Mas quem está na proa pode ser o timoneiro, e Elvira Viegas não será mais do que um pivot generoso, com sede inadiável de exaltar fazedores e criadores da arte. É isso que ela está a fazer no seu programa”Celebrando vidas” que passa na Televisão de Moçambique (TVM) aos domingos entre o final da tarde e o princípio da noite, algo que nos leva à nostalgia e permite-nos buscar, da memória, nomes que alimentam o nosso passado e fazem, por conseguinte, com que o presente tenha sentido.
Assisti ao “Celebrando vidas” nas últimas duas semanas com Elvira no centro de uma panóplia de músicos e actores de teatro e escritores, o que ela queria é que se falasse deles, dos seus trabalhos que vão marcar de forma indelével várias gerações, pois, evocar por exemplo Lília Momplé e Manuela Soeira, é juntar pedaços de gerações ou várias gerações por inteiro. São duas mulheres de uma inventiva notável trazidas à terreiro por outra mulher notável que avança sem púrpura, mas com simples missangas da imaginação.
Manuela e Lília, corporizam duas personagens que levaram sempre uma vida recatada, deixando que sejam as suas obras a irem à frente sob todos os riscos, e ali no programa da Elvira mostraram isso mesmo, ser mulheres serenas e amáveis, preferindo a plateia no lugar do palco, embora tenham sido chamadas às luzes da Televisão. Elas brilham por si mesmas, como o mel que não precisa de açúcar para ser doce, e esta é uma grandiosa homenagem despida de preconceitos.
O programa de Elvira Viegas embevece, ela conhece as pessoas que convida, não é obra do acaso. Então os irmãos Wily e Anibal, humildes como as duas mulheres que citamos anteriormente, nomeadamente Lília Momplé e Manuela Soeiro, foram chamados à um lugar que não podiam recusar, pela forma como o cenário foi preparado, cheio de flores e palavras de amor. Eles não estiveram ali para dar um espectáculo, mas com o propósito de receber abraços profundos de uma plateia especial. Respeitável.
Foi bom ver Roberto Chitsondzo que teve, a determinado momento da sua actuação, de pedir a um dos seus filhos que pegasse na guitarra e continuasse a tocar “Mussakazi”, para que ele, o Roberto, se sentisse livre e cantasse à vontade e dançasse um pouco também. Com alegria incontida. Porém, quem estava voando mesmo, é Elvira, que pensou num programa que vai nos levar ao delírio e à fortes emoções.
“Celebrando Vidas”, por aquilo que nos mostrou nas últimas duas semanas, servirá de grande motivo para nos mantermos ligados à TVM aos domingos, entre o final da tarde e princípio da noite. Há um grande sinal como aquele que por via dos filhos, foi lembrada a “doce escandalosa” Zaida Lhongo. Aliás a Tânia (filha) actuando no palco dizia assim, “não se escandalizem com o que vão assistir aqui, não fosse eu filha de Zaida”.
Pois é: os gêmeos Parruque são desse tempo de grandes euforias no Ngoma Moçambique da Rádio Moçambique e estiveram ali para nos fazer recordar essas temporadas vibrantes, mas “Celebrando Vidas” é uma galeria pronta a receber o inesperado, e nós estamos aqui na esperança de viver o passado.
Obrigado Elvira.
O Ministério Público é um dos principais garantes da legalidade no Estado moçambicano. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 233 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e no n.º 1 do artigo 1 da Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público constitui uma magistratura hierarquicamente organizada, subordinada ao Procurador-Geral da República.
De entre outras funções, o Procurador-Geral da República presta informação anual à Assembleia da República (AR) sobre o estado geral do controlo da legalidade no País. O que deve fazer em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 238 da CRM, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro e artigo 204 da Lei n.º 17/2013, de 12 de Agosto, que aprova o Regimento da Assembleia da República de Moçambique.
Nos dias 19 e 20 de Abril de 2023, a Procuradora-Geral da República foi à Assembleia da República prestar informação sobre o estado geral da legalidade e, quiçá, da justiça em Moçambique referente ao ano de 2022.
No âmbito da prestação da informação anual à Assembleia da República sobre a actividade do Ministério Público, a Procuradora-Geral da República deve, nos termos do n.º 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, abordar o estado geral do controlo da legalidade focando essencialmente, entre outras, as seguintes matérias:
a) Aspectos específicos relativos ao controlo da legalidade e direitos humanos;
b) Índices de criminalidade, medidas de prevenção e seu combate;
c) Aspectos relevantes das funções do Ministério Público no âmbito da administração da justiça, com salvaguarda do segredo de justiça;
d) As reformas necessárias para uma maior eficácia da acção da justiça;
Perspectivas para o melhor desenvolvimento do Ministério Público;
Importa aqui lembrar que há vários anos e com tendência crescente que pairam na sociedade muitas questões complexas e polémicas sobre a legalidade das limitações sobre o livre exercício da cidadania, com destaque sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação contra a má governação e gestão do bem público no geral e contra as violações dos direitos humanos.
Facto estranho e preocupante é que a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República quase que ignora a referência de aspectos e situações preocupantes da sociedade relativamente à violação da legalidade que tem sido não apenas recorrente, mas gritante, chegando a representar violação de direitos e liberdades fundamentais no contexto da limitação ilegal do direito à liberdade de manifestação, em que a brutalidade policial está praticamente institucionalizada como a forma mais eficaz do Estado para reprimir os cidadãos que ousam manifestar contra a má gestão do bem público e violação de direitos humanos.
Curiosamente, a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República parece mais uma acção de natureza política pouco séria em que basta a apreciação positiva dos deputados do partido no poder na Assembleia da Repúblico para que se considere uma informação anual que responde à questão da legalidade e da justiça no País. Não parece que a Procuradora-Geral da República esteja, de forma responsável, a prestar contas ao povo vítima das grosseiras ilegalidades e injustiças.
Na verdade, são sobejamente conhecidos os inúmeros casos de restrição ilegal ou arbitrária do exercício do direito à liberdade de manifestação e da liberdade de expressão com recurso ao abuso de poder por parte das autoridades, nos quais se destacam a Polícia da República de Moçambique (PRM) e os municípios, sobretudo os governados pelo partido no poder, em que se destaca o Conselho Municipal de Maputo.
Na sequência desses actos arbitrários e abusivos contra o direito à manifestação e liberdade de expressão e de imprensa, os cidadãos foram vezes sem conta detidos, vítimas de agressão física, baleados e sujeitos a maus tratos. Esses casos sempre foram objecto de diversos debates públicos nos órgãos de comunicação social, incluindo nas redes sociais, fundamentalmente a título de denúncia para que quem de direito pudesse agir em conformidade, neste caso o Ministério Público, considerando as suas funções constitucionais de garante da legalidade.
Ora, não obstante o direito à liberdade de manifestação, que está intimamente ligado à liberdade de expressão, enquadrar o leque dos direitos humanos, na vertente dos direitos políticos e civis e, acima de tudo, estarem constitucionalmente consagrados como direitos e liberdades fundamentais conforme se vislumbra dos artigos 48 e 51 da CRM e nos principais instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte; o Ministério Público não revela no seu informe anual dados esclarecedores sobre a sua vigorosa actuação no sentido de repor a legalidade violada e efectivamente responsabilizar as autoridades que arbitrariamente limitaram os direitos e liberdades em referência, pela violação de outros direitos humanos e da legalidade, o que tem alimentando a impunidade com uma espécie de chancela do Ministério Público, que pouco faz para a promoção e protecção do direito à liberdade de manifestação.
Não são conhecidas as acções concretas e fortes deste órgão de justiça, garante da legalidade, para acabar com o abuso de poder, intimidação e outras formas de limitação ilegal do direito à manifestação e da liberdade de expressão por parte do Governo, das autoridades policiais e municipais.
Aliás, é curioso que até ao momento em que a Procuradora-Geral da República apresenta o seu informe anual sobre a actividade do Ministério Público no controlo da legalidade, é manifesto no debate público a indignação dos cidadãos sobre a proibição infundada do direito à manifestação como se Moçambique fosse uma Estado ditatorial ou Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito Democrático.
Urge o Ministério Público tomar uma posição pública sobre a onda de violência e brutalidade policial contra o exercício do direito à manifestação e intimar o Governo, as autoridades policiais e municipais para se conformarem com a lei e nesse sentido não agirem de modo a limitar ou proibir os cidadãos de exercerem o direito à liberdade de manifestação sem fundamento bastante nos termos da lei aplicável ao caso.
De acordo com o artigo 4 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, as competências do Ministério Público incluem as seguintes, no que releva para o controlo da legalidade para a salvaguarda dos direitos e liberdades supra:
Considerando as competências supra, na sua informação anual à Assembleia da República sobre o estado geral do controlo da legalidade, a Procuradora-Geral da República deveria demonstrar em que medida o Ministério Público pôs em prática as suas competências para garantir a legalidade na salvaguarda do exercício do direito à liberdade de manifestação, da liberdade de expressão e de imprensa.
Representar o Estado e defender os interesses que a lei determina significa fundamentalmente prosseguir o interesse público no pleno respeito à lei, ao Estado de Direito e aos direitos e liberdades dos cidadãos, uma vez que o interesse público e o respeito pela legalidade são interesses do Estado, isto é, interesses que o Estado visa e deve prosseguir. Representar os interesses do Estado é defender a prossecução do interesse público, de tal sorte que se o Estado através dos seus agentes, serviços ou órgãos não respeita a prossecução do interesse público deve ser denunciado e demandado para respeitar o interesse público.
O Ministério Público nas suas funções deve sempre e incondicionalmente, de forma isenta, objectiva, imparcial e legal, defender ou salvaguardar interesse público nos termos da lei e pautar pela justiça mesmo que para o efeito tenha de denunciar comportamentos ilícitos, ilegais do Estado que prejudicam o interesse público ou direitos e liberdades dos cidadãos.
Assim, relativamente aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição à lei a que o Ministério Público está sujeito no exercício das suas funções em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 233 da Constituição da República, pelo menos no que respeita às garantias de protecção do exercício do direito à liberdade de manifestação, dúvidas não restam de que a informação anual da Procuradora-Geral da República não espelha a aplicação desses critérios na actuação do Ministério Público.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
O emissor provincial da Rádio Moçambique em Inhambane, pode ter – ao longo da sua existência – produzido alguns dos locutores mais efusivos do nosso país, de entre eles Gildo Maphutumane, um profissional que em pouco tempo após ingressar nos quadros da RM nos finais da década de 90, conquistou um vastíssimo auditório que irá para além dos bitongas, língua que Gildo falava com denodo, chegando a usar termos nunca antes conhecidos pela maioria, naquilo que será na verdade uma ousadia.
Na cabine, Gildo Maphutumane não era ele, entrava em transe só de saber que daqui a pouco vai ter o microfone a sua disposição, e através desse instrumento mágico irá conquistar os ouvintes que estarão à sua mercê do princípio ao fim. Todo o corpo dele estremecia enquanto falava, alheio a tudo como nos meandros da feitiçaria, em que a pessoa é usada por espíritos. Gildo era um objecto dessa força invisível, um locutor de nomeada que todos queriam ouvir, então não era ele, como os grandes artistas de génio.
Durou pouco sobre a terra onde cumpriu a missão sagrada de comunicar e entreter, morre em princípios da década de 2000 no auge da carreira, deixando todo o seu cheiro profissional na cabine que afinal seria a outra gruta de uma pessoa nascida a cinco kilómetros da Praia do Tofo. Gildo era um crocodilo emergente e já possuia invencíveis escamas. Nunca soube fazer mais nada na vida, a locução era a sua lagoa, onde agitava as águas com a voz tonitruante, firme e alegre.
Gildo Maphutumane gabava-se de ter desbravado o seu próprio atalho, obedecendo aos ditames da criação de novos horizontes sem dogmas, sem se preocupar com o que os outros pensam dele, sobretudo sobre o seu “mudus agendi” na cabine de locução, ele era livre como os verdadeiros criadores da arte. Se calhar será por isso que se sagrou vencedor, ao ponto de traduzir para o bitonga - inesperadamente – a expressão radiofónica “comprimentos de onda” para “thsiba nya mapwelo”, deixando em delírio todos os bitongas que o ouviam.
Mesmo assim não era propriamente um homem forte no sentido de enfrentar os torpedos, por isso escondia-se na cabine onde perdia todo o medo e sentia-se sem grilhetas na mente e nas palavras, ou juntava-se aos amigos e desfraldava todas as emoções e todas as desinibições, enquanto não chega o próximo turno para deixar a voz ecoar por via de “thsiba nya mapwelo”.
Era assim o Gildo, um personagem que a história jamais o abandonará nas margens do rio, pela forma como imprimiu sua vida profissional como locutor da Rádio Moçambique.
I. O Problema
Apesar de no sistema jurídico moçambicano existirem significativas instituições de justiça que directa ou indirectamente defendem e protegem a Constituição da República de Moçambique (CRM), é inquietante o deficiente mecanismo de protecção da mesma, dando espaço até para abuso por parte de quem tem o dever primordial de a proteger, sem qualquer responsabilização. Neste artigo, é demonstrada alguma gravidade da vulnerabilidade a arbitrariedades da Constituição em contradição com os princípios que a norteiam, com destaque, por um lado, para o princípio da legalidade previsto no n.º 3 do artigo 2, que determina que o “Estado se subordina à Constituição e funda-se na legalidade.” E, por outro, o princípio do Estado de Direito previsto no artigo 3 da mesma Constituição e que determina: “A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão.”~
II. Como o Conselho Constitucional (des)protege a Constituição da República
O Conselho Constitucional é por definição o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 240 da CRM. Da leitura desta definição em paralelo com as competências do Conselho Constitucional, que constam do artigos 243 e 244 da CRM, bem como do artigo 6 da Lei n.º 2/2022, de 21 de Janeiro (Lei Orgânica do Conselho Constitucional), não restam dúvidas sobre a função do Conselho Constitucional que se traduz na salvaguarda da CRM. No entanto, para o efeito, é estranho e incompreensível que o acesso a este órgão de soberania seja deveras limitado pelos cidadãos que só conseguem se forem conjuntamente o mínimo de dois mil cidadãos nacionais com assinaturas devidamente reconhecidas por notário, o que revela sérias restrições ao acesso à justiça constitucional pelo cidadão e difícil protecção da Constituição por iniciativa do cidadão individualmente considerado ou em pequenos grupos e associações.
Mais do que isso, é que o Conselho Constitucional não actua oficiosamente ou por iniciativa própria em defesa da Constituição, senão esperar interposição de competentes processos de quem tem legitimidade para o efeito. Ora, por mais que o Conselho Constitucional tenha conhecimento de abusos contra a Constituição da República, ele não intervém de qualquer forma senão foi interpelada pelos restritos mecanismos previstos na lei para tal e por quem tem essa legitimidade.
Desde já, tem legitimidade para pedir a protecção da integridade constitucional, por via de acções de inconstitucionalidade das leis e da ilegalidade dos demais actos normativos dos órgãos do Estado, apenas os seguintes órgãos ou entidades de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 244 da CRM conjugado com o n.º 2 do artigo 64 da Lei Orgânica do Conselho Constitucional: O Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, um terço, pelo menos, dos deputados da assembleia da República, o Primeiro Ministro, o Procurador-Geral da República, o Provedor da Justiça e dois mil cidadãos. No mesmo sentido, tem legitimidade, por via de recursos, para, obrigatoriamente, solicitar a apreciação da inconstitucionalidade pelo Conselho Constitucional os juízes, quando se recusem a aplicar qualquer norma com base na sua inconstitucionalidade, conforme o artigo 246 da CRM.
Estranha e curiosamente, não obstante serem manifestos e significantes os actos e casos de violação da Constituição da República, os órgãos supra referidos raramente interpelam o Conselho Constitucional sobre questões de inconstitucionalidade em defesa da Constituição da República, o que fragiliza a protecção da mesma em caso de violação, uma vez que o Conselho Constitucional está legalmente proibido de agir por iniciativa própria ou de tomar o impulso processual de per si em defesa da Constituição. Os cidadãos e organizações da sociedade civil, que revelam ter grande apetência para a defesa da Constituição, tem grandes barreiras de ordem legal, com cunho constitucional, para aceder ao Conselho Constitucional para a salvaguarda da Constituição da República.
Mais do que isso, é que nem toda a prática, acto ou norma contrária à Constituição enquadra o conceito de leis ou de actos normativos dos órgãos de Estado para que o Conselho Constitucional seja competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir em protecção da Constituição da República. Esta questão vem a propósito do facto de caber ao Conselho Constitucional, nos termos do nº 1 do artigo 244 da CRM, apreciar e declarar, com força obrigatória, a inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos demais actos normativos dos órgãos do Estado. Nesse sentido, havendo um comportamento estadual, acto administrativo, acto político, ou conduta de qualquer outra natureza que viole a Constituição, mas que não se enquadra no conceito de leis ou actos normativos dos órgãos do Estado, o Conselho Constitucional não é competente para solucionar o problema. Isto, não obstante a questão ser matéria jurídico-constitucional do qual o Conselho Constitucional é o órgão especial para dirimir conflitos que daí derivam, conforme resulta do nº 1 do artigo 240 da CRM ao determinar: “o Concelho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional.”
A exclusão de algumas matérias de natureza jurídico constitucional das competências do Conselho Constitucional, mas que relevam para a defesa e protecção da Constituição da República, constituiu um significativo paradoxo e incoerência jurídica atendendo a qualidade e definição do Conselho Constitucional. Vale aqui lembrar que, infelizmente e em bom rigor jurídico processual, não há, por exemplo, um contencioso constitucional dos actos administrativos e políticos na ordem jurídica moçambicana. A questão que não quer calar é: Para os casos de violação da Constituição da República em que o Conselho Constitucional não tem competência para intervir, a quem cabe a protecção da Constituição?
Acresce ainda que o Conselho Constitucional, pelo menos em matéria de apreciação de (in)constitucionalidade, é simultaneamente a primeira, última e a única instituição jurisdicional a quem cabe decidir sobre protecção da Constituição por via da inconstitucionalidade, ainda que com as limitações supra referidas, o que fragiliza a protecção da Constituição pelos outros órgãos jurisdicionais que, ao não aplicarem uma norma com fundamento na inconstitucionalidade da mesma, devem remeter as suas decisões ao Conselho Constitucional para que se pronuncie decidindo sobre essa protecção da Constituição com fundamento na inconstitucionalidade.
Actualmente, pairam dúvidas na sociedade sobre a constitucionalidade do acto que cria a Comissão de Reflexão sobre a Viabilidade da Realização das Eleições Distritais em 2024 (CRED), até porque a mesma parece, na verdade, uma comissão para a revisão pontual da Constituição no que diz respeito à norma constitucional que estabelece: “As primeiras eleições distritais, nos termos previstos na Constituição da República, têm lugar no ano de 2024.” No entanto, neste caso, o Conselho Constitucional não tem possibilidade legal de ser chamada a intervir. A CRED pode chegar à conclusão de que as eleições distritais para 2024 não são viáveis, chancelando a posição pública do Presidente da República, o que poderá determinar a materialização da vontade política, aparentemente egoísta, de revisão da Constituição. Este é mais um exemplo da fragilidade da protecção da Constituição da República.
III. Chefe do Estado o garante da Constituição?
Um outro órgão de soberania relevante para a protecção directa da Constituição é o Presidente da República, entanto que garante da Constituição na sua qualidade de chefe de Estado, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 145 da CRM. É, pois, nessa vertente que, dentro das suas competências de promulgação e veto plasmados no artigo 162 da CRM, tem elementos bastantes para não promulgar leis que põem em causa a Constituição da República, tendo, nesse sentido, a prerrogativa de requerer ao Conselho Constitucional a verificação preventiva da constitucionalidade de qualquer diploma legal que lhe seja enviado para promulgação. O Presidente da República é o único órgão com essa possibilidade de requerer fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis. Mas não é obrigado a requerer, depende da sua vontade, o que também constitui um mecanismo frágil de protecção da Constituição da República por via da verificação da constitucionalidade preventiva. É facto bem assente que o Presidente da República não tem o hábito e o cuidado de requerer essa fiscalização, mesmo perante leis muito polémicas por manifestos sinais de inconstitucionalidade que promulgou, como são os casos da recente legislação sobre o combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, bem como o Código Penal e o Código de Processo Penal em vigor.
Importa referir que pelo facto do Presidente da República nomear o presidente do Conselho Constitucional e por haver sinais de controle ou forte interferência política sobre o Conselho Constitucional, parece dar lugar a uma espécie de temor reverencial por parte deste órgão relativamente ao Presidente da República de tal maneira que fica difícil contrariá-lo em defesa da integridade da Constituição perante leis que parecem prosseguir objectivos políticos obscuros em violação da Constituição, coerência constitucional. Aliás, o debate público em torno do polémico Acórdão n.º 03/CC/2022, de 17 de Junho referente ao processo n.º 02/CC/2021 sobre a fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade de determinadas normas do Código do Processo Penal, ora em vigor, com destaque para as normas sobre prisão preventiva, no qual o Conselho Constitucional, num contexto político perturbador do judiciário, negou declarar a inconstitucionalidade dessas normas, com declaração de voto vencido de dois renomados juízes conselheiros, o que apimentou mais a fragilidade da decisão do Conselho Constitucional.
São raros os casos de intervenção do Chefe do Estado em defesa e protecção da Constituição da República mesmo perante situações de actos de violação à Constituição, em especial dos direitos humanos, por órgãos como o Governo e as Forças de Defesa e Segurança do qual o Presidente da República é o chefe máximo.
IV. Concluindo
Portanto, os mecanismos de protecção directa da Constituição da República mostram-se deficientes e muitas vezes ineficazes. O monopólio dessa protecção pelo Conselho Constitucional e Presidente da República é problemático pelas várias limitações acima apresentadas e, também, por haver muito espaço legal que impede a intervenção desses órgãos em defesa da Constituição por iniciativa própria, para além de que no caso de o Presidente não existir situações que seja legalmente obrigatório remeter as leis à fiscalização preventiva da constitucionalidade antes da promulgação.
A Constituição da República é muito vulnerável a violações pelos actos administrativos e políticos, com difíceis mecanismos de defesa e protecção.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Os pensamentos de um quadro de numa sala de aulas é muitas vezes ignorado. Geralmente, os quadros são somente utilizados como um vector de comunicação entre os professores e os alunos. Numa localidade situada no centro de uma cidade cosmopolitana havia um quadro especial. Ele tinha sido instalado numa escola primária de renome há cerca de 20 anos. Em sua superfície sobreviviam a memórias de personagens que em tempos foram brilhantes, assim como, dos que eram uns verdadeiros desastres. De longe, chegavam histórias do fracassos e êxitos das pessoas que estudaram e hoje marcavam a cidade com as suas acções.
Numa tarde de domingo, refletia o quadro falando com as carteiras da sala de aulas, que nos últimos 20 anos houve uma redução drástica na qualidade de professores e estudantes. O quadro estava muito ressentido e exigia reforma pelo facto de assistir um cenário de debilidade que se instalava diariamente. Num tom grosseiro vozeava:
- “Colegas, estou cansado de ver crianças malcriadas. Vêm a escola sem tomar-banho. Cheiram mal, não sabem nada e só passam a vida a brincar aqui na sala. E, esses professores sonolentos estão toda hora no WhatsApp. Na última sexta-feira, a menina de dois totós que é até bem comportadinha sofreu um bullying na aula… O grupo dos colegas mais dementes da turma roubaram o lanche dela, mandaram ela fazer o trabalho de casa para todos e ainda um outro obrigou-lhe a dar um beijinho na bochecha. Como isso é possível? A professora de disciplina em que o incidente ocorreu é uma frustrada na sua vida pessoal. Ela vem dar aulas duas vezes por semana. Não quer se meter no assunto para não seguir as consequências. Como uma típica inútil, em vez de dar castigar aos meninos, preferiu rebater na menina. A estratégia foi bem sucedida porque as crianças não pensam. Concluiram a seguir que a culpa era da Joana. Assim, enquanto chorava teve que escrever 100 vezes, eu sou a menina malcriada. Quase todos deram uma gargalhada farta excepto a Catarina. Esta outra menina é uma estranha. Representa uma das piores alunas na turma porém com um comportamento surpreendente.”
Naquele exacto momento, passava um duende jornalista que buscava um novo tópico para o seu jornal. Ao ouvir o discurso do quadro, infringiu as regras dos duendes ao expor-se. Dos seus auriculares, podia se ouvir a obra Erlkönig de Franz Schubert… Um forte excitação crescia em sua mente enquanto cantarolava “Den erlenkönig mit kron und schweif?”. Conseguia interligar o que acabará de ouvir do quadro com a obra musical. A verdade por detrás disso tudo, é que os duendes jornalistas davam de tudo para uma publicação que lhe permitisse concorrer a Pulitzer. Com a reconhecida graciosidade dos duendes, interveio:
-“Prezado Sr. Quadro, com estima oiço as suas legítimas reivindicações. Observei que tem muitas indagações para ser atendidas. De tudo o que falou, concedo-lhe a oportunidade de conversar com a Catarina amanhã no intervalo maior de lanche, às 10h. Serão criadas todas as condições para que possa falar sozinho com ela. Temos um pacto?”
O quadro meio desorientado ficou mudo levando o seu tempo a assimilar o que acabava de ouvir. Analisou que consequências teria um pacto. De tudo que já havia aprendido, os pactos sempre terminavam mal. Mas, o que mal pior sofreria comparado a aquela turma de crianças conduzidas por adultos indolentes? Com medo de acordar daquele sonho maravilhoso, saltou todas a perguntas condicionantes ao pacto. Sem dar azo a fundamentações, respondeu que sim e planificaram a ordem de eventos.
Na manhã seguinte, estava todas as crianças na escola. A famosa professora do incidente era quem iria substituir a professora daquela hora que estava nos falecimentos. Chegou às 09:30 na sala de aulas. Não precisou de dar desculpas ao atraso porque aquelas crianças não representavam nada. Estava muito feliz para se aborrecer com aqueles seres satânicos. No semestre que se aproximava ia começar a dar aulas numa escola privada. Muitos dos seus males iam terminar. Ainda estava a perguntar-se porque aquele jovem não lhe deu lugar no chapa. Quando pediu lugar ao jovem recebeu uma resposta típica de jovens sem respeito. Quase ria quando se viu refletida no jovem. Ao entrar na sala, sacudiu a roupa para aterrar-se no que devia fazer a seguir. Numa visão panorâmica, a maioria dos alunos estava lá fora a brincar e quase ninguém na sala. Com passos decididos, dirigiu-se ao pátio da escola, de forma autoritária mas com voz afinada, por causa da sala do director que estava bem próxima, gritou:
- “Meninos, por favor, para sala.”.
Nenhuma das crianças reagiu a chamada. A professora entrou numa crise de nervos. Não podia gritar o que as crianças mereciam ouvir. Para não chamar atenção sobre seu atraso, arrancou o ramo de uma árvore quase pelada de folhas, que respirava os seus últimos dias, apoquentada com os fungos que há muito tinha entranhado. Juntamente ao pau, pegou uma pedra no chão. Estudou o povoado de alunos, calculou a distância para lançar a pedra sem atingir ninguém. Lembra-se de sua proeza em caçar pássaros com fisga. Mesmo enferrujada na prática não falharia. Então com uma mão, lançou a pedra para uma placa metálica próximo dos estudantes. O som atraiu os para sua direcção. Com a outra mão, levantou o ramo recentemente arrancando fazendo sinal de porrada. De seguida, todos foram a correr para sala. Sabiam que aquela professora não era de promessa vagas. Iria distribuir um par de estalos a todos os estudantes menos as crias dos chefes dos quarteirões. Um deles era filho de uma curandeira bêbeda. Esta era uma mulher viúva frustrada pela noites mal passadas sem seu esposo. Por incrível que fosse, o seu filho era o único inteligente no grupo de elite. Tinha o mérito de ser bem sucedido por esforço próprio. A mãe costumava dizer ele não era filho dela por ser o mais escuro de todos na família. A sua inteligência favorecia a sua estadia na família. Em poucos anos, ele colocaria a família de volta a ribalta. Ninguém mas ninguém, no seu juízo normal ousava comentar os discursos da curandeira. Os últimos atrevidos deram de caras com as trevas.
Depois de entrarem todos na sala, a professora rapidamente passou uma vista de olhos para conferir se não era observada por alguém. Sorria consigo mesma ao pensar na justificativa que daria pelos meninos estarem lá fora, naquela hora. A seguir, atirou o pau no chão, sacudiu as mãos para livrar-se da areia e das ideias que lhe surgiam. Lembrava-se que devia fazer uma consulta a curandeira que tanto desprezava por ser um iletrada. Contudo, a velha desgraçada havia cumprido com as suas premonições. Enquanto isso, o duende jornalista redactava os eventos. Faltavam cerca de 5 minutos para o intervalo maior. Sincronizava o seu relógio, para os momentos que se aproximavam. Fez um sinal para uma aranha que mostrava-se ansiosa para actuar. A missão era somente saltar para cabeça da Joana. Tratava-se de uma aranha da espécie Grammostola pulchra pertencente à família Theraphosidae. Embora venenosa sabia que só estava ali para brincar. O duende a faria desaparecer assim que o pânico se instala-se. O quadro estava meio arrependido por envolver a Joana. Gostava dela por ser inocente, delicada e dedicada. Entretanto, era a única medricas capaz de dar um berro que fizesse o show que precisava. A professora ainda não tinha começado a dar as aulas. Estava a verificar as últimas mensagens que entrava no seu WhatsApp. Escrevia a sua empregada para não preparar o almoço. Em paralelo, o duende fazia sinal para a aranha descer devagar. Esta ia descendo com precisão para permitir ser vista por todos. Na última fila da carteira na sala, Pedrito gritou em pânico e totalmente surpreso:
- “Prussoraaaa, ESTÁ A DESCER UMA ARANHA PARA A CABEÇA DE JOANA. Ei, Joana, Cuidadooooooo!”.
O Pedrito embora fizesse troça da Joana gostava muito dela desde a creche. Sem pensar, estava a tirar o sapato para bater na aranha. Em câmara lenta, a Joana olha para o tecto. Assiste o encontro da sua testa com a aranha. Nesse mesmo instante, os esfíncteres relaxaram deixando fluir as necessidades maiores e menores. A maioria das crianças saíram a correr, umas rir do cheiro das fezes outras a tremerem de medo. O Pedrito lançou a sapato valentemente para atingir a aranha. Mas, esta estava bem preparada, esquivou o sapato e desapareceu das vistas de forma triunfante. Um raro sentimento de piedade, surgiu na professora que pegou na menina no colo e levou a enfermeira da escola acompanhada pelo Pedrito que se tinha esquecido que devia fingir que não gostava da Joana. O plano traçado pelo duende surtiu o efeito desejado. Naquele momento, eram precisamente 10 horas. Estava o quadro diante da Catarina que estava profundamente indiferente ao que havia acontecido. O duende fazia sinal para que o quadro aproveitasse rapidamente o momento. Buscando a palavras mais apropriadas, o quadro perguntou num disparo a Catariana:
- “Menina Catarina, quem és tu?”
A Catarina olhou para o quadro com uma expressão que representava uma incógnita. O quadro, constrangido comentou:
-“ Menina Catariana, estou quase a reformar. Porém ainda não lhe compreendi direito. A menina é uma das mais preguiçosas da turma, tem muita baixa auto-estima mas consegue esquivar-se com destreza das implicações dos professores e das provocações dos colegas. Qual é o seu segredo?”
A palavra segredo encontrou ressonância em Catarina. Em fracção de segundos, ofereceu um sorriso assustador. Tinha uma cárie avançada que criava repugnação aquém lhe mirasse de perto. Em resposta, a Catarina disse:
“Venho a escola por obrigação,
sento-me na sala de aula por castigo,
escrevo e leio mal porque não me interessa aprender,
a minha infelicidade é causada pelos meus pais que me impuseram vir a escola.
Durante a aula estou completamente distraída,
concentrada no que fiz antes ou no que farei depois,
gostaria de estar com a minha irmã mais velha a vender mafurra e gelo no quintal,
a minha infelicidade é causada pelos meus país que me impuseram vir a escola.”
Naquele instante, o relógio do duende marcava 10:07, um funcionário da escola aproximava-se para limpar a sala que se encontrava imunda. Não sobrava muito tempo para o quadro interagir com a Catarina. Esta por outro lado, tinha despertando de uma estado de hibernação mental. Pensava em silêncio “Eu falei com um quadro”. Saiu da sala a correr sorridente para contar a Joana que o quadro falava.
Passavam-se 10 minutos da 10 horas, o duende tirava as suas últimas notas. Colocou uma mão no bolso, jogou no ar um porção de compromisso. Levantou a mão para o quadro agradecendo o pacto. Nesse ínterim, o quadro desfazia-se em bocados. Libertava-se dos 20 anos de serviço a escola onde estudavam a Catarina, Joana e Pedrito. No seu último suspiro vislumbrou o futuro brilhante das três criaturas. Ficou comovido por ter influído na mudança de comportamento de Joana e o impacto que criaria depois de tornar-se presidente do país.
Há pouco menos de seis meses recebi de um amigo um “save the date”. Há três meses o “save the date” foi materializado em forma de um convite para o casamento desse amigo a ter lugar no próximo dia 25 de Junho do ano em curso, por sinal o dia da independência. Curiosa data para um evento em que a independência das partes perde terreno.
Hoje o meu espanto: esta manhã, enquanto lia o matutino oficioso, recebi do mesmo amigo um outro convite. Na verdade uma convocatória para que participasse numa comissão multifamiliar de reflexão sobre a pertinência da realização ou não do seu casamento.
Ainda atónico liguei para o dito amigo. Na conversa ele disse que ulteriores desenvolvimentos saberia na fundamentação da criação da comissão e que me enviaria em seguida os respectivos TORs (Termos de Referência).
Não tardou e em segundos caiu no meu “Whatsapp” os aguardados TORs. Na fundamentação dizia que a reflexão encontrava conforto jurídico no inovador procedimento legislativo-constitucional denominado “Decisão tomada, decisão por reflectir!” que serviu de base para a criação da Comissão de Reflexão sobre as Eleições Distritais (CRED).
Por coincidência, enquanto prosseguia com a leitura dos TORs, um outro convite de casamento, e de um outro amigo, aterrou no meu “Whatsapp”. Por cautela, e para não entrar em gastos antecipados, liguei para ele a perguntar se o evento já fora precedido da reflexão sobre a pertinência ou não da sua realização.
Assim já estou em duas comissões de reflexão. Isto parece que promete, incluindo a de jorrar renda extra com subsídios e senhas de reuniões.