, em agradecimento profundo a todos que me amam, com certeza sem o merecer. Tenho passado os últimos anos da minha vida em cativeiro, dentro da minha própria carrapaça, um casulo que vai sendo fortificado irreversivelmente pela solidão. Estou em permanente fuga dos meus amigos, mas eles não me largam, percebi isso quando fiquei temporariamente sob as garras desse violento e cruel virus, ou seja, enquanto a dor e o medo assolavam-me por um lado, por outro lado vinha uma surpreendente avalanche de amigos que queriam saber como eu estava.
Com muitos deles eu já não falava fazia muito tempo, mas quando receberam a notícia da minha condição de positivo para o Covid-19, pegaram imediatamente no celular e do outro lado a voz comovida perguntava, como vai meu irmão? Outros apenas diziam, força brada, isso vai passar. E eu acrediatava nessas palavras de conforto, mesmo sentindo a dor na carne, o sufoco no peito, os arrepios em todo o esqueleto, as febres que me faziam transpirar suores frios toda a noite embrulhado nas mantas, as dores nas articulações. O desespero.
A minha casa transformou-se. O silêncio foi substituído por incessantes pedidos de lincença para entrar, de uma tal forma que a minha diarista jamais vira desde que está comigo ajudando-me em dias específicos. Ela percebeu que afinal há pessoas que me valorizam, como ela, embora eu ficasse com a sensação de que estava sendo visitado numa clausura de um condenado a morte, onde a comunicação é feita sem aproximação. Mas toda essa peregrinação animava meu espírito, e eu pedia-lhes para não voltarem mais enquanto não ultrapassasse esta linha vermelha. E na verdade capitulavam, como se estivesse a escorraça-los da minha casa.
As chamadas telefónicas não parávam. As mensagens entravam em catadupa no meu celular como remédio para a alma, e tudo isso ia ajudando-me na superação. A minha família ficou mais unida em redor de mim, e eu sentia-me embaraçado porque nunca fiz nada para retribuir esse amor, ou pelo menos para ser digno dele. Mas esse é o verdadeiro amor porque enquanto não me queixei, eles me amavam no silêncio, e agora que a espada parecia descer, o amor deles vibrou mais em defesa de mim.
A minha filha, a Ndola, deixou de trabalhar e veio acampar na minha casa, contra a minha vontade, pois eu não queria que corresse o risco de ser contaminada por mim, mas ela ignorou todos os avisos. Protegeu-se no máximo, juntou-se à diarista e as duas lutaram a meu favor. Foi a Ndola que me levou ao hospital para o teste, partilhamos o mesmo carro, a mesma cabina, o mesmo medo, a mesma fé de que isto é um vendaval que vai passar. Ndola olhava para mim e no lugar de se comiserar, cantava e contava-me histórias de alegrar o coração. Ficamos juntos, distanciados, e ela sempre mascarada, a lavar as mãos sem parar, conzinhando e preparando a fruta imprescindível, e eu chorava escondido no quarto. De emoção por ver minha filha feita minha médica particular.
Graças a Deus tudo passou. Obrigado a todos, aos meus amigos, a minha família. Agora estou bem, pronto para o trabalho e para viver novamente, Na minha solidão.