Estive em Maputo entre os dias 25 e 27 deste mês de Abril, contra a minha vontade. A capital do meu país já não me seduz, nem quero mais sentir o cheiro que ela expele em toda a dimensão das avenidas e ruas, e dos prédios degradados. Fui porque era inevitável, o assunto requeria a minha pessoa em presença. É verdade que já fiz parte em tempos, do ram-ram desta grande metrópole, levando uma vida intensa que incluia bares noturnos onde ia ouvir música livre, com muito fumo à mistura e outras coisas que me levavam ao paraíso do céu. Mas hoje perdi a estrutura do anarquista que eu era, por isso todo este bulício, todo este cheiro de mijo alagando as acácias e as vedações e os becos dos subúrbios, as intermináveis buzinadelas, tudo isso repele-me.
Saí de Inhambane no domingo, dia 25 de Abril, transportado num autocarro da empresa ETRAGO, que podia considerar-se confortável, não fosse o inoportuno televisor colocado lá dentro e que nos é forçado a assistir, “querendo como não”. Mesmo que eu quisesse fechar os olhos para conciliar o sono e desligar-me deste castigo, seria impossível por causa do som que incomoda. A música que toca não faz parte da minha formação, pior os vídeos que vão sendo mostrados, não têm mais do que a exibição gratuita do corpo feminino. É isso que somos obrigados a assistir ao longo de uma longa viagem de quinhentos quilómetros.
Maputo não tem nada a oferecer-me, a não ser a frustração dos jovens completamente destruidos pelo álcool e pelo fumo, o desespero das mulheres sentadas na berma das ruas vendendo tudo. Dói-me sobremaneira o tratamento a que somos submetidos nos “chapas”, nos my love. Os prédios que Samora Machel nos deu estão a ruir um a um, e ninguém sabe o que será o nosso dia de amanhã, perante gritante incapacidade.
Ainda fui a tempo de ver, à entrada da cidade de Maputo, na zona de Marracuene, a nova fábrica da 2M. Lembrei-me ter visto, por via da televisão, o ilustre Tomaz Salomão na inauguração da mesma, fazendo um discurso de pompa, enaltecendo os empregos que irão para a juventude, e o milho das nossas machambas que será empregue na fabricação da cerveja. Mas o que eu não confirmo é se a 2M que se bebe em Moçambique é de boa qualidade ou não. Isso eu não confirmo nem desminto, por isso não me empolguei tanto com a intervenção dessa fugura que é membro da Comissão Política da Frelimo. A menos que volte e nos diga que a cerveja que ele mesmo propala na publicidade, é de boa qualidade.
Mas Maputo pode ser a síntese de que todo o nosso país está a ser abalroado no alto mar, em todas as vertentes. Eu desdenho Maputo, uma cidade que tem na mesma moeda um lado falso, e outro lado real. O lado falso é da Av, Julius Nyerere para lá, onde se arrotam fígados. O lado real fica mais para cá, onde a podridão nunca vai se esconder. É aqui onde vou me hospedar entre os dias 25 e 27 de Abril, convivendo com todo o fedor dos guetos sem futuro.
Maputo não tem futuro!
Era mais um dia alegre e de muita adrenalina juvenil no conhecido bairro de Laulane, na cidade de Maputo. Tantas gajas, muitas guitarradas desfilando. Belos rostos de moçoilas endiabradas. Tarde quente. Jovens tomando cervejas e fumando charutos, maconha e snifando coca. Crianças correndo de um lado para outro. As mamanas suportando a poeira nas paragens com a corrida de Fórmula 1 dos chapeiros enquanto vendiam legumes.
Os passageiros estavam tão aflitos em chegar à praia da Costa do Sol; naquele dia o sol era intenso, embora fosse uma segunda-feira, da 3ª semana do mês de Fevereiro do ano de 2020, as meretrizes do Laulane e Hulene estavam semi-nuas.
Naquele dia, uma alma era parida à força. Um jovem contabilista de profissão e consultor de uma empresa em ascensão na capital do país, deixava o mundo dos vivos, num crime que chocou a comunidade de Laulane e os amigos do finado que horas antes da morte haviam trocado copos com ele. O crime ocorreu no modo siciliano – típico da cosa nostra.
Em vida, a vítima respondia pelo nome de Stélio Filipe Budula. Um jovem promissor, mas com amizades super-estranhas. Alguns deles metidos em negócios sinuosos e protegidos pela bófia. Os contornos da sanha assassina de Stélio parecia uma cena cinematográfica nos moldes sicilianos. Mas não, era em Maputo, Moçambique – a terra das oportunidades da Pérola do Índico.
Tudo terá acontecido quando um amigo que seguia com ele na viatura disse que a mesma não tinha combustível, tendo parado num local quando era meia-noite. No dia Stélio levava 4 mil meticais no bolso, mas mesmo assim, a cabala havia sido feita; repentinamente chegou uma viatura da polícia com agentes fortemente armados que lhe pediram a documentação. O jovem apresentou os documentos.
Na ocasião, mandaram Stélio Budula seguir em frente, donde viriam a ser cercado na zona da Igreja Maposse, onde foi apertado o pescoço por dois homens e disseram que lhe queriam matar. Dadas as suas habilidades, uma vez que tinha treinamento de artes marciais, começou a lutar com os assaltantes que na ocasião disseram-lhe que vinham para acabar com ele. Stélio Budula gritou e lutou pela vida, até que se desfez dos dois agressores, tendo estes ficado com seu telemóvel, valores monetários e uma pasta com laptop que continha informações do sector laboral.
No referido dia Stélio Budula teve que recorrer à casa do pai, sediada a escassos metros do local da agressão em Hulene. No dia seguinte, o telemóvel não foi desligado e sempre que a família ligava, os criminosos diziam para que ele fosse buscar o telemóvel na Casa Branca, Matola. O telemóvel permaneceu ligado todo dia. Um mês depois, num domingo, um amigo do finado veio tirar-lhe de casa com o objectivo de fazerem um trabalho, tendo regressado no período da noite; à calada da noite o jovem Stélio saiu e regressou no dia seguinte com o comportamento totalmente alterado.
No dia 17 de Fevereiro, Stélio Filipe Budula foi perseguido por agentes da polícia e violentado com uma AKM e depois desapareceu; os telemóveis do mesmo estavam desligados até que a família começou a procurar-lhe, tendo encontrado o seu corpo na morgue do Hospital Geral de Mavalane. Não havia nenhum registo até que a família teve que recorrer a subornos para que tivesse acesso ao livro onde constava o nome da pessoa que o levou àquele local.
Foi disponibilizado o corpo. Que estava todo esfolado, com sinais de ter sido torturado, com os braços quebrados, sem dentes e o grupo fez de tudo para que na autópsia viesse que o jovem tinha sido atropelado, uma versão que não era verdadeira. No dia da morte estava com alucinações. Os passarinhos dizem que o homem teria feito uma alta consultoria empresarial para uma das famílias envolvida no calote mediático. Donde terá facturado uma boa massa e descoberto várias malandrices que não deveria ser do seu conhecimento!
O argumento de uma possível corrosão da soberania (e de implicações nefastas) caso Moçambique aceite o apoio militar estrangeiro (presença física no teatro de operações em Cabo Delgado) não me entra. Falta gelo e limão. Aliás, foi/é por conta da defesa da integridade da soberania nacional que os países recorrem a este tipo de ajuda. Quem assim age, certamente que não o faz de ânimo leve ou por mera imposição de terceiros, mas sim decorrente do reconhececimento da própria incapacidade de per si poder lidar com o problema, no caso (Moçambique), a insurgência terrorista em Cabo Delgado.
Todavia, é compreensivel os receios de uma presença física militar estrangeira, em particular o receio de que uma vez no terreno, a dita força estrangeira não saia mais e nem o problema é resolvido e até é agravado. Em alguns países africanos, também flagelados com o terrorismo, a presença militar da França é um exemplo, e muito citado, disso. Contudo, em contra-mão, embora em contextos diferentes, cito a presença militar do Zimbabwe em Moçambique e até a de Cuba em Angola que estiveram no terreno e sairam. A menos que o receio seja o da presença física de grandes potências (França e EUA), mas, no final do dia, mesmo a presença militar de países com menor poderio militar não retira o ónus de uma presença militar estrangeira. Ademais, e ainda a propósito da corrosão da soberania, correm décadas que o país corrói deliberadamente a sua soberania por coisas (aparentemente) menores, comparadas com a guerra, quando solicita e recebe, sob certos condicionalismos (alguns arrepiantes), a ajuda externa de quem quer que seja.
Dito isto, e face a uma possível presença militar estrangeira, o problema que se coloca não é o da corrosão da soberania nacional, mas sim o da exposição da corrosão da nossa responsabilidade (política) por permitir que os problemas (graves) que apoquentam o país, atinjam níveis cujas soluções requeiram a nossa sujeição a interesses de terceirios. Neste contexto, e para fechar, referir que a corrosão da soberania nacional é um problema instalado, antigo (e estrutural) e bem anterior ao terrorismo, ditando assim que uma provável presença militar estrangeira em Moçambique (Cabo Delgado) seja apenas uma pura e natural consequência. Aliás, foi notícia, na última semana de Março, a presença de mercenários estrangeiros (de uma empresa privada sul-africana) no rechaço do ataque terrorista à vila de Palma.
"A coragem cresce com a ocasião" – William Shakespeare
Os terroristas de Cabo Delgado são impiedosos. Matam tudo que tem vida. Cair nas emboscadas deles é dizer adeus ao mundo dos vivos, mesmo quando nas bases deles a pessoa estiver na fila do interrogatório. Foi o que aconteceu com Abdala, um herói vivo que hoje vive atormentado na sua terra natal – Quelimane, depois de ter escapado das garras dos terroristas em finais de Fevereiro de 2021.
Abdala era motorista de uma companhia de transporte contratada pelas autoridades nacionais para distribuir produtos alimentares para diferentes regiões deste vasto e belo país – chamado Moçambique. Com o advento da guerra e a escassez de empresas que fornecessem serviços em distritos circunvizinhos dos assolados pela onda de terror que desde 2017 instalou-se em Cabo Delgado. A empresa teve um jackpot comercial – passou a transportar produtos alimentares para Mueda, Montepuez, Palma e arredores. Distritos que antes do ataque de 24 de Março a vila de Palma, acolhiam deslocados que fugiam dos outros pontos da província de Cabo Delgado.
Sucede que o patronato de Abdala fez-lhe uma proposta tentadora. Passar a transportar os produtos alimentares para os locais acima mencionados e que teria o dobro do salário. Abdala aceitou. Realizou a primeira, a segunda e a terceira viagem – todas elas com sucesso. O patronato estava satisfeito. Mais divisas engordavam as contas da empresa – afinal não era tarefa fácil – circular na zona de guerra com camiões transportando diversos produtos alimentares necessários e procurados por todos no planalto dos Macondes – onde devido a guerra e a desordem – a fome se instalou!
Com três viagens realizadas com sucesso. Abdala e os seus colegas não tiveram a mesma sorte na quarta viagem. Tudo começou na Cidade de Pemba, onde Abdala pretendiam levar alguns passageiros para seguir consigo o trajecto, nesta procura aparece uma mulher com quatro filhos menores pretendendo viajar para Palma, onde segundo ela, iria participar num funeral – Abdala não aceitou que a mesma seguisse viagem no camião, dirigido por si, alegadamente por que a estrada era perigosa (que tristemente, voltaram a cruzar-se no cativeiro, porque a mulher seguiu viagem num outro veículo que seria também emboscado e as pessoas raptadas. No cativeiro, a mulher viu os seus filhos serem esquartejados pelos terroristas por estarem a chorar sem parar logo que foram raptados por estes e levados para base – o responsável da base dos terroristas não teve piedade para aquelas crianças inocentes que estavam assustadas).
No dia do sequestro, Abdala seguia viagem no entroncamento da Estrada Nacional (EN 380) quando um homem armado e encapuzado parou no meio da via com uma bazuca (lança foguetes) nas costas apontando para a viatura – diante da ameaça, Abdala tentou fazer uma retaguarda para fugir da acção do terrorista, mas no mesmo instante surgiu um outro terrorista por detrás, apontando uma outra bazuca – mas o corajoso Abdala pisou no acelerador e entrou pelo interior da mata até embater numa árvore frondosa – já sem alternativas, mas tentando ligar o motor para zarpar do local, alguns ocupantes abandonaram o camião e fugiram do local sem olhar para trás – Abdala permaneceu no local e foi capturado pelos terroristas que no mesmo local emboscaram três camiões e incendiaram um que transportava pessoas e bens.
Capturado e levado para uma base provisória nas matas de Mocímboa da Praia, Abdala e mais de vinte civis foram amarrados dos pés ao pescoço e deixados dias sem comer naquele cativeiro. Uma semana depois começou o interrogatório. Os terroristas levavam um por um e perguntavam donde vinha e para onde ia, independentemente das explicações que o civil desse, o mesmo era desamarrado e forçado a carregar na cabeça um bidão de 20 litros com água para detrás de um murmuche, onde o civil era esquartejado e a água servia para lavar a espada e o banho do decapitador.
Dias passaram. Todos que eram interrogados e forçados a carregar o bidão para trás do murmuche não voltavam até que ficaram seis civis capturados. Chamado ao interrogatório, Abdala explicou que era um simples ajudante do camião – mas os terroristas disseram não, que ele era membro da Frelimo e que o seu porte físico demonstrava que estava bem de vida como os membros da Frelimo – Aflito e a beira de ser esquartejado pelos terroristas – Abdala implorou pela vida e disse que não era. Repentinamente, o responsável da base perguntou-lhe se era muçulmano ou não, tendo respondido prontamente que sim, era! De imediato, os terroristas disseram-lhe para recitar alguns versículos do sagrado Alcorão, kalimas e que demonstrasse como um muçulmano reza, o que foi prontamente feito por Abdala.
Perante a situação, parte dos terroristas ficou comovida com Abdala e a execução foi abortada – mesmo assim, haviam alguns que insistiam que ele deveria ser decapitado – mas o responsável da base disse que não! Que Abdala estaria vivo e que passaria a andar com ele para tudo que fosse lugar. Abdala virou o confidente do responsável daquela base, até que o líder principal do grupo soube do homem e decidiu visitar a base e conhecer o "famoso Abdala" que havia amolecido os corações malignos dos terroristas.
Durante aqueles dias Abdala foi convencido a fazer parte do grupo dos terroristas e como temia pela vida, o homem disse sim! Esta situação, acompanhada pelo porte físico de Abdala, precipitou a vinda do líder do grupo. Um homem barbudo, trajado a rigor como um verdadeiro muçulmano e que nas conversas que foram tendo durante aqueles dias, ficou a saber foi o mesmo que liderou os mais de 30 homens armados que atacou Mocímboa da Praia entre 4 e 5 de Outubro de 2017. O tal homem sempre que fosse aquela base vinha com maletas transbordando de maços de dinheiro para pagar e premiar os terroristas mais destacados.
Naquela visita, o líder do grupo conversou com Abdala que lhe fez o convite formal e lhe disse que primeiro seria enviado para madrassa do grupo para ser formatado e depois seria enquadrado nas fileiras dos terroristas – Abdala concordou! Mas primeiro fez um pedido "especial" e o tal dirigente respondeu – peça: Abdala disse – estou com muita fome e desde que chegamos ainda não comemos nada, já se passam dias que não vimos nenhuma refeição.
Atendendo o pedido de Abdala – o líder do grupo ordenou que os capturados e Abdala que já tinha um outro tratamento fossem levados para base principal onde poderiam tomar alguma refeição e assim foi. Chegando lá foram servidos um prato de comida para cada um – na ocasião, os outros capturados queriam recusar a refeição, mas Abdala os convenceu que depois daquele dia não sabia quando teriam uma outra refeição igual – eis que todos aceitaram e assim foi. Após a refeição, Abdala junto com outros capturados foram levados de volta ao local de origem.
Dias passaram. Os terroristas perguntaram se Abdala, o "novo aliado" sabia reparar camiões, uma vez que na base haviam veículos avariados e Abdala disse que sabia. Durante aqueles dias, os terroristas deram um intervalo as decapitações, é quando dois dos raptados tiveram a ideia de fugir, uma vez que preferiam morrer tentando do que serem degolados como "galinhas". Tristemente no grupo dos capturados havia uma mulher que mantinha relações sexuais com um dos terroristas. A mulher que participava nas concertações no cativeiro com outros raptados correu e foi contar ao terrorista que alguns pretendem fugir – alertados e chateados, reuniram todos os sequestrados e pediram para que ela apontasse qual dos civis estava a desenhar o plano de fuga – eis que ela prontamente apontou os dois coitados que foram degolados em frente dos outros.
Durante a concentração, alguns terroristas que ainda desejavam decapitar o sortudo do Abdala protegido pelos chefes, questionaram a mulher se ele teria feito parte daquele arriscado plano, tendo ela respondido que NÃO! Abdala estava salvo da crueldade dos terroristas naquele momento. Abdala que calmamente reparava a viatura por ordem dos terroristas tinha um plano de fuga devidamente arquitetado e que manteve apenas para si durante dias. A sorte estava do seu lado. Levou dias reparando o camião.
Finalmente, chegou o dia da entrega do camião! Mesmo depois de estar pronto, Abdala ficou calado esperando que começasse a escurecer. Já no final da tarde, Abdala comunicou que o camião já estava reparado e os terroristas disseram que ele poderia experimentar a mesma, algo que prontamente foi recusado por ele, tendo sugerido que o motorista dos terroristas conduzisse o camião – proposta que foi acatada e seguiu-se.
No entanto, na hora de ligar a viatura, a mesma não arrancou, o que levou os terroristas a empurrarem a mesma e foi exatamente neste momento que Abdala recuou os passos e com a velocidade de uma chita colocou-se em fuga. Tendo sido visto pelos terroristas fugindo, os mesmos que estavam sem as suas armas no momento, deixaram o camião e começaram a persegui-lo. Esperto e com um plano devidamente pensado. Abdala apenas deu a volta a base e escondeu-se no "murmuche das decapitações". Já escondido num local em que os terroristas nem esperavam, Abdala se manteve no local por nove horas de tempo, ao lado dos restos mortais dos seus ex-companheiros do cativeiro.
Revoltados e com ordens para o aniquilar, os terroristas saíram com tudo atrás de Abdala. Das 18 horas até duas horas de madrugada, os terroristas transportando-se em motorizadas procuraram Abdala por quilómetros, mas não o acharam – afinal ele ainda estava na base – a ordem era que fosse encontrado porque ele havia visto muita coisa e conversado com as lideranças superiores do grupo. Duas horas da madrugada, os terroristas já cansados regressaram à base e quando chegaram todos foram se deitar e foi neste momento que Abdala saiu silenciosamente e começou a longa maratona em busca da salvação.
Abdala caminhou e correu pela mata durante sete dias. Viu vários corpos espalhados pela mata. O corpo já não aguentava, mas a busca pela salvação era maior (…) Abdala rezou! Implorou ao Senhor que lhe mostrasse uma luz no fundo do túnel. O que veio a acontecer quando de repente começou a ouvir o roncar de carros numa certa direcção, afinal estava perto. Abdala conseguiu chegar a estrada, onde durante horas pediu ajuda, mas todos os carros que passavam andavam a velocidade de 120 à 180 quilómetros por hora pensando que ele era terrorista, até que um grupo de funcionários de uma organização viu-lhe implorando por socorro e banhado de lágrimas, tendo parado a viatura e questionado quem ele era e donde vinha.
Sem papas na língua, cansado e banhado de lágrimas, Abdala disse que havia escapulido das mãos dos terroristas – o que os ocupantes do carro se espantaram – como? Fugiste do cativeiro dos terroristas, tu? Questionaram os ocupantes em coro – Abdala respondeu sim! Decidiram levar-lhe e a viagem continuou até a vila de Palma, onde foi levado ao quartel e entregue às Forças de Defesa e Segurança (FDS) que primeiramente o interrogaram e não aceitaram a história que ele contava.
Os elementos das FDS delegados para o interrogatório ordenaram que Abdala fosse tomar um banho, comesse algo e tentasse dormir um pouco porque alegadamente o que estava a falar não fazia sentido, uma vez que os terroristas não deixam que nenhum homem escape!
No dia seguinte, o interrogatório continuou e Abdala contou o que viveu naqueles dias e como conseguiu fugir até que as FDS aceitaram na sua história e pediram que ele os ajudasse a localizar onde estava esta base, o que foi prontamente feito por ele – na operação conduzida pelas FDS quinze terroristas foram mortos e os restantes escapuliram-se.
Abdala foi levado para Pemba, onde foi agradecido pela cooperação e deixado voltar para casa. Mas infelizmente o homem viu tanta coisa que o cérebro não consegue processar e nem contemplar a nova realidade – vive em constantes delírios – quando dorme só a carnificina protagonizada pelos terroristas. Abdala até hoje vive atormentado, com medo e certas vezes acorda assustado e a falar sózinho como se estivesse em contacto telepático com os terroristas – a quem diga que o problema é ter comido a refeição dos terroristas, onde podem ter colocado alguns produtos supersticiosos que lhes mantém conectados e caso a pessoa fuja ainda pensa em voltar ou a mente fica alterada para sempre!!!
Esta é a história de um sobrevivente da guerra em Cabo Delgado que fez de tudo para salvar-se e vive atormentado e em constante medo!
Nos anos da fome!
Tudo era escasso
As machambas estavam desertas
Os celeiros vazios
As populações aflitas
Os ratos sem nada para roer!
A dor era intensa
Faltava tudo
Até de sexo completo
As sementes não germinavam
Os campos estavam improdutivos
Todos choravam!
Ninguém mais aguentava
Nos anos da fome!
A seca havia assassinado tudo
As cheias haviam levado tudo
As balas mutilando e matando inocentes
Em casa tínhamos apenas água e sal, mas sem produtos alimentares por confeccionar.
Os deuses estavam a castigar-nos,
talvez pelo facto do povo tanto pecar nas suas escolhas;
Nos anos da fome!
Abolimos a religião e reeducamos os pastores e seguidores;
Assaltou-se o dinheiro dos pobres em nome da liberdade;
Cultuamos mares de inverdades
numa terra em que tudo os ratos roeram!
Nos anos da fome!
Irmãos e pais lutaram mortalmente por 16 anos em nome da democracia e hoje enganados pela riqueza do gás, crianças, jovens e adultos instalaram a desordem,
aliada da fome!
Omardine Omar, Maputo- Moçambique - Abril de 2021
Na esplanada do Hotel Tofo-Mar não há vivalma, nem no bar onde cheira a bafio no lugar do aroma agradável do café. Ninguém vocaliza qualquer coisa, todos os trabalhadores aqui presentes parecem resignados. Há um silêncio de tédio que se parece com o prenúncio de uma chacina, não se ouve nenhum tilintar de talheres ou o som da cerveja jorrando para as grandes canecas ou para os copos. Porém, a música das ondas do Índico que se vão esbatendo na areia, ainda nos dá a esperança de que a vida vai voltar.
Mas eu venero lugares livres onde há silêncio, é por isso que estou aqui sem me importar com tudo o mais. Vim a Tofo para me abastrair, e Tofo só faz sentido para mim quando está assim, sem ninguém, ou com meia dúzia de gatos pingados que chegam a este lugar com o único propósito de ouvir a música do mar infinito, porque quando há muita gente, essa mesma música perde-se nas vozes que querem cantar também.
Estou sentado na esplanada, descamisado, bafejado por este paraíso sem saber ao certo o que vou beber, se uma água ou uma cerveja, tanto faz, apesar de que a cerveja tem essa vocação de me ajudar bastante na invenção dos solvejos, então é melhor pedir uma caneca.
- Dê-me uma caneca, por favor.
O garçon traz uma irresistível caneca de cerveja clara, que borbulha por dentro e transborda uma leve espuma que apresso-me a dominar com os lábios. Bebo um longo gole e invade-me imediatamente uma falsa sensação de bem estar. Sorrio para o oceano que não pára de cantar, cuja sequência das ondas faz-me lembrar que depois de nós vêm outros logo a seguir, talvez sem as mesmas armas que as nossas, como as próprias ondas que não terão a mesma intensidade das que hão-de vir depois.
Já vou na terceira caneca e o blues começa a brotar de dentro de mim, como se eu mesmo fosse o Budy Guy cantando Sweet home Chicago, ou o João Paulo imitando John Lee Hooker nas noites do Gil Vicente. Mas estou aqui sozinho feito uma lenha fora do feixe, e assim facilmente posso ser quebrado, então tenho que recorrer ao blues para convocar os meus demónios que me fortelecem a alma.
- Senhor, vai mais uma!
Eu nem tinha reparado que a caneca esvaziara. Estou alucinado pelo silêncio que se recusa a desvanecer, não obstante o zumbido dos barcos de recreio que levam mergulhadores ao fundo do mar. Bebo devagar sem me entregar aos pensamentos, não bebo para pensar, mesmo estando sozinho com os meus demónios, que estão loucos pelo blues que vai saindo mais intenso ao ritmo do efeito do álcool me vai subindo à cabeça. Mas já não posso mais continuar aqui, por hoje é bastante, estou saciado pela poesia da Tofo. Um lugar para o qual um dia voltarei, outra vez. O resto fica por conta das emoções.